tag:blogger.com,1999:blog-76962776280710331302024-03-21T07:00:14.806-03:00The MisfitAnonymoushttp://www.blogger.com/profile/05507574057753299136noreply@blogger.comBlogger120125tag:blogger.com,1999:blog-7696277628071033130.post-85327474974604980372014-12-07T14:16:00.001-02:002014-12-07T14:16:20.566-02:00Blogando em um novo endereçoPrezados leitores, resolvi transferir o blog The Misfit para a plataforma Wordpress. Já transferi todo o conteúdo deste blog para o endereço https://andreafaggion.wordpress.com Não encontrarão mais posts novos aqui.<br />
Aguardo vocês lá!<br />
Um abraço,<br />
AndreaAnonymoushttp://www.blogger.com/profile/05507574057753299136noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7696277628071033130.post-13690491990385077112014-11-22T12:21:00.000-02:002014-11-22T12:21:22.363-02:00Mais Kant, menos Mill<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhLkP7GWXw1ZmpuRCnvheP3K807p5leo1gWPA0UxAIb-DnVESaTHXBX8ytjpXM-GkDrXvIeIiLiIZTYLnpA-WW6gTAQkAUUYcWgQpvqGm7BAQqi6r-CHwKS8SfAcxSDtB3RoS66r4N7cnc/s1600/Immanuel_Kant_(painted_portrait).jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhLkP7GWXw1ZmpuRCnvheP3K807p5leo1gWPA0UxAIb-DnVESaTHXBX8ytjpXM-GkDrXvIeIiLiIZTYLnpA-WW6gTAQkAUUYcWgQpvqGm7BAQqi6r-CHwKS8SfAcxSDtB3RoS66r4N7cnc/s1600/Immanuel_Kant_(painted_portrait).jpg" height="320" width="222" /></a></div>
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No último post, eu comentei o que considero ser a grande contribuição de Mill ao liberalismo clássico/libertarianismo: sua crítica à democracia, ou às tentativas de compensar perdas no que Berlin viria a chamar de "liberdade negativa", o espaço de não-interferência na vida dos indivíduos, por ganhos no que Berlin chamaria de "liberdade positiva", auto-governo. Mill tem razão. Quando o poder deixou de ser exercido explicitamente por oligarquias e passou, em tese, para as mãos do povo, criou-se a falsa impressão de que as reivindicações liberais por um espaço de não-interferência na liberdade individual não fariam mais sentido, estariam historicamente superadas. Ledo engano. Por mais autêntica que seja a democracia, a liberdade positiva ou auto-governo não substitui a liberdade negativa ou não-interferência, pelo simples fato de que não se trata aqui do governo do indivíduo sobre si mesmo. Trata-se apenas e tão somente do direito do indivíduo a um voto na multidão, sem que o indivíduo sequer precise dar seu consentimento explícito para que uma dada matéria torne-se ponto de pauta para uma assembleia. Em suma, basta que lhe dêem o direito a um voto e decidem até se você pode fumar ou beber, por exemplo.</div>
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Kant, ao contrário de Mill, não parece ter estado suficientemente atento para a necessidade de que a tal "vontade geral" ou "vontade unida do povo" seja devidamente limitada. Ele defendia o direito de que o sujeito fosse senhor de si, é verdade. Mas, conforme a letra do texto, ele também pensava que essa autonomia jurídica deveria ser exercida como soberania popular, pois ele permite que a lei para o indivíduo seja dada por ele mesmo na companhia dos outros. No fim das contas, isso significa que uma instituição - seja ela representada por uma assembleia ou por um indivíduo - tem o direito de agir contra o consentimento explícito de um indivíduo, alegando representar a vontade geral, que, teoricamente, inclui a vontade desse indivíduo, ao menos enquanto vontade racionalmente considerada.<br />
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Claro que Kant não pensava no voto de uma maioria esmagando o indivíduo. Ele nem sequer acreditava que a vontade geral coincidisse com a vontade de todos empiricamente unificada em um plebiscito. No entanto, o soberano legisla em nome dessa vontade geral - uma ideia racional do que todos deveriam querer - e eu não vejo em Kant uma defesa forte o bastante dos limites dessa legislação, por mais que ele tenha criticado tanto o paternalismo do Estado, que tenta fazer o súdito feliz, quanto a pretensão do Estado que tenta transformar o indivíduo em um ser virtuoso. Por exemplo, Kant não disse claramente que o princípio universal do direito ou o direito inato à liberdade deveria limitar e determinar o princípio do contrato, embora eu ache que essa seja a melhor interpretação de sua posição.</div>
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O princípio do contrato, grosso modo, diz que o soberano só pode impôr ao indivíduo o que cada um poderia impôr a si mesmo. É isso que significa ser senhor de si mesmo na companhia de outros. O problema dos liberais com isso é que o soberano pode interpretar como ele bem entender o que seria razoável para o indivíduo aceitar. Não há a necessidade do consentimento explícito de cada um. Como explica Berlin, o soberano respeita uma ideia de vontade racional do indivíduo, não a vontade de fato do indivíduo. Atento a isso, Mill diz claramente que precisamos de um princípio para sabermos onde vamos traçar o limite do que o soberano pode decidir forçar o indivíduo a fazer contra sua vontade empiricamente considerada. Agora, embora Kant não tenha dito o mesmo com todas as letras, eu defendo que o princípio que Kant tinha à sua disposição para limitar o direito de coerção externa era muito melhor do que o de Mill. Vejamos.</div>
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Segundo Mill, o princípio que separa as interferências governamentais legítimas das ilegítimas é o "princípio do dano". Mill defende que a auto-proteção é o único princípio que legitima interferências na liberdade de ação de qualquer número de membros de uma sociedade. Ele entende por isso que o poder só pode ser exercido, em conformidade com o direito e contra a vontade de qualquer membro da comunidade, se o objetivo é evitar danos a terceiros.<br />
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Ora, à primeira vista, isso parece uma perfeita formulação do princípio da não-agressão dos libertários, o famoso PNA. Pois eu alego que, bem pelo contrário, esse é um princípio coletivista que deixa entrar pela porta dos fundos toda a ameaça de tirania que Mill tentou expulsar pela porta da frente.<br />
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O ponto central é: Como defino um dano? Dano a quê? Um dano pode ser um mero efeito indesejado em minha vida. Um dano pode ser consentido. Por exemplo, você resolve usar drogas. Em um primeiro momento, eu não posso proibi-lo de fazê-lo de acordo com o princípio do dano, afinal, Mill diz claramente que não se trata de impôr a alguém o que, supostamente, seria melhor para ele mesmo. Só que a família de um usuário de drogas pode ser prejudicada por suas ações. Eles podem ter que acordar no meio da madrugada para socorrem o usuário em uma emergência. Eles podem ter que cobrir os custos materiais da droga na vida desse indivíduo. Eles podem simplesmente sofrer emocionalmente ao assistirem a decadência de um ente querido. Isso tudo não conta como dano?<br />
<br />
Mas a questão é o sentido do "ter que" acima. Você não é forçado a socorrer seu ente querido financeiramente. Você pode escolher pagar o preço de vê-lo sofrendo. Em suma, você o socorre, porque quer, a menos que ele tenha chegado ao ponto de apontar uma arma para sua cabeça. Enquanto não chegarmos a esse ponto, existe dano, mas <i>não existe dano à liberdade</i>. Em outras palavras, o princípio do dano abre as portas para restrições de sua liberdade em ações em que você não restringiu a liberdade de ninguém.<br />
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A coisa fica ainda pior. Eu disse acima que você pode escolher omitir socorro. Portanto, nesse caso, se você sofre um dano causado pelo seu ente querido, esse dano é consentido por você. Mas não é bem assim no cenário do princípio do dano, porque Mill ainda admite explicitamente que o princípio legitima também a coerção à performance de atos individuais de beneficência. Em outras palavras, amigos libertários, Mill, de bom grado e conscientemente, abre as portas para deveres positivos.<br />
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<blockquote class="tr_bq">
<blockquote class="tr_bq">
There are also many positive acts for the benefit of others, which he may rightfully be compelled to perform...</blockquote>
</blockquote>
Para Mill, não apenas nossas ações, mas também nossas omissões podem causar danos a terceiros, de forma que você deve prestar contas pela injúria da omissão. Ora, nada mais anti-libertário do que isso! A boa lição de Nozick é que, do fato de podermos impedir um dano, mas não o fazermos, não decorre que tenhamos sido a causa do dano. Nozick aponta que só seríamos a causa do dano por omissão, justamente se fosse pressuposto que tínhamos a responsabilidade ou o dever de agir quando nos omitimos. É verdade que Mill diz que os casos em que somos responsabilizados por omissões são de exceção, mas fica aberto mais um flanco para ataques contra a liberdade.<br />
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Por fim, eu quero expor também meu descontentamento com o fundamento utilitarista do princípio do dano. Já disse aqui e repito: utilitarismo é coletivismo; se advogada pela causa da liberdade individual, é só como meio. Isso fica claro no texto de Mill quando ele nos diz que o princípio último de todas as questões de ética é a utilidade em sentido amplo, definida como: os interesses permanentes do homem como um ser que progride. Quer dizer, no fim, não importa a sua vontade de fato, os seus interesses particulares, mas, assim como para os democratas, está em jogo um conjunto de interesses abstratamente considerados, a serem definidos pelos legisladores e opostos aos cidadãos reais, empiricamente tomados. Se se deixa espaço para a manobra dos indivíduos reais, é apenas porque se acredita que essa margem de não-interferência serve a esse homem abstrato a ser sempre aperfeiçoado.<br />
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Bom, e Kant? Kant pode até ter se degenerado depois, no desenrolar de sua filosofia política, mas, como bem aponta Berlin, ele começa como um genuíno individualista. A humanidade na sua pessoa é digna de respeito absoluto. Isso implica que você pode ser restrito na busca dos seus fins, mas jamais pode ser usado como um meio para quaisquer fins, como, por exemplo, o progresso da humanidade em seus "interesses permanentes".<br />
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O que está em jogo é justamente qual o princípio que orienta essa restrição da liberdade do indivíduo na busca de seus fins privados. É nesse momento que Kant formula o PNA melhor que qualquer libertário de carteirinha. A liberdade só pode ser restrita em nome dela própria: é permitida apenas a coerção da coerção. Se minha liberdade pode coexistir com a sua e, mesmo assim, você me restringe, aí sim, você me causa dano: dano à liberdade! Para Kant, não cabe ao direito interferir se um dano foi causado apenas graças ao consentimento daquele que o sofreu.<br />
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Por isso que, diga-se de passagem, em Kant, não cabe o conceito de "coerção moral" cunhado por Mill. De acordo com Mill, interferências na liberdade também podem ser morais, e não apenas físicas, no sentido em que alguém pode sofrer como sanção uma reprovação. Ora, isso não cabe em Kant. É verdade que posso ser moralmente punida pela reprovação do juízo alheio. Mas o seu mero juízo não restringe meu arbítrio. Eu posso continuar fazendo as mesmas coisas que você reprova, enquanto você meramente expressa sua reprovação. Assim, pode ser anti-ético que você me censure sem boas razões, mas não é uma violação de direitos meus, porque eu não tenho um direito à sua aprovação. Esse é mais um benefício do modo preciso como Kant distingue ética e direito, coisa que Mill não fez.<br />
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Voltando ao exemplo do usuário de drogas, eu posso sofrer se escolho não ajudar meu ente querido em sua decadência. Mas nem todo sofrimento é uma violação de um direito meu, ou seja, uma restrição de minha liberdade. Eu não tenho o direito de não ser emocionalmente magoada ou de não ser contrariada. Uma ameaça qualquer de sofrimento, por si só, não restringe minha liberdade.<br />
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Por exemplo, uma coisa é dizermos: "se você bater em João, não falo mais com você". Aqui, o indivíduo fica perante uma simples escolha: ou bate no João, ou continua falando comigo, sendo que ele não pode reivindicar um direito a uma coisa ou a outra. Ele não tem direito à minha ação de conversar com ele. Eu não tenho a obrigação de falar com ele, ou eu seria uma escrava dele, em vez de um ser livre. Da mesma forma, ele não tem o direito de usar o corpo de João como saco de pancadas, ou João seria um escravo dele, em vez de um ser livre. Assim, a liberdade do sujeito fica preservada na encruzilhada em que eu o coloco. Ele escolhe. Não poder ter as duas coisas não é sinal de falta de liberdade.<br />
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Agora, se eu digo: "se você bater no João, eu mato você, ou prendo você, ou tomo sua propriedade", a coisa muda de figura. Você tem o direito de não ser morto, não ter seu corpo aprisionado e não ter sua propriedade levada, porque a sua liberdade é restringida em qualquer um desses casos. Adotar esse tipo de ação contra você claramente restringe sua liberdade. Por que eu teria o direito de restringir sua liberdade? Na verdade, eu não tenho. Só passo a ter se você bater em João, ou seja, restringir a liberdade dele primeiro. A minha ameaça só é legítima, porque ela visa obstruir uma escolha ilegítima.<br />
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Tudo mudaria se eu dissesse: "se você não falar mais comigo, eu mato você". Aqui, ao não falar com você, eu não restrinjo sua liberdade. Eu apenas deixo de prover você com o que você considera um bem: minha companhia. Ao me matar, porém, você restringe minha liberdade terminantemente.<br />
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Já fica implícito aqui que o princípio de Kant ainda tem a vantagem de excluir explicitamente as ações de benevolência do âmbito do direito, reservando-as para a ética, ao afirmar que o direito não trata da relação do meu arbítrio com seus fins (necessidades ou desejos), mas sim de uma relação externa e formal entre nossos arbítrios, em que se analisa apenas se um arbítrio impediu o outro.<br />
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Enfim, por essas e outras, acredito que libertários devamos "perdoar" a filosofia política de Kant e abraçarmos como PNA o princípio universal do direito que diz que a minha ação é conforme ao direito (portanto, não pode ser impedida), quando pode coexistir com a liberdade de todos os outros conforme uma lei universal. Se você acredita que o papel do direito é ser um garantidor da liberdade individual, pronto, o princípio é esse. Se o próprio Kant foi sempre fiel a ele, é outra história. Podemos nos apropriar do que nos interessa em um autor, deixando o resto lá.<br />
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Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/05507574057753299136noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7696277628071033130.post-34693583406926572882014-11-14T10:40:00.000-02:002014-11-14T10:40:06.177-02:00Religião cívica e filosofia política no Brasil<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEidv5MrSFIveYzzXLKSxMam5e014j5vKK_azY9xLoq2jY5EvvMRPrRC5o-NeoXxkVGT1h-zQKGoCKt3n6sAt5VMrRc_cP-s5LJyNQofeGfrtUdGcyyIVlL9Pa6FeU2koozsPTM8aHSgNNE/s1600/600_JohnStuartMill_StatueofLiberty.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEidv5MrSFIveYzzXLKSxMam5e014j5vKK_azY9xLoq2jY5EvvMRPrRC5o-NeoXxkVGT1h-zQKGoCKt3n6sAt5VMrRc_cP-s5LJyNQofeGfrtUdGcyyIVlL9Pa6FeU2koozsPTM8aHSgNNE/s320/600_JohnStuartMill_StatueofLiberty.jpg" width="320" /></a></div>
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Momentaneamente, tenho deixado Nozick de lado para me concentrar em seus predecessores do liberalismo clássico. Tem sido um prazer descobrir autores como Benjamin Constant e John Stuart Mill, que, até então, eu só conhecia por rápidas referências em fontes secundárias. Mas também é com muita tristeza que constato que uma tradição tão rica, com raras exceções, parece esquecida no Brasil. Via de regra, quando se fala em liberalismo clássico no Brasil, pensa-se em Locke, talvez o único liberal que figure com frequência no currículo dos cursos de filosofia no país. Sem contar que o interesse por Locke parece se dar muito mais em virtude do seu contratualismo do que em virtude de seu liberalismo. Ainda por cima, veja bem, estamos falando de um filósofo do séc. XVII. Minha impressão pessoal é que o liberalismo do séc. XIX, por exemplo, seria indiferente para as reflexões políticas feitas na academia brasileira.</div>
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A meu ver, o que se quer esquecer de autores tais como Benjamin Constant, John Stuart Mill ou, mais recentemente, Isaiah Berlin é que a democracia, no seu melhor, pode perfeitamente ser tirânica, sem deixar minimamente de ser democracia. Por exemplo:</div>
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<blockquote class="tr_bq" style="text-align: justify;">
The liberals of the first half of the nineteenth century [...] pointed out that the sovereignty of the people could easily destroy that of individuals. Mill explained, patiently and unanswerably, that govern ment by the people was not, in his sense, necessarily freedom at all. For those who govern are not necessarily the same 'people' as those who are governed, and democratic self-government is not the government 'of each by himself', but, at best, 'of each by all the rest'. Mill and his disciples spoke of 'the tyranny of the majority' and of the tyranny of 'the prevailing opinion and feeling', and saw no great difference between that and any other kind of tyranny which encroaches upon men's activities beyond the sacred frontiers of private life. (Berlin, "Two Concepts of Liberty")</blockquote>
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No mesmo texto e ainda mais enfaticamente:<br />
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<blockquote class="tr_bq" style="text-align: justify;">
Democracy may disarm a given oligarchy, a given privileged individual or set of individuals, but it can still crush individuals as mercilessly as any previous ruler. An equal right to oppress - or interfere - is not equivalent to liberty.</blockquote>
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Se formos diretamente ao texto de Mill, <i>On Liberty</i>, encontramos, por exemplo, que:<br />
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<blockquote class="tr_bq">
<blockquote class="tr_bq" style="text-align: justify;">
A time, however, came, in the progress of human affairs, when men ceased to think it a necessity of nature that their governors should be an independent power, opposed in interest to themselves. It appeared to them much better that the various magistrates of the State should be their tenants or delegates, revocable at their pleasure. In that way alone, it seemed, could they have complete security that the powers of government would never be abused to their disadvantage.</blockquote>
<blockquote class="tr_bq" style="text-align: justify;">
[...]</blockquote>
<blockquote class="tr_bq" style="text-align: justify;">
As the struggle proceeded for making the ruling power emanate from the periodical choice of the ruled, some persons began to think that too much importance had been attached to the limitation of the power itself. That (it might seem) was a resource against rulers whose interests were habitually opposed to those of the people. What was now wanted was, that the rulers should be identified with the people [...]. The nation did not need to be protected against its own will. There was no fear of its tyrannising over itself.</blockquote>
<blockquote class="tr_bq" style="text-align: justify;">
[...]</blockquote>
<blockquote class="tr_bq" style="text-align: justify;">
The notion, that the people have no need to limit their power over themselves, might seem axiomatic, when popular government was a thing only dreamed about, or read of as having existed at some distant period of the past. [...] It was now perceived that such phrases as ‘self-government’, and ‘the power of the people over themselves’, do not express the true state of the case. The ‘people’ who exercise the power are not always the same people with those over whom it is exercised; and the ‘self-government’ spoken of is not the government of each by himself, but of each by all the rest. The will of the people, moreover, practically means the will of the most numerous or the most active part of the people; the majority, or those who succeed in making themselves accepted as the majority; the people, consequently, may desire to oppress a part of their number; and precautions are as much needed against this as against any other abuse of power. The limitation, therefore, of the power of government over individuals loses none of its importance when the holders of power are regularly accountable to the community, that is, to the strongest party therein. </blockquote>
</blockquote>
<div style="text-align: justify;">
É muito importante atentar para o fato que o que esses autores têm em mente como "tirania da maioria" não se aplica apenas a democracias diretas - Mill claramente trata de uma democracia representativa - ou ao exercício arbitrário do poder de uma massa, que não se constitui em lei. O liberalismo de que tratamos aqui aconselha a restrição do poder da lei legitimamente promulgada em democracias representativas como a nossa. Berlin fala da necessidade de regras que delimitem fronteiras que a lei democrática não possa cruzar, sejam essas regras oriundas do direito natural ou do utilitarismo ou do que mais seja, pouco importa. O ponto é que, quando se acredita em liberdade como algum direito de não-interferência pertencente a cada indivíduo, o legislador do Estado Democrático de Direito e o bandido com o canivete na esquina estariam igualmente obrigados a recuar perante tal direito. Agora, se não acreditamos na existência desse espaço, por mínimo que seja, sobre o qual o Estado está proibido de avançar legitimamente, a lição liberal é que o indivíduo é convertido em escravo da maioria, e não será menos escravo ainda que se auto-declare como livre. No texto de Berlin já citado, lemos que: </div>
<blockquote class="tr_bq">
The triumph of despotism is to force the slaves to declare themselves free. It may need no force; the slaves may proclaim their freedom quite sincerely: but they are none the less slaves.</blockquote>
<div style="text-align: justify;">
Naturalmente, eles são escravos se temos em vista o conceito liberal de liberdade: o direito (em alguma medida) à não-interferência. Estamos dispostos a abrir mão desse conceito? Estamos dispostos a entregar cada espaço de nossas vidas à legislação democrática? Diante de questões como a união civil homossexual, por exemplo, não seria o caso de simplesmente dizermos ao Estado Democrático de Direito: "Família, não! Não é sua esfera defini-la ou legislar sobre ela!"? </div>
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O custo de convertermos a liberdade no direito a um voto - sobretudo, como observa Benjamin Constant, nos Estados Modernos, onde um voto não decide nada - parece alto demais, pois parece o completo abandono de qualquer autonomia individual a favor da assim chamada "soberania popular". Como nos advertia Mill na passagem acima, se o poder é do povo, pode parecer que não faz sentido limitá-lo, pois como poderia o povo escravizar a si mesmo? Ah, mas esquecem do indivíduo... Esquecem que o poder do povo sobre si mesmo está longe de corresponder ao poder do indivíduo sobre si mesmo, por mais que a filosofia política contratualista se esforce para promover tal assimilação.</div>
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O fato é que, sendo ou não bem sucedido em seu argumento, o acadêmico brasileiro, no mais das vezes, parece ter esquecido do debate. Portando-se muito mais como o ministro de uma religião cívica do que como filósofo, ele assimila "democracia" ao "regime da liberdade", sem mais, sem qualificações ao que se entende por essa tal "liberdade", sem se lembrar de Berlin... Assim, qualquer um que critique a democracia é imediatamente assimilado a um defensor da intervenção militar. Isso mesmo, se expomos os possíveis problemas morais da democracia, nem se lembram mais que, com isso, queremos dizer que ela não deve interferir com o indivíduo. Já implicam que queremos dizer que, nela, devem interferir os militares. Menos democracia, oras bolas, na boca de um liberal, significa apenas: mais espaço para decisões individuais. Não significa a troca de um ocupante do poder por outro.</div>
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Mas na esteira da conversão da democracia em religião cívica, a própria palavra "democrático" se tornou adjetivo que valoriza qualquer intervenção, seja ela qual for. "Você não está sendo democrático!" não comporta como resposta um "e daí!". Pois deveria! </div>
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No pensamento político brasileiro atual - sobretudo, em suas versões mais acadêmicas (por que será?) - liberalismo é sinônimo de uma pura e simples defesa do corte de gastos sociais, e não de uma teoria moral geral sobre a necessária limitação do Estado, seja lá quem exerça o poder. Assim, liberalismo é um demônio a ser combatido, não uma filosofia a ser seriamente estudada.</div>
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Enfim, nunca pensei que eu fosse dizer isso, mas acho que vou mandar fazer umas camisetas com os dizeres: "Menos Rousseau, Mais Constant"; e quem sabe até (e, principalmente, no nosso caso): "Menos Kant, Mais Mill".</div>
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Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/05507574057753299136noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7696277628071033130.post-55628947909397277832014-11-10T11:42:00.000-02:002014-11-10T11:42:10.069-02:00Regulamentação da mídia: o que o governo realmente quer?<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj2p6Yzd7irrNoTWZjq1KzjjdkqPpE2PHKR8enK2Bdy1BtNgV0L9PfO2U9fhYmAsKsN9bCrOze4QZ-shrhooakptMckzU6JWZAZ13YA9PkHPy7cT_IgOOMUzCAXpnS8HTodfxEui8Fyymg/s1600/escravo4.gif" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj2p6Yzd7irrNoTWZjq1KzjjdkqPpE2PHKR8enK2Bdy1BtNgV0L9PfO2U9fhYmAsKsN9bCrOze4QZ-shrhooakptMckzU6JWZAZ13YA9PkHPy7cT_IgOOMUzCAXpnS8HTodfxEui8Fyymg/s1600/escravo4.gif" height="268" width="320" /></a></div>
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Em 2015, a regulamentação da mídia pautará boa parte do debate político nacional. Difícil não entender essa agenda petista como uma simples reação a matérias fortemente oposicionistas publicadas por meios de comunicação como a revista Veja. Mas deixemos de lado essa reação imediata e foquemos nos argumentos comumente apresentados por aqueles que reivindicam um projeto de regulamentação do tipo. Claro que a primeira palavra que nos ocorre é "monopólio". Alega-se que, se cabe ao governo impedir um monopólio em qualquer setor da economia, por um silogismo simples, também cabe ao governo impedir um monopólio dos meios de comunicação. </div>
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Ora, primeiramente, cabe observar que não existe monopólio dos meios de comunicação no Brasil. "Mono - pólio", o nome já diz, implicaria em um único proprietário de todos os meios. Não é esse o caso! Na verdade, eles mesmos gostam de dizer que umas cinco ou seis famílias detêm os meios de comunicação no país. Seria então um oligopólio, certo? Rigorismos à parte, o argumento se repetiria: também caberia ao governo acabar com oligopólios. Mas será que podemos ousar criticar essa premissa maior do nosso silogismo?</div>
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Pois bem, eu não acredito que o governo deva combater monopólios ou oligopólios não violentos em quaisquer áreas. Explico. O problema com monopólios e oligopólios só surge quando os empresários estabelecidos proíbem novos entrantes no seu mercado. Por exemplo, você começa a vender um jornalzinho estudantil na sua escola e ameaça bater nos coleguinhas que imitem sua ideia, começando a vender também seus jornalzinhos. Nesses casos específicos de uso da força ou ameaça de uso da força para eliminação da concorrência, é legítimo que se use a força no sentido contrário, para garantir o livre mercado. </div>
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Note, então, como uma curiosidade, que a atuação dos governos reais não costuma se reduzir à proibição dos monopólios e oligopólios violentos. Governos são, sim, os criadores de monopólios e oligopólios violentos! São os governos que usam a força para proibir que novos entrantes apareçam em certos mercados, como, por exemplo, no precário mercado de telefonia do Brasil. Na verdade, o próprio governo, enquanto Estado, é um monopólio que criminaliza a concorrência com ele em seu território. Assim, é bem chocante que um governo, qualquer governo, venha nos dizer que é um opositor de monopólios, amigo do livre mercado.</div>
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Agora, note como a proibição dos monopólios ou oligopólios não violentos, ao invés de ser um ato de proteção da liberdade, é, na verdade, uma agressão à liberdade. Voltemos ao seu jornalzinho estudantil. Desta vez, você não usou de força ou ameaça de uso da força para desmotivar seu coleguinha a concorrer com você. Em vez disso, ele desistiu espontaneamente de competir, quando verificou que não tinha recursos suficientes para oferecer um produto de qualidade pelo preço que você oferecia. Você teve a ideia primeiro, ganhou dinheiro, ampliou seu negócio e conseguiu investir em papel de qualidade, contratou outro coleguinha para ser um ilustrador e assim por diante. O seu novo concorrente não tem capital suficiente para contratar outros coleguinhas para melhorarem a qualidade do serviço dele e nem pode investir em uma matéria-prima de tanta qualidade. O jornalzinho dele é feio, de conteúdo pobre e o preço acaba não sendo muito diferente do seu. </div>
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Resultado: ninguém (ou quase ninguém) escolhe comprar o jornalzinho do seu concorrente, porque a relação custo/benefício não compensa para o consumidor. Consequência: seu concorrente fecha por uma decisão dele, baseada em pura análise de custo e benefício para ele, uma análise na qual não entrou nenhuma ameaça de violência da sua parte. O que acontece? Você tem um monopólio não violento, uma simples situação de fato e momentânea, e uma situação que, por sinal, não fere a liberdade de ninguém, nem de concorrentes e nem de consumidores. Logo, uma ação de fora para limitar o seu negócio seria uma pura e simples proibição do sucesso.</div>
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No mais, se nenhuma violência se fizer presente, a tendência é que seu monopólio fatual seja abalado a qualquer momento por um novo entrante que acredite ter capital suficiente para conquistar ao menos uma fatia do seu mercado. Um observador externo notará, por exemplo, que você não fala muito sobre vídeo-games no seu jornalzinho, ao passo que, na escola, há um público ávido por mais matérias sobre games. Então, esse observador pode convencer investidores (outros coleguinhas) a lançarem com ele um jornalzinho só sobre games: um nicho que você não estava explorando devidamente. E por aí vai... Não há mercado realmente aberto que tenda à perpetuação de monopólios de fato, até pelo simples fato de que pessoas têm gostos e necessidades diferentes. Empiricamente, mercados monopolizados são sempre, pasmem, mercados... excessivamente regulamentados pelos governos. Irônico, não?</div>
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Ok, agora, que podemos descartar essa balela sobre monopólios (ou melhor, oligopólios), podemos questionar o que realmente quer o governo. Qual a situação de fato quando alguém limita o tamanho do seu jornalzinho (seja limitando a tiragem ou definindo em que partes da escola você pode vender), ou ainda te proíbe de começar um fanzine na escola, porque, afinal, você já tem um jornalzinho? Já vimos que apenas sua liberdade está sendo restringida, e a de mais ninguém, já que o tamanho do seu negócio, a menos que você proíba concorrentes, por si só, não cerceia a liberdade de ninguém. Mas a situação de fato que interessa ao regulador quando ele cerceia sua liberdade dessa forma é que você perde poder de disseminação do seu conteúdo. Antes, a escola inteira, se quisesse, poderia acessar conteúdo produzido por você. Agora, mesmo que alguém queira, será impedido de comprar conteúdo produzido por você, porque você está proibido de ter um negócio grande (a regulamentação definirá o que é "grande").</div>
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Mas por que interessa tanto ao governo que um empresário não possa atingir um público além de um certo limite? Simples, meu caro, nesse cenário, quem é o único que atinge a todos dentro de um mesmo território? Ele mesmo: o governo! A nossa presidente pode entrar em cadeia nacional de rádio e TV no momento em que bem entender. Além disso, os gastos públicos com propaganda governamental são sempre exorbitantes. Eventualmente, até carteiros (os funcionários de um certo monopólio governista) distribuirão material de propaganda governista, não é? Qual a melhor maneira de não se ter oposição sem ter que partir diretamente para a censura de conteúdos? Isso mesmo: você impede qualquer outro de atingir um público suficientemente grande para incomodar o governo. </div>
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Sim, outros governos fizeram isso. Por exemplo, o mesmo governo argentino que saiu à caça do Clarin usou uma TV estatal para reproduzir um documentário sobre vida animal, enquanto o povo saía às ruas para protestar... contra o governo. </div>
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Por falar em sair às ruas, dia 15 de novembro está aí. Se você precisava de mais um motivo para ir às ruas mostrar sua oposição ao PT, que tal este? Vá enquanto há canais que possam exibir sua manifestação para todo o Brasil.</div>
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Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/05507574057753299136noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7696277628071033130.post-13406269546262178332014-10-07T14:50:00.001-03:002014-10-07T14:50:11.742-03:00Libertarianismo e federalismo<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh2kKIyEQQLwmD7osErlz2hnPtKP7L7ZweUKa151QWUFkDDENePeDTjtfary45-Z0EDbdChQE25Mw_jbuPyhLYS7BPqhrE3Fvj82S_pHZIK4YdxONt1PrLMMdPb2d_lVaR-3uyPru40l9A/s1600/federalismo.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh2kKIyEQQLwmD7osErlz2hnPtKP7L7ZweUKa151QWUFkDDENePeDTjtfary45-Z0EDbdChQE25Mw_jbuPyhLYS7BPqhrE3Fvj82S_pHZIK4YdxONt1PrLMMdPb2d_lVaR-3uyPru40l9A/s1600/federalismo.jpg" height="211" width="320" /></a></div>
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Certos ideais políticos, por sua própria natureza, não são exequíveis por meio da prática da política partidária. É verdade que, no Brasil mesmo, temos partidos socialistas extremistas, que negam a legitimidade do regime democrático, porém, valem-se dele para divulgar suas ideias. Talvez, a médio ou longo prazo, essa possa até ser uma alternativa também para libertários. Seja lá como for, parece-me que a principal atuação política de um libertário deva ser o convencimento de que soluções estatais nunca são as melhores soluções para nossos problemas, seja do ponto de vista moral ou do ponto de vista pragmático. Em suma, em vez de fundar um partido, parece fazer mais sentido que o libertário dê sua contribuição a um movimento que auxilie mais e mais pessoas no entendimento de que, não, a vida não é o voto. Penso que a religião cívica precise ser abandonada para que surja uma nova sociedade verdadeiramente livre.</div>
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Contudo, este post consiste em uma reflexão sobre o tipo de ideal que poderia ser coerentemente perseguido no âmbito da política partidária para facilitar a transição entre o regime democrático e uma sociedade livre. Aliás, antes de mais nada, para não pressupor que o leitor é um profundo conhecedor de minhas irrelevantes ideias, permita que eu esclareça o que entendo por uma sociedade livre. Vejo assim toda sociedade em que indivíduos não são coagidos a tomar parte de quaisquer empreendimentos cooperativos, ou seja, sociedades em que as associações são todas voluntárias. Isso significa que, em vez do direito ao voto, uma sociedade livre reconheceria o direito do indivíduo não-agressivo de não aderir a um governo a menos que ele assim desejasse. A consequência prática seria o fim dos impostos, dado que toda contribuição teria que ser voluntária, e a permissão de governos concorrentes dentro de um mesmo território. </div>
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Enfim, agora, deve ficar mais claro por que eu disse acima que o caminho para tal sociedade não é a política partidária. Não se trata aqui de um projeto eleitoralmente concorrente para um governo democrático, mas do fim da própria democracia, no sentido em que a maioria não teria nenhuma legitimidade para legislar sobre uma minoria. Em uma sociedade livre, cada adesão a um governo teria que ser conquistada pelo convencimento efetivo daquele indivíduo. Para cobrar a adesão do indivíduo a um governo, não bastaria dizer que o indivíduo poderia ter votado no chefe daquele governo e, se não o fez, foi porque não quis.</div>
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Voltando agora ao ponto central do post, dentro do regime democrático, há Estados mais e menos nocivos à liberdade, ou seja, há Estados que se intrometem mais e há Estados que se intrometem menos na condução da vida dos indivíduos. Da mesma maneira, há Estados que permitem que os indivíduos que compõem uma mesma comunidade local gerenciem suas vidas e há Estados que centralizam e uniformizam todas as decisões.</div>
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Curiosamente, a história da federação norte-americana oferece boas razões para que defensores da liberdade defendam um poder central intervencionista, contra poderes locais. O federalismo que os pais fundadores dos Estados Unidos tentaram proteger a todos custo, antes de aceitarem uma mesma constituição, caiu em desgraça na guerra civil daquele país. Ocorreu que o poder central precisou interferir no direito dos estados para libertar escravos. Desde então, quando se usa essa expressão - "direto dos estados" - nos EUA, implica-se a defesa do racismo. </div>
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Por motivos diferentes, mas também por influência da história americana, a defesa de maior autonomia dos estados na federação brasileira também é moralmente mal vista por nossas bandas. Em geral, nossa peculiaridade é que, quando se fala em um verdadeiro federalismo, lembra-se de movimentos separatistas, que, via de regra, são atrelados ao preconceito contra o povo nordestino. Com isso, prospera um projeto de governo que centralizou as decisões como nunca se viu antes na história desse país. Não se trata apenas de enfraquecer estados e municípios do ponto de vista orçamentário, como se a esfera federal fosse menos suscetível a casos de corrupção e má gestão de verba pública. Trata-se de uniformizar um modelo de sociedade, por exemplo, através da educação, com um MEC cada vez mais poderoso. A ideia de um mesmo exame garantir a admissão em universidades de norte a sul de um país continental é apenas a ponta do iceberg. O fato é que temos um governo que vê Brasília como o único cérebro do país. As demais regiões - consideradas corruptas ou simplesmente inaptas - devem apenas implementar decisões tomadas em Brasília. </div>
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Ora, não há problema, dirão, que toda decisão relevante para esta nação seja tomada em Brasília, porque, afinal, todos estamos representados em Brasília. Será? Supondo, em prol do argumento, a legitimidade do conceito de representação política, quem está mais próximo de você: o vereador do seu município ou o deputado federal que sua cidade elegeu? Aliás, meu caro, sua cidade elegeu algum deputado federal? Se elegeu, responda-me quantos votos foram necessários para a eleição do deputado federal de sua região e quantos votos são necessários para a eleição de um vereador em seu município. Agora, diga-me em qual eleição o seu voto tem mais valor (tomando por valor o poder de influenciar o resultado da eleição): a eleição de um deputado federal ou a eleição de um vereador?</div>
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Parece-me claro que, quanto mais local o poder, maior o poder de cada indivíduo. Isso, é verdade, não impede que vizinhos sejam déspotas para com uma minoria local. Todavia, a possibilidade de que o voto da maioria viole direitos individuais é um problema inerente à democracia, e não ao federalismo, como a história pode ter feito parecer.</div>
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Do mesmo modo que indivíduos podem se associar para formar uma comunidade política local, o federalismo é uma associação de associações. Assim, não se pode respeitar o indivíduo sem respeitar cada associação. Naturalmente, assim como no caso do indivíduo, respeito implica, primeiramente, o reconhecimento do direito de deixar a associação. Portanto, sim, um libertário deve sempre defender direitos separatistas. Isso é diferente, entretanto, de defender a efetiva separação. Ao defender, por exemplo, o direito do indivíduo de não aderir a um governo, sem que ele tenha que deixar o território daquele governo, eu não defenderia que os indivíduos não continuassem como membros dos governos que lhe reconhecem o direito de saída (se existissem, claro!). É como uma esposa que defenda o direito ao divórcio, ainda que ela própria não pretenda se divorciar. São coisas diferentes! O ponto é que, se o indivíduo tem o direito de deixar uma associação, uma associação de indivíduos também deve ter o direito de deixar uma federação.</div>
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Naturalmente, na realidade, não se reconhece o primeiro direito acima, tampouco se reconhecerá o segundo. Como proceder então, na realidade, para que uma federação diminua o poder tirânico exercido sobre as associações que ela coage a permanecerem como parte dela? Creio que Nozick nos dê bons subsídios para pensarmos no assunto, quando discute o princípio da equidade no cap. 05 de <i>Anarquia, Estado e Utopia</i>, ainda que o ponto dele seja a associação de indivíduos, não a federação de associações. No caso, dois pontos do argumento dele me interessam aqui, neste cenário em que sabemos que os estados não serão autorizados a deixar a federação, o que é imoral, mas, infelizmente, é real.</div>
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O primeiro ponto (adaptando) é que, se uma associação precisa arcar com um ônus, restringindo sua autonomia em nome de um benefício que ela supostamente colhe da participação na federação, então o benefício tem que ser maior do que o ônus. Obviamente, seria abertamente agressora a federação que admitisse que obriga um determinado estado a arcar com um prejuízo por ser parte sua, mas, mesmo assim, não vai permitir que esse estado deixe a federação. </div>
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É fácil ver, porém, que será difícil encontramos um critério objetivo que prove que, sob qualquer ótica, o benefício de participar de uma federação cobre o custo implicado por isso. Tendemos a pensar em benefícios econômicos. Porém, os indivíduos de uma associação podem sentir tamanho mal-estar por terem que obedecer leis cunhadas fora da comunidade restrita com a qual eles se identificam que isso poderia ser o bastante para dizermos que o benefício de ser parte da federação não cobre o custo. Assim, esse primeiro ponto não nos ajuda muito, porque ele nos remete novamente à necessidade de consultarmos a associação sobre seu desejo de permanecer como membro da federação. Só ela pode medir o custo e o benefício, afinal!</div>
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O segundo ponto (também adaptado), talvez, nos ajude um pouco mais. Os benefícios podem cobrir os custos da inclusão na federação, mas podem fazer isso no limite, a ponto de ser quase indiferente para o estado se ele participa ou não da federação. Contudo, podem haver outros estados que, em sua própria avaliação, colhem muito mais benefícios e não estão minimamente dispostos a deixar a federação. Nesse caso, sempre partindo do pressuposto de que os estados não têm permissão para deixar a federação, é justo cobrar de cada estado o mesmo ônus?</div>
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Pensemos em termos puramente materiais para facilitar a comparação. Suponha que dois estados possuem o mesmo direito de reivindicar ajuda da guarda nacional em caso de transtornos domésticos. Porém, só um desses estados possui uma ampla rede de universidades federais em seu território, enquanto o outro tem que usar parcos recursos próprios se quiser se equiparar ao primeiro estado em termos da oferta proporcional de um número vagas de ensino superior para sua população. É justo que os dois estados arquem com o mesmo ônus para fazerem parte da federação? </div>
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Parece-me, enfim, que uma regra mínima de moralidade em uma federação seria a repartição igualitária de custos e benefícios. A violação dessa regra faz valer uma política redistributiva entre estados que só faria sentido em casos bem claros de restituição. Por exemplo, durante as décadas 1 e 2, o estado A recebeu mais benefícios do que o estado B. Logo, para que haja retificação da injustiça, durante as décadas 3 e 4, o estado B receberá mais benefícios do que o estado A, na mesma proporção. Não basta provar qual estado precisa de mais recursos para justificar a desigualdade na distribuição dos benefícios e a igualdade na distribuição do ônus (ou vice-versa), a menos que você esteja disposto a demonstrar que um estado tem o dever de prover o outro, ainda que ele nada tenha tirado desse último. Boa sorte com isso!</div>
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No mais, como dito acima, quanto mais a federação delegasse aos estados em termos de legislação, tanto melhor, dada a maior proximidade entre os vereadores e deputados estaduais com relação à população que os elege. Você pode objetar a essa ponderação, observando que as pessoas se lembram com mais facilidade de quem votaram na esfera federal. Mas isso ocorre, exatamente porque as pessoas nem sabem quais as parcas atribuições dos poderes municipal e estadual, e, quando sabem, reconhecem, com razão, que eles quase nada podem sem os repasses federais. Daí a importância do deputado federal, como uma espécie de soldado responsável por trazer (de volta?) para casa uma pequena parte dos muitos recursos concentrados na união. Inverta-se a lógica e o eleitor saberá, não apenas o nome, como o endereço do seu vereador. Já seria alguma coisa...</div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/05507574057753299136noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7696277628071033130.post-12957330093818125832014-06-06T21:39:00.001-03:002014-06-06T21:54:13.148-03:00Contra Hobbes
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://lh4.googleusercontent.com/-J2shiigPpvs/U5JfSf-IvFI/AAAAAAAACwM/B_MmWRdUIUI/s300/Photo%25252020140606213932.jpg" target="_blank" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img src="https://lh4.googleusercontent.com/-J2shiigPpvs/U5JfSf-IvFI/AAAAAAAACwM/B_MmWRdUIUI/s300/Photo%25252020140606213932.jpg" id="blogsy-1402101732760.2063" class="aligncenter" alt="" width="300" height="300"></a></div>
<p style="text-align: justify;"> </p>
<p style="text-align: justify;"> Hobbes é bem conhecido por sua defesa da racionalidade da guerra preventiva. De fato, logo no início do capítulo XIII do Leviatã, ele defende a razoabilidade da antecipação do ataque como um requerimento da auto-conservação.</p>
<blockquote><p style="text-align: justify;">there is no way for any man to secure himself so reasonable as anticipation; that is, by force, or wiles, to master the persons of all men he can so long till he see no other power great enough to endanger him: and this is no more than his own conservation requireth, and is generally allowed.</p></blockquote>
<p style="text-align: justify;">A razoabilidade da antecipação do ataque está diretamente relacionada à ausência do poder estatal. Em outras palavras, tratar-se-ia do que a razão recomenda quando o único poder a ser temido é o poder singular de outro indivíduo. A ideia é que, desejosos que somos das mesmas coisas (escassas) e equivalentes que somos em poder (enquanto indivíduos), nunca podemos nos assegurar de que não seremos atacados. Assim, devemos aumentar o nosso poder sobre os demais sempre que possível: </p>
<blockquote><p style="text-align: justify;">such augmentation of dominion over men being necessary to a man's conservation, it ought to be allowed him.</p></blockquote>
<p style="text-align: justify;">O que me interessa em especial neste post, porém, é um argumento similar que Hobbes desenvolve no capítulo seguinte, sobre contratos. Segundo esse argumento, não seria recomendado pela razão que fizéssemos primeiro a nossa parte em um contrato, na expectativa de que a outra parte também desempenhasse o que lhe cabe, a menos que houvesse um poder comum forte o bastante para obrigar esse desempenho.</p>
<blockquote><p style="text-align: justify;">If a covenant be made wherein neither of the parties perform presently, but trust one another, in the condition of mere nature (which is a condition of war of every man against every man) upon any reasonable suspicion, it is void: but if there be a common power set over them both, with right and force sufficient to compel performance, it is not void. For he that performeth first has no assurance the other will perform after, because the bonds of words are too weak to bridle men's ambition, avarice, anger, and other passions, without the fear of some coercive power; which in the condition of mere nature, where all men are equal, and judges of the justness of their own fears, cannot possibly be supposed. And therefore he which performeth first does but betray himself to his enemy, contrary to the right he can never abandon of defending his life and means of living.</p></blockquote>
<p style="text-align: justify;">Quero chamar sua atenção, em especial, para as últimas linhas, que refletem o caráter normativo ou prescritivo do ponto de Hobbes: na ausência do Leviatã, se um agente A beneficia outro agente B na expectativa de ser por ele também beneficiado, A trai seu próprio interesse, contraria um direito que ele não pode abandonar, a saber, o direito de defender a própria vida. Pelo que vejo, a justificativa para essa alegação é a falta de uma garantia de que B cumprirá sua parte. É claro que é possível que B cumpra sua parte. Mas, não havendo tal garantia, quando A cumpre primeiro a sua parte, ele arca com um custo para sua auto-conservação que bem pode não lhe render qualquer fruto. Daí que seja dito por Hobbes que, no estado de natureza, aquele que confia no outro trai a si mesmo.</p>
<p style="text-align: justify;">Tendo sempre em vista que o fundamento de todas as nossas obrigações naturais, bem como o único fim de nossos atos voluntários é a auto-preservação, a prescrição da razão, no estado de natureza, é que não façamos contratos, mas sim ataquemos, sempre que tivermos uma oportunidade. Ora, como esse estado de coisas, por si mesmo, acaba contrariando nosso interesse de auto-preservação, devemos alterar essa lógica pelo único meio possível: a criação de um poder comum que puna o início de violência e obrigue o cumprimento de contratos.</p>
<p style="text-align: justify;">Há vários pontos do argumento de Hobbes dos quais discordo. Por exemplo, Hobbes desconsidera por completo a possibilidade de que seres humanos sejam sujeitos autônomos dignos de respeito, a ponto de poder haver uma proibição moral de que sejam usados como simples meios no interesse de minha auto-preservação, ou de minha leitura do interesse deles próprios. Essa consideração poderia alterar toda a lógica que nos conduz aos braços do Leviatã, pois, por mais prudente que fosse a submissão a ele, supondo que seres humanos sejam moralmente invioláveis, eles não poderiam ser submetidos a um poder maior com base em um argumento prudencial.</p>
<p style="text-align: justify;">Ademais, posso conceber um direito natural de auto-preservação, mas não uma obrigação. Por que eu teria o dever de viver? Por que eu não poderia escolher o estado de natureza simplesmente alegando que prefiro liberdade à segurança? Note que a pressuposição da busca por auto-preservação é o que fundamenta as prescrições racionais em Hobbes. Não vejo qual a justificativa da maior racionalidade da própria busca por segurança. Em vez disso, vejo apenas a afirmação dogmática de que tal fim seria natural.</p>
<p style="text-align: justify;">Por fim, ainda que concedamos 1) que seres humanos não tenham valor moral e, portanto, possam ser submetidos a um Leviatã em nome de interesses de auto-preservação, e; 2) que a própria auto-preservação seja uma obrigação; ainda percebo algo que não fecha no argumento de Hobbes. Não é mesmo racional firmar um contrato na ausência do Leviatã? É claro que Hobbes tem razão quanto à possibilidade de que o outro não cumpra sua parte. Mas ele parece exagerar ao extremo essa probabilidade, minimizando demais as motivações egoístas para que alguém cumpra um contrato mesmo sem ter sanções legais a temer.</p>
<p style="text-align: justify;">Posso mostrar como obtemos sucesso cotidiano fazendo cálculos diferentes dos cálculos prescritos por Hobbes. Hobbes não nos pediu para que atentássemos a exemplos do cotidiano dentro do Estado ao imaginarmos como seria o estado de natureza? Pois bem, ofereço dois exemplos banais e convido meu leitor a pensar em outros tantos a partir de sua própria experiência.</p>
<p style="text-align: justify;">Em Fortaleza, queria comprar um shorts em uma feira de artesanato. Naturalmente, a feirante não dispunha de um provador. Como ela também não aceitava cartão e eu estava sem dinheiro, ela sugeriu que eu levasse o shorts para o hotel, provasse e voltasse depois com o shorts ou o dinheiro. Quando eu voltei com o dinheiro, ela me contou que sempre age assim, sendo que, vez ou outra, as pessoas levam muitas roupas e não aparecem mais. Ela simplesmente decidiu não tomar esses casos como regra e, com isso, segundo ela mesma, tem tido mais ganhos do que perdas. Por que ela estaria traindo a si mesma ao negociar assim?</p>
<p style="text-align: justify;">Já hoje, ocorreu o inverso. Levei uma roupinha da Mel para trocar e o Pet Shop não tinha outra peça para pronta entrega. Deixei a roupinha lá, sem nenhum comprovante, e vou esperar que me liguem quando a roupinha chegar. Se não ligarem, não tenho como registrar nenhuma queixa contra a loja perante o Leviatã. Mesmo se tivesse, não compensaria o trabalho. </p>
<p style="text-align: justify;">Bom, o que quero dizer com isso é que o cotidiano está repleto de exemplos de contratos que cumprimos mesmo sabendo que não há possibilidade de "enforcement". Em outras palavras, depois de nos beneficiarmos do contrato, nós ainda fazemos a nossa parte, conscientes de que não sofreríamos uma punição legal se não a fizéssemos. Ou, então, quando do outro lado, nós confiamos que o outro cumprirá sua parte depois de termos feito a nossa. </p>
<p style="text-align: justify;">E nós não agimos assim, necessariamente, por sermos bons, embora escrúpulos morais e laços afetivos possam ter seu papel aqui. Nós agimos assim, por exemplo, porque queremos seguir firmando esse tipo de contrato. É do nosso interesse egoísta que contratos assim sejam realizados e, mais ainda, que confiem que vamos fazer nossa parte neles. Infelizmente, essa é uma possibilidade que Hobbes mal contempla. Nesta passagem, é que ele me parece chegar mais perto dela:</p>
<blockquote><p style="text-align: justify;">The force of words being (as I have formerly noted) too weak to hold men to the performance of their covenants, there are in man's nature but two imaginable helps to strengthen it. And those are either a fear of the consequence of breaking their word, or a glory or pride in appearing not to need to break it. This latter is a generosity too rarely found to be presumed on, especially in the pursuers of wealth, command, or sensual pleasure, which are the greatest part of mankind. The passion to be reckoned upon is fear.</p></blockquote>
<p style="text-align: justify;">Ora, eu não falava acima de um interesse em parecer não precisar quebrar pactos por orgulho. Eu falava do interesse pragmático de querer celebrar novos pactos no futuro. É esse interesse que parece ter escapado a Hobbes justamente no capítulo que ele dedica à lógica dos contratos. A sanção para aquele que não faz sua parte após ser beneficiado pelo outro é não mais poder buscar ajuda nesse outro ou naqueles que tiveram ciência do seu comportamento. </p>
<p style="text-align: justify;">Pelas considerações acima, penso que Hobbes está simplesmente errado ao generalizar e tratar todo e qualquer contrato de confiança como contrário ao nosso interesse racional na ausência do Leviatã. No caso, a feirante de Fortaleza me parece mais sábia do que esse grande filósofo que legou um preconceito tão arraigado na filosofia política que o sucedeu. Talvez, os filósofos devessem seguir o conselho do próprio Hobbes e observar melhor o cotidiano. Veriam que trancamos nossos bens, sim, mas também selecionamos pessoas em quem confiamos, mesmo quando a espada do Leviatã não pode alcançá-las por nós.</p>
<p style="text-align: justify;"> </p>
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<div style="text-align: right; font-size: small; clear: both;" id="blogsy_footer"><a href="http://blogsyapp.com" target="_blank"><img src="http://blogsyapp.com/images/blogsy_footer_icon.png" alt="Posted with Blogsy" style="vertical-align: middle; margin-right: 5px;" width="20" height="20" />Posted with Blogsy</a></div>Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/05507574057753299136noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7696277628071033130.post-68634424879007888262014-05-21T10:21:00.001-03:002014-05-21T14:57:18.272-03:00O Estado de Bem-Estar Social como uma Confusão Conceitual<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjYyAD1k3PzaQmpQdoXxmLijmtvvYLRD85nAEIuKHHPqWgab4LLdGMp6gBMLsLDtxbK1WvS1vcFQ1ngJb6TVkSi8HakWI5kWlxlMAPBOZFLXfXi2qawGws4Iv9787yGZCssQjZKI6CM1y0/s1600/restabelecimento_bem_estar_social_grande.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjYyAD1k3PzaQmpQdoXxmLijmtvvYLRD85nAEIuKHHPqWgab4LLdGMp6gBMLsLDtxbK1WvS1vcFQ1ngJb6TVkSi8HakWI5kWlxlMAPBOZFLXfXi2qawGws4Iv9787yGZCssQjZKI6CM1y0/s1600/restabelecimento_bem_estar_social_grande.jpg" /></a></div>
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No último encontro de seu grupo de pesquisa, Aguinaldo comentava como Kant é necessário para a organização de sua vida mental. Essa constatação não poderia ser mais verdadeira para mim. Discordando ou não de Kant quanto ao conteúdo de teses, o fato é que ele oferece o referencial teórico, o quadro conceitual pelo qual consigo me orientar no pensamento, elaborando questões e buscando respostas para elas. O que tenho em mente fica claro se tivermos em vista, por exemplo, a importante distinção entre deveres perfeitos e imperfeitos. Aliás, é esse o ponto: Kant sempre tem em mãos uma distinçãozinha que evita que caíamos em desgraça, ou seja, em confusão.</div>
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É verdade, porém, que a distinção nem sempre é ela mesma tão clara. Muita bibliografia já foi produzida, por exemplo, sobre o cerne da diferença entre deveres perfeitos e imperfeitos. Obviamente, não é minha intenção entrar em debates hermenêuticos neste espaço. É a intuição fundamental da distinção que me interessa. Entendamos, então, por deveres perfeitos, os deveres relativos a práticas de ações que podem ser diretamente especificadas a partir de um procedimento formal. Isso implica em deveres estritos, que não deixam margem para o juízo moral do agente. Por exemplo, não se pergunta para com quem temos o dever de não cometermos fraude, ou quais assassinatos não devemos cometer. Tendo em vista uma investigação que Nozick desenvolve muito proximamente ao espírito da ética kantiana da qual quero me apropriar livremente aqui, podemos dizer que deveres perfeitos dizem respeito aos deveres que temos de não respondermos ao valor da pessoa humana como se ele fosse um desvalor. Em outras palavras, deveres perfeitos são deveres de não tratarmos o valor como se ele fosse algo que pudesse ser destruído. Comportamentos destrutivos ou agressivos à pessoa humana são, portanto, comportamentos absolutamente reprováveis.</div>
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Agora, há deveres imperfeitos, no sentido não de deveres que podemos deixar de lado, mas no sentido de deveres que comportam uma latitude para a decisão do agente quanto aos casos de aplicação. Por exemplo, provavelmente, você acredita que tenhamos algum dever de cooperação ou, simplesmente, de caridade. No entanto, da aceitação desse preceito, não decorre que tenhamos o dever de ajudarmos a toda e qualquer outra pessoa, em todas e quaisquer circunstâncias, com relação a todas e quaisquer necessidades suas. Quer dizer, não fica determinado o que devemos fazer com relação a quem, pois uma coisa é termos um dever lato de beneficência e outra coisa é termos o dever estrito de darmos R$100,00 ao mendigo João que nos aborda no semáforo da esquina X. Quanto a esses deveres, cabe nossa ponderação pessoal com respeito a quem devemos ajudar, em que circunstâncias, com o que... Por isso, do seu dever lato de beneficência não decorre um direito meu de ser assistida por você.</div>
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A natureza desses deveres imperfeitos também ficará mais clara se eu continuar abusando de Nozick. São deveres para que eu responda ao valor da pessoa humana como algo de valor, procurando mantê-lo em existência. Naturalmente, se eu não faço isso, isto é, se eu me omito e deixo de evitar que o valor seja destruído, isso não implica que eu mesma tenha destruído o valor. Por isso, são deveres profundamente diferentes com relação aos deveres perfeitos. Não tomar interesse pelo valor como algo de valor não é o mesmo que agir no sentido de destruí-lo como se ele não tivesse valor ou fosse mesmo algo de nocivo. A indiferença por uma pessoa não é idêntica a uma atitude pela qual eu a tome por uma coisa e a use como tal. Eu nunca posso usar pessoas como se fossem coisas, mas, por vezes, posso ser indiferente a elas, como quando passo por estranhos na rua sem sequer atentar para a existência deles. A minha indiferença não colabora para a manutenção do valor das pessoas, mas também não é destrutiva desse valor.</div>
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Enfim, agora, por mais que eu tenha deixado possíveis questões em aberto acima, afinal, isto não é um livro de filosofia, já posso delinear meu ponto sobre o Estado de Bem-Estar Social. Os seus proponentes tomam deveres imperfeitos como se fossem perfeitos. É como se eu tivesse o dever estrito de manter o valor de todos, do mesmo jeito que tenho o dever estrito de não destruir o valor de ninguém. Ora, como eu poderia colaborar para manter o valor de todos? Parece claro que um tal dever estaria além da capacidade humana. E é por isso mesmo que o proponente do Estado de Bem-Estar Social não acredita que associações voluntárias possam fazer as vezes do Estado no tocante à beneficência. Só o Estado pode tirar um pouco de todos e criar um fundo disponível para o benefício de todos. Mas se a ação beneficente fosse voluntária, note que eu, necessariamente, teria que escolher a quem ajudar, com qual causa colaborar e com quanto. É essa dinâmica do dever imperfeito que o proponente do Estado de Bem-Estar Social não aceita. Ele quer implantar aqui a dinâmica estrita dos deveres perfeitos.</div>
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Para defender seu caso contra a distinção entre deveres perfeitos e imperfeitos, o advogado do Estado de Bem-Estar Social carrega nas tintas e imagina casos extremos em que qualquer sujeito julgaria estar diante de uma instância de aplicação do dever imperfeito. Por exemplo, imagine que você seja o único transitando por um dado caminho à noite. O lugar é deserto e você o procurou exatamente porque queria ficar sozinho. Você está, portanto, ciente de que as chances de mais alguém passar por ali são mínimas. Trata-se também de uma época de inverno rigoroso, sendo que o frio vai se intensificando conforme a noite cai. Então, você ouve o choro de um bebê e percebe, à beira do caminho, que ele foi abandonado ali à própria sorte. Ora, se você não socorrer o bebê, é muito provável que ele não resista até o amanhecer. O que você deve fazer? </div>
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É claro que essa decisão não é como a decisão de doarmos R$10,00, R$50,00 ou nada para um determinado pedinte no semáforo. O contexto reúne circunstâncias tão extremas que facilitam o juízo moral do agente. Sabemos que devemos cumprir o dever imperfeito ajudando o bebê. Mas, veja bem, nem por isso, ele seria então um dever perfeito. A diferença não foi anulada. A minha omissão no caso de um bebê que não coloquei no mundo não é equivalente a um ato meu visando assassiná-lo. Eu não seria responsável pela morte dele simplesmente por ter o poder de evitá-la e escolher não fazê-lo. Apenas era um caso claro em que eu tinha que cumprir o dever de manter o valor da pessoa humana em existência. Era um caso claro em que a resposta apropriada ao valor não poderia ser a indiferença. Mas esse caso atípico, excepcional não pode ser convertido em uma regra que anule a latitude própria dos deveres imperfeitos. No máximo, inclusive, a atenção para com casos assim poderia vir a justificar a criminalização da omissão de socorro, mas não a imposição da cooperação social em geral.</div>
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Mas será que é apenas pela sua latitude inerente que deveres imperfeitos não podem ser objeto de imposição? Quero encerrar esse texto dizendo que há algo mais aqui. Como Nozick bem nota na <a href="http://www.juliansanchez.com/an-interview-with-robert-nozick-july-26-2001/" target="_blank">última entrevista</a> que deu em vida, aquela que gostam de esquecer pelo fato dele se reafirmar nela como libertário, quando impomos o que estou chamando aqui de deveres imperfeitos estamos ferindo o que estou chamando aqui de deveres perfeitos. A imposição de que alguém responda positivamente ao valor, mantendo-o em existência, implica em tratar esse alguém como sendo ele próprio algo sem valor, algo que pode, portanto, contra sua vontade, ser o mero recurso ou instrumento de minha própria boa ação. Por isso, a única forma consistentemente moral de respondermos positivamente ao valor é a cooperação voluntária, não o Estado de Bem-Estar Social ou algo que o valha.</div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/05507574057753299136noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7696277628071033130.post-62678606625694342382014-05-09T14:35:00.000-03:002014-06-10T11:36:39.726-03:00Orange is the new black, ou por que cadeia não é melhor que linchamento<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhyIUnj2A6wxvNxvbKpCCG0nTmOo5OXaOsKMt61EJuynM2KQ-kHQhXMQN0GJROjLeeL5Q0g8V3m3TUDuF3LwTKMs30zIPZFfC0bed7ZYTQ1dHxATuQKfrt-BYRMSN44-P8wDHxPfgrhmZ4/s1600/o-ORANGE-IS-THE-NEW-BLACK-facebook.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhyIUnj2A6wxvNxvbKpCCG0nTmOo5OXaOsKMt61EJuynM2KQ-kHQhXMQN0GJROjLeeL5Q0g8V3m3TUDuF3LwTKMs30zIPZFfC0bed7ZYTQ1dHxATuQKfrt-BYRMSN44-P8wDHxPfgrhmZ4/s1600/o-ORANGE-IS-THE-NEW-BLACK-facebook.jpg" height="213" width="320" /></a></div>
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Depois de House of Cards mostrando a política pelo que ela é, o Netflix faz mais um ponto pela causa da liberdade. Falo de Orange Is The New Black. É inevitável assistir a série e pensar na hipocrisia de quem se choca com linchamentos para acusados de crimes violentos, enquanto tolera o encarceramento de indivíduos que não cometeram violência alguma. Uma coisa não é melhor do que a outra do ponto de vista da violação dos direitos individuais. </div>
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No entanto, para dizer a verdade, o que mais me faz refletir quando veja a série nem é o modo como o Leviatã encarcera uma mera comerciante e a transforma em alguém que, agora sim, precisa praticar violência para sobreviver. Nisso, eu sempre penso quando vejo um noticiário qualquer. O erro terrível que me angustiou enquanto eu acompanhava a primeira temporada da série foi o próprio encarceramento como pena. E isso, justamente, porque a série não mostra condições materiais terríveis na prisão. Pelo contrário, a violência dos carcereiros contra as presidiárias não é um ponto explorado. Não há estupros (exceto por um caso forjado para incriminar um carcereiro) ou espancamentos, por exemplo. As condições de limpeza também parecem razoáveis. Não há super lotação. A comida não nos lembra dos casos do Maranhão. Em suma, parece que estamos diante do melhor que um presídio poderia ser, dadas as circunstâncias. E é assim que você nota como o cárcere, por si só, é aviltante para a dignidade humana.</div>
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Muita gente acredita que basta que a dor física não seja infringida e, pronto, a pena é digna. Eu não entendo o porquê dessa concepção. A autonomia do ser humano, a meu ver, é muito mais atingida quando ele perde o direito de decidir quando ir ao banheiro, o quanto comer, enfim, como conduzir cada mísero detalhe de sua vida, do que quando ele é submetido a um castigo físico passageiro. Em outras palavras, quer me parecer que uma chibatada nas costas seja menos humilhante do que ter que pedir autorização para tomar um banho. O cárcere, em suma, foi planejado para poupar o corpo, mas tirar do indivíduo exatamente a capacidade que o torna humano: a autonomia.</div>
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Por essa razão, defendo que o cárcere seja adotado, não como pena, mas como proteção da sociedade em casos extremos, quando o indivíduo, por exemplo, mostra-se um assassino ou estuprador em série. Mas também não estou defendendo o retorno de penas físicas. Penso que a melhor maneira de punir um indivíduo que não represente um perigo real para a integridade física dos demais seja o trabalho: ele causou um mal, terá que produzir um bem proporcional. Por exemplo, um indivíduo que roubou o equivalente a 50 mil reais teria que reparar esse prejuízo e, posteriormente, como pena, trabalhar por um tempo proporcional ao dano causado. O saldo negativo teria que se tornar um saldo positivo proporcional. Afinal, se apenas zerássemos a conta, não haveria punição, mas só reparação. Naturalmente, como não penso que o indivíduo deva ser apartado da sociedade e como ele precisaria se sustentar nela. Eu penso esse trabalho comunitário, digamos assim, para seu tempo livre. E se ele se recusasse? Bem, então, eu penso que ele deveria ser tratado como se trata hoje um fugitivo de um presídio. Em último caso, poderiam usar munição letal contra ele.</div>
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Penas alternativas como o trabalho comunitário também têm inúmeras vantagens, se pensarmos de uma forma mais consequencialista. Um detento perde seu contato com a realidade. O mundo dele passa a ser o aquário da prisão. É óbvio que o retorno será muito difícil, para muitos, até impossível. É melhor para todos que a sociedade veja alguém que, episodicamente, violou um direito como uma pessoa qualquer que, nem por isso, representa um risco maior que qualquer outro. Isso só acontece se a pessoa não é retirada do convívio com as demais. A prática de um crime não deveria significar a perda de todos os outros direitos, a anulação da pessoa enquanto tal, mas apenas a necessidade de uma restrição temporária à sua liberdade, até que você retribua com um bem o mal que fez.</div>
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Pelos mesmos motivos, eu defenderia que o trabalho penal fosse praticado na companhia de outros empregados comuns, e não de outros condenados. Por sinal, não me parece que reunir condenados em um mesmo espaço seja uma ideia minimamente inteligente. Além da possibilidade de que o detento adquira novas habilidades criminosas e conheça futuros comparsas, muitas vezes, ele ainda estará recebendo uma pena maior do que a privação da liberdade de ir e vir, já que, além de ser submetido às ordens do sistema em si, ele ainda poderá ser submetido às ordens dos demais. </div>
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Eu não conheço caso de presídio eficiente no que tange à proteção de um detento quanto aos desmandos de outro, sendo que ninguém foi condenado a isso. Na verdade, eu não vejo sequer vontade para o enfrentamento do problema, visto que grande parte da população acredita que direitos humanos não devem se aplicar a condenados. Aliás, é interessante notarmos que, uma vez presidiários, o ladrão de galinha e o maior dos facínoras passam a ser o mesmo diante da sociedade. É interessante a esse respeito a cena de Orange Is The New Black, em que um carcereiro experiente ensina a mais jovem que ela não deve se referir a detentas pelos nomes, mas apenas como "detentas", porque, para o sistema, as detentas devem sentir que são todas iguais. Isso mostra o desejo de aniquilação da personalidade. Esse projeto, infelizmente, é bem sucedido, porque nós, aqui fora, também passamos a pensar em todos eles, lá dentro, como iguais.</div>
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Enfim, posso estar errada. Como não sou especialista, já devem existir milhões de propostas melhores do que a minha. Meu objetivo com este post é apenas te convidar a refletir um pouco sobre o absurdo do sistema penitenciário estatal, que massacra milhões mundo afora, em vez de ficar aí choramingando apenas por algumas notícias isoladas de linchamento. E veja que eu nem falei das condições das cadeias e presídios do Brasil, que fazem as instalações da série parecerem um palácio...</div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/05507574057753299136noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7696277628071033130.post-18548599396737992612014-03-30T10:33:00.001-03:002014-03-30T10:42:28.546-03:00Pode um argumento ser coercivo?<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://lh6.googleusercontent.com/-OuQLU75NocI/UzgdEFfFaqI/AAAAAAAACn0/hMLiMyFqeQM/s320/Photo%25252020140330103301.jpg" target="_blank" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img src="https://lh6.googleusercontent.com/-OuQLU75NocI/UzgdEFfFaqI/AAAAAAAACn0/hMLiMyFqeQM/s320/Photo%25252020140330103301.jpg" id="blogsy-1396186920412.1284" class="aligncenter" alt="" width="320" height="320"></a></div><p style="text-align: justify;"> Desde que me mudei para a UEL, com muito gosto, tenho lecionado uma disciplina chamada "filosofia e argumentação" para várias turmas do curso de direito. Assim que assumi as primeiras turmas, em uma conversa informal, eu comentava com um amigo o modo como vejo as diferenças essenciais entre a maneira como o advogado faz uso de um argumento e a maneira como um filósofo o faz. Para o advogado, dizia eu, é essencial a persuasão de um outro. Como é trivial constatar, mais do que ele próprio estar convencido, o advogado deve convencer. Em suma, sua missão é causar a existência de uma crença na mente de uma ou mais pessoas, crença esta que, curiosamente, nem precisa ser compartilhada por ele próprio. Já o filósofo, dizia eu para protesto veemente de meu amigo, não precisa ter a menor preocupação com a persuasão. </p><p style="text-align: justify;">Naquele momento, eu não tinha em mente algum juízo de valor negativo sobre um filósofo que tentasse persuadir alguém sobre uma tese filosófica. Apenas me parecia uma tarefa alheia à sua atividade. Mas, nisso, ocorreu a meu amigo uma tese bastante exótica de Nozick, autor que eu mesma ainda não lia à época. Segundo meu amigo, Nozick acreditaria que a tentativa de persuasão por meio de argumentos contaria como uma forma de coerção. Confesso que nem dei muito bola para essa ideia até alguns dias atrás, quando, por acaso, deparei-me com esse texto de Nozick. E não é que achei que ele faz mesmo algum sentido?</p><p style="text-align: justify;">Além de examinar o vocabulário usado em debates na língua inglesa, mostrando as metáforas de força, Nozick atenta para o fato de que, em uma tentativa de prova, visamos fazer com que o outro tenha que consentir com a verdade de uma proposição, quer ele queira ou não. É por isso que, conforme ensino aos meus alunos do direito, ao provarmos algo para alguém, não partimos de proposições escolhidas aleatoriamente, mas sim de proposições que sabemos serem aceitas por nosso interlocutor. A intenção é que ele não possa recusar a proposição que queremos que ele aceite, dado que ele aceita nossa premissa. É assim que, metaforicamente falando, nós o forçamos a consentir com o que queremos.</p><p style="text-align: justify;">Ora, neste ponto, você dirá que isso não conta como coerção em qualquer sentido relevante por duas razões: primeiro, o instrumento utilizado é a razão do próprio ouvinte; segundo, mesmo que a lógica o obrigue a assentir com a verdade de uma conclusão (dado o fato dele ter aceito a verdade da premissa), ele ainda é livre para se recusar a acreditar. Naturalmente, Nozick concorda que não se trate aqui propriamente de coerção. Ele diz que persuadir alguém, afinal, não é o mesmo que sequestrá-lo para operar à força seu cérebro, colocando nele uma crença. Porém, há espaço para a analogia com a coerção física. Primeiro, é você quem está conduzindo o processo propositadamente. Daí sua escolha da premissa apropriada à prova: aquela que seu ouvinte aceita. Segundo, há, sim, uma punição para quem não aceita a conclusão, aceitando a premissa: a pessoa será tachada de "irracional".</p><p style="text-align: justify;">Claro, essa punição, diz Nozick, é fraca. Eu observo que ela não viola qualquer direito do seu interlocutor, afinal, seu interlocutor não tem o direito de exigir uma avaliação positiva de sua parte. A persuasão por meio de argumentos, penso eu, difere essencialmente das ameaças juridicamente reprováveis, porque, nas últimas, caso o outro recuse dar seu assentimento ao que quero, eu anuncio minha intenção de agredir, diretamente, sua liberdade, ou, ao menos, sua propriedade. Quer dizer, o juridicamente reprovável é o anúncio da intenção de violação de um direito em caso da pessoa que ameaça ser contrariada. Eu não posso ser juridicamente reprovada se eu, simplesmente, anuncio que não falarei mais com você se você não disser ou fizer o que quero. Nozick não explica o ponto dessa maneira, mas parece-me bem consciente dele ao se limitar a dizer que quem força o outro a ter que aceitar uma verdade por meio de argumentos não está sendo "nice". Ademais, quando ele fala em auto-defesa, para esses casos, ele se limita a mencionar a formulação de contra-argumentos, e não, obviamente, o uso de força física contra quem tenta persuadi-lo.</p><p style="text-align: justify;">Enfim, eu ainda não tenho certeza se cabe alguma reprovação moral, ainda que não jurídica, a quem tenta me persuadir da verdade de uma proposição p, em que eu não quero acreditar de bom grado. Mas Nozick tem um ponto, ao menos, em dizer que o objetivo do filósofo não é a persuasão. Gosto da metáfora que ele usa ao dizer que a persuasão é uma matéria do departamento de relações externas da minha mente. O que importa, do ponto de vista do meu próprio sistema de crenças, é o que o outro diz, e não se ele acredita nisso ou não. Concordando com isso, antes de ler esse texto, naquela conversa com meu amigo, eu me lembrei de Trasímaco dizendo a Sócrates para responder o argumento, sem se preocupar em saber se ele, o próprio Trasímaco, acreditava na tese defendida ou não. De fato, como diz Nozick, se o cético me disser que estava brincando, isso não muda em nada o problema que ele me traz.</p><p style="text-align: justify;">Mas, se filósofos não são advogados, se seu fim não é persuadir o público quanto à verdade de uma tese, qual é, então, seu propósito? Bom, eu tenho me identificado tanto com Nozick, justamente porque, como digo desde o início, eu escrevo este blog para mim, compartilhando-o com outros que podem ter as mesmas angústias. Certamente, se meu objetivo fosse o convencimento de alguém, eu defenderia minhas posições quando compartilham meus posts em debates de internet (na verdade, eu mesma os compartilharia), ou, ao menos, eu aceitaria convites para publicar meus posts em portais de muito maior repercussão que este humilde blog. Não o faço, porque meu objetivo é a inteligibilidade, e não a persuasão. Aliás, acho que, uma vez, li em Lebrun: "encontrar a inteligibilidade, eis o triunfo do filósofo". </p><p style="text-align: justify;">Por sinal, por ver a filosofia como a derrota da ininteligibilidade, e não de uma tese adversária, estou encantada com a obra <em>Philosophical Explanations</em>, ainda mais do que estive com <em>Anarchy, State, and Utopia.</em> Na verdade, <em>Philosophical Explanations</em> explica o que muitos não entenderam em <em>Anarchy, State, and Utopia</em>. A respeito desta última obra, Nozick foi acusado de não provar suas teses, pois ele não provou nela que existiriam direitos individuais. Ora, não entenderam que <em>Anarchy, State, and Utopia</em> já era uma philosophical explanation! Ou seja, Nozick queria explicar como seria possível um Estado se acreditamos que os seres humanos possuem certas características empiricamente determinadas e, ainda, são dotados de direitos individuais invioláveis. Quer dizer, ele visa construir uma teoria que compatibilize conjuntos de proposições que, aparentemente, se opõem. Isso não é pouca coisa! Inclusive, se for uma tentativa bem sucedida, refuta o anarquista, que argumenta ser impossível tal compatibilização.</p><p style="text-align: justify;">Interessantemente, <em>Philosophical Explanations</em> também joga luz na minha leitura do resultado da primeira parte de <em>Anarchy, State, and Utopia</em>. Como eu já disse neste blog, o que Nozick compatibiliza com direitos individuais não é o que os próprios anarquistas entendem por Estado. É uma "state-like entity". Em <em>Philosophical Explanations</em>, justamente, ele diz que, por vezes, não podemos explicar como é possível exatamente o que a outra parte argumenta ser impossível, mas apenas algo quase tão bom quanto. Muito bem, eu digo que aquela "state-like entity" de <em>Anarchy, State, and Utopia</em> era, para Nozick, algo quase "tão bom" quanto o Estado, e algo que ele teria conseguido compatibilizar com direitos individuais. <span style="line-height: 1.3em;">Em <em>Philosophical Explanations</em>, Nozick vai um pouco além em suas explicações morais, procurando explicar, por exemplo, que podemos ter valor, e, portanto, direitos individuais, mesmo em um mundo causalmente determinado, um problema clássico da história da filosofia. Bom, de minha parte, o que eu quero é entender coisas assim. Naturalmente, toda ajuda é bem-vinda.</span></p><p> </p><div style="text-align: right; font-size: small; clear: both;" id="blogsy_footer"><a href="http://blogsyapp.com" target="_blank"><img src="http://blogsyapp.com/images/blogsy_footer_icon.png" alt="Posted with Blogsy" style="vertical-align: middle; margin-right: 5px;" width="20" height="20" />Posted with Blogsy</a></div>Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/05507574057753299136noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7696277628071033130.post-65094983906055566442014-03-21T20:12:00.001-03:002014-03-22T04:05:38.750-03:00Desafio Ancap<p style="text-align: justify;"> Já repararam como anarco-capitalistas são odiados por boa parte dos libertários que se declaram mini-arquistas? Claro que sim, a pergunta foi apenas retórica. Eu não dou a mínima para nossa impopularidade e, por isso mesmo, gostaria de brincar com ela lançando aqui uma provocação aos libertários adeptos do Estado mínimo. Como sabem, ancaps temos a imagem que temos por, supostamente, acreditarmos que somos os únicos libertários coerentes. Bom, eu gostaria de mostrar que temos bons motivos para nos considerarmos assim, portanto, que não somos pretensiosos. </p><p style="text-align: justify;">Primeiramente, considere o seguinte: não classificarei alguém como libertário em sentido mínimo, caso ele não aceite o princípio segundo o qual todos os direitos, em última instância, devem ser redutíveis a direitos individuais. Esse princípio já foi textualmente afirmado até por um certo senador republicano que postula a presidência dos Estados Unidos. É a ele que você, libertário, tem em mente quando diz que o Estado não pode lhe forçar a fazer caridade. Muito bem. Tenhamos esse princípio em mente como o nosso mínimo denominador comum.</p><p style="text-align: justify;">Agora, façamos o seguinte experimento de pensamento. Em uma certa sociedade, duas agências de proteção ofertam seus serviços: as agências A e B. A e B publicam os mesmos códigos legais, exceto por uma lei L que pertence aos códigos de B, mas não aos códigos de A. Adicionalmente, ambas publicam o mesmo código processual. Em um julgamento conduzido publicamente de acordo com esses códigos, A impõe a um sujeito S, que não é cliente de B, a mesma sanção que B teria imposto em um caso similar sob todos os aspectos relevantes. Sem afirmar o contrário, B anuncia que punirá A de acordo com L, e age de acordo com esse anúncio. Acusação segundo L: A usou a força no mesmo território em que B atua sem ter sua autorização.</p><p style="text-align: justify;">Desafio: reduza o direito de B de punir A a um direito individual.</p><p> </p><div style="text-align: right; font-size: small; clear: both;" id="blogsy_footer"><a href="http://blogsyapp.com" target="_blank"><img src="http://blogsyapp.com/images/blogsy_footer_icon.png" alt="Posted with Blogsy" style="vertical-align: middle; margin-right: 5px;" width="20" height="20" />Posted with Blogsy</a></div>Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/05507574057753299136noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7696277628071033130.post-85456136101343054372014-03-02T10:43:00.003-03:002014-03-02T10:43:30.312-03:00Anarquia e lei<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgvTljfnUKjPCfA9GiaZt0F9VBJgbI2P8oyCVh9t-zz4WEY_RMQ30AhQgP_nFx1JbpKlQEKT8O5m_EcI1671Rri-_QMhKRRz3N3WqQD78AIDasdRjEsUCUqs8rP14zKuTRX85IQEjkqgpE/s1600/os-10-mandamentos-de-deus.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgvTljfnUKjPCfA9GiaZt0F9VBJgbI2P8oyCVh9t-zz4WEY_RMQ30AhQgP_nFx1JbpKlQEKT8O5m_EcI1671Rri-_QMhKRRz3N3WqQD78AIDasdRjEsUCUqs8rP14zKuTRX85IQEjkqgpE/s1600/os-10-mandamentos-de-deus.jpg" /></a></div>
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Muitos anarquistas gostam de dizer que anarco-capitalistas não compartilhariam seu gênero. No que me diz respeito, a suspeita faz todo sentido. A concessão que faço aos anarquistas têm um sentido bem preciso: eu não acredito que uma associação tenha direitos irredutíveis aos direitos individuais de seus membros. A consequência prática dessa rejeição de direitos especiais à coletividade é a rejeição de um direito ao monopólio da execução do direito. Assim, se eu sou anarquista, então Nozick, por exemplo, também é, já que ele não defende qualquer monopólio de direito. Enfim, isso, eu até já venho explicando neste blog.</div>
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Ultimamente, eu tenho pensado nos direitos individuais diante do executor do direito. Meu último post, em que tratei de direitos processuais, já é um exemplo dessa minha preocupação recente. Se pensarmos a execução do direito na forma de um silogismo jurídico em que a premissa maior é a lei, enquanto a menor expressa a averiguação do que fez o indivíduo, juntamente com a demonstração de seu grau de responsabilidade pelo ato, então, no último post deste blog, eu tratei da menor. Eu defendi que ninguém tem o direito de executar o direito sem, antes, provar a culpa do réu para além de toda dúvida razoável. Para tanto, eu me baseei no princípio epistêmico de Nozick, segundo o qual não basta que o indivíduo seja culpado para que você tenha o direito de puni-lo, é preciso também que você seja capaz de provar sua culpa. Naturalmente, da rejeição desse princípio decorreria que não teríamos o direito de impedir alguém de praticar violência contra qualquer outro com base em simples alegações desprovidas de qualquer fundamento.</div>
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Neste post, eu quero me ocupar da premissa maior daquele silogismo jurídico: a lei. Ora, eu acredito em direitos naturais, portanto, em leis naturais, no sentido kantiano de princípios <i>a priori </i>ou racionais do direito. Em outras palavras, eu acredito que há leis que são dedutíveis de nossa condição moral - da própria dimensão normativa da existência humana como tal - sendo, por conseguinte, independentes de nossa situação social ou de contratos que tenhamos firmado. Aliás, consiste nisso, e apenas nesse aspecto negativo, a sua "naturalidade". Mas, infelizmente, a precisão do conteúdo desse direito natural, mesmo entre jusnaturalistas, está longe de ser incontroversa. </div>
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Certamente, o problema mencionado acima - a ausência de um consenso sobre o conteúdo do direito natural - não é nenhuma peculiaridade do anarquismo. Se postularmos um direito ao monopólio da execução do direito, nada se resolve. Pelo contrário, o problema fica agravado, porque estaremos submetidos a um poder que, de forma alguma, se pautaria por uma lei incontestável. Dito isso, o que podemos fazer para aplicarmos o direito diante da multiplicidade de interpretações do direito?</div>
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Parece-me que, em primeiro lugar, é preciso que seja garantida a segurança jurídica, isto é, é preciso que a lei seja publicada antes de ser aplicada. Você não pode aplicar uma punição sem que o punido saiba que está sujeito a ser punido, como se sua interpretação do direito natural fosse auto-evidente. Além de garantir a segurança jurídica, a publicação das leis garante também a possibilidade de que elas sejam contestadas e, eventualmente, aprimoradas. É claro que alguém não poderia ter o direito de evitar uma punição simplesmente alegando não concordar com a lei. A admissão desse tipo de defesa tornaria todo direito inaplicável. O que quero dizer é que não se pode, acima de tudo, criminalizar o próprio debate a respeito da legitimidade das leis públicas. Essa necessária abertura ao debate decorre do próprio fato de ninguém ser o monopolista por direito da interpretação e da aplicação do direito.</div>
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Outro aspecto importante da publicidade das leis é a necessidade de que as sanções sejam explicitadas com antecedência. O simples fato de um indivíduo ter violado uma lei, por mais que a consideremos uma expressão correta do direito natural, não dá aos demais o direito de fazerem o que bem entender dele para todo o sempre. Não posso alegar: "João violou uma lei, portanto, João passa a ser um sujeito destituído de direitos perante a sociedade, que pode tratá-lo, doravante, como simples coisa". É preciso que a lei defina a maior e a menor pena a que João se submete ao violar a lei pública para que não valha toda e qualquer ação com respeito a João. Afinal, um simples furto, por exemplo, não poderia aniquilar a personalidade moral de João. O culpado, em suma, continua a ser um portador de direitos, de modo que ele não pode receber nada além da pena cabível. Mas qual a pena cabível? No mínimo, não poderia ser uma pena arbitrariamente definida após a constatação de violação da lei, concordam?</div>
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Enfim, são algumas considerações que eu teria, no momento, a fazer dentro desse meu esforço de pensar o direito independentemente do monopólio do direito. Estou convencida, por enquanto, de que a institucionalização do direito não precisa implicar na estatização do direito. Até por isso, note bem que estive usando "lei pública" com um sentido independente de "lei estatal"...</div>
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Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/05507574057753299136noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7696277628071033130.post-27654740106677995292014-02-21T14:23:00.001-03:002014-02-21T14:23:27.644-03:00Estado ou justiceiros?<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://lh6.googleusercontent.com/-d0ystpixUaM/UweLjBu-nAI/AAAAAAAACdw/llZCXpME4jQ/s1024/2014%25252014%25253A18.jpg" target="_blank" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img src="https://lh6.googleusercontent.com/-d0ystpixUaM/UweLjBu-nAI/AAAAAAAACdw/llZCXpME4jQ/s500/2014%25252014%25253A18.jpg" id="blogsy-1393003407936.357" class="aligncenter" width="500" height="554" alt=""></a></div><p style="text-align: justify;"> <span style="line-height: 1.3em;">O noticiário recente colocou em pauta a questão mais central do Estado, sua própria essência: o alegado direito ao monopólio da aplicação da justiça. Passando pela sala, peguei rapidamente alguns trechos de uma conversa a respeito do assunto na Globo News: "justiça pelas próprias mãos é uma contradição nos próprios termos", concordavam os participantes. Como estavam condenando quaisquer agentes que apliquem a justiça em concorrência com o Estado, e não apenas os que o façam em causa própria, suponho que fique implícita aqui uma definição de ação justa que coloca como sua condição necessária que um certo tipo de agente pratique a ação. Em outras palavras, se outro agente fizer exatamente o que o Estado faria em uma situação similar sob todos os aspectos relevantes, essa ação não será justa pelo simples fato de não ter sido praticada pelo Estado.</span></p><p style="text-align: justify;">Não é curioso que a mídia mainstream não esteja disposta a incluir no debate vozes dissonantes no que diz respeito à aceitação dessa definição de justiça. O Estado - já disse antes e muitos outros ainda disseram antes de mim - se sustenta pela vitória nessa batalha ideológica, não por suas forças armadas. De minha parte, neste post, não me importa tanto questionar a legitimidade da dependência necessária que se estabelece entre justiça e Estado, mas sim refletir um pouco sobre o que deve nos horrorizar nas ações praticadas pelos justiceiros. É mesmo o fato de quem as pratica?</p><p style="text-align: justify;">Note, em primeiro lugar, que o Estado faz muito pior do que amarrar pessoas em postes. Todo cárcere oficial do Brasil é um retrato da mais pura degradação humana. Porém, como o leitor atento percebeu, estou sendo caridosa com os estatistas, formulando sua definição de justiça como uma que inclua a sua execução pelo Estado como condição necessária, e não como condição suficiente. Quer dizer, parece-me que os apologistas do Estado podem conceder que o Estado cometa injustiças, embora não possam conceder que outros agentes pratiquem a justiça. Isso facilita a defesa do ponto deles. Seja lá como for, não me furto a observar que a barbárie não é privilégio desta ou daquela situação.</p><p style="text-align: justify;">Mas vamos ao que interessa: sem o Estado, a única alternativa para a aplicação da justiça são as práticas grotescas relatadas nos noticiários? Não me parece que seja o caso! Do mesmo jeito que, à parte do Estado, indivíduos podem reconhecer direitos de propriedade a ponto de aplicarem penas a quem os viola, eles também podem reconhecer direitos processuais. Isso mesmo, como Nozick, eu acredito que o direito natural (racional ou a priori) contenha direitos processuais. Isso significa que, do mesmo jeito que qualquer pessoa teria o direito de punir quem comete um furto, qualquer pessoa também teria o direito de punir, por exemplo, quem pune alguém sem se certificar de todas as formas possíveis de seu envolvimento e seu grau de responsabilidade pelo ato. Em suma, aplicar uma punição a alguém, sem a devida certeza de que a punição é devida e proporcional ao ato, é cometer uma agressão como outra qualquer.</p><p style="text-align: justify;">Agora, note que o reconhecimento de direitos processuais pode muito bem valer contra o Estado. Quantos Estados não condenam indivíduos sem reconhecer-lhes o amplo direito à defesa? Quando excluímos da definição da justiça que ela deva ser praticada por um agente em específico, o próprio estadista pode ser condenado por seus atos tirânicos de condenação e execução sumária. O problema, afinal, não é que um João qualquer espanque um suspeito. O problema é que o suspeito seja espancado, por mais que ela possa muito bem ser culpado!</p><p style="text-align: justify;">E quando a culpa é provada, o condenado deve ser espancado? O que é pior: ser espancado ou viver uma semana em um presídio brasileiro? Honestamente, eu escolheria a primeira pena sem pensar duas vezes! Mas não se trata de preferência pessoal, claro. Trata-se de sabermos qual pena é justa, uma vez que definamos 1) que a ação foi praticada pelo réu; 2) que não foi uma ação justa. Parece-me, por sinal, bem mais fácil chegarmos a um princípio que nos permita separar objetivamente as ações conforme ao direito daquelas que não o são do que chegamos a um princípio igualmente objetivo que nos permita ajustar penas a violações do direito. O que restabelece minha tranquilidade diante dessa dificuldade é o fato de que ela se coloca absolutamente da mesma forma para os estatistas. A mera existência do Estado em nada resolve o problema da pena. Pelo contrário, torna muito mais difícil que alguém possa resistir a uma injustiça cometida neste aspecto.</p><p style="text-align: justify;">Outro problema interessante - agora sim apenas para os opositores do monopólio do direito à aplicação da justiça - é como evitar que o mesmo sujeito seja punido diversas vezes por uma mesma violação do direito e, portanto, que ele seja punido em excesso, dado que qualquer um tem o direito de puni-lo, desde que respeite seus direitos processuais. Parece-me que, do ponto de vista do direito natural, é um dever que todo aquele que queira aplicar uma punição coordene sua ação com a de qualquer outro que poderia vir a alegar o mesmo direito. Assim, o reconhecimento da ilegitimidade do monopólio da aplicação da justiça não implica em um reconhecimento da legitimidade de ações isoladas para a aplicação da justiça. </p><p style="text-align: justify;">Para entender meu ponto, imagine que 1) João tenha todas as provas necessárias para responsabilizar Pedro por uma autêntica violação do direito natural e 2) que a pena X seja proporcional à violação do direito cometida por Pedro. Nem por isso João tem o direito de aplicar a pena a Pedro sem procurar saber se 1) uma pena já não lhe teria sido aplicada e 2) se outros não estariam planejando aplicar-lhe também uma pena. Admitiríamos que, se João punir Pedro por um crime pelo qual Pedro já foi devidamente punido, João estará sendo injusto com Pedro, certo?</p><p style="text-align: justify;">Bom, essas questões são bem complicadas... Este post era só para dizer que existe muita diferença entre negar o monopólio de direito do Estado e aceitar que qualquer um aplique a pena que bem entender a quem desejar pelo ato que quiser. Direitos processuais são direitos como outros quaisquer, que podem tanto ser violados pelo Estado como por João. Infelizmente, serão sempre violados por ambos.</p><p> </p><div style="text-align: right; font-size: small; clear: both;" id="blogsy_footer"><a href="http://blogsyapp.com" target="_blank"><img src="http://blogsyapp.com/images/blogsy_footer_icon.png" alt="Posted with Blogsy" style="vertical-align: middle; margin-right: 5px;" width="20" height="20" />Posted with Blogsy</a></div>Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/05507574057753299136noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7696277628071033130.post-75562013273448462762014-02-01T09:53:00.002-02:002014-02-01T10:10:53.324-02:00Inimigo íntimo, ou anarquismo kantiano contra Kant<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEho15az1DC4vixxunv4e9GoZjTVQqmPufgMDC8Rgi0amLzOhM_6ccDApd33fxEtnN7x7RHPysB4Mtp_uWN2MOZFDoJTisYBcU16xOIJJPqLh7EuR9ZpJOXPkAf8gUvDW5g_NE3MfRYGw_E/s1600/bild.jpeg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEho15az1DC4vixxunv4e9GoZjTVQqmPufgMDC8Rgi0amLzOhM_6ccDApd33fxEtnN7x7RHPysB4Mtp_uWN2MOZFDoJTisYBcU16xOIJJPqLh7EuR9ZpJOXPkAf8gUvDW5g_NE3MfRYGw_E/s1600/bild.jpeg" height="185" width="320" /></a></div>
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Eu fiz o programa do evento, mas juro que foi uma mera coincidência que me fez estar sentada ao lado do Aguinaldo quando ele, pela primeira vez, apresentou sua exótica tese sobre o fracasso do argumento kantiano pela justificativa do Estado. Aquele momento foi histórico, porque, até onde se sabe, ao menos em solo brasileiro, Aguinaldo foi o primeiro a defender o anarquismo a partir de premissas kantianas. Internacionalmente, eu acho que Robert Paul Wolff (e apenas ele) já havia feito isso antes, mas creio que ele tenha feito de um modo diferente (faz tempo que estou para ler o texto dele e vou adiando em nome de outras prioridades). Com Aguinaldo, ao menos, não se tratava meramente de dizer que uma forma de anarquismo poderia ser construída a partir de Kant. Aguinaldo teve a coragem de dizer que, dadas as premissas expressamente aceitas, Kant precisaria ter chegado a uma determinada conclusão, ao passo que ele errou e derivou exatamente a conclusão oposta. Imaginem a explosão!</div>
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Eu me diverti muito estando presente. Tenho a maior admiração pelos meus queridos colegas da comunidade kantiana, porque se trata de uma comunidade extremamente argumentativa. As oposições não ficam veladas. Nós colocamos nossas cartas sobre a mesa sem receio de fazermos inimigos por defendermos teses opostas. E, modéstia à parte, fazemos isso com muita competência. A comunidade kantiana, até por razões históricas que não vêm ao caso, é um paradigma de rigor na filosofia acadêmica do Brasil. Então, imaginem como aquela sala de conferências em Campinas pegou fogo, no bom sentido, naquela tarde!</div>
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De minha parte, eu só fiquei assistindo de camarote, pois meus conhecimentos sobre o direito público kantiano não me permitiam tomar parte em um debate daquele nível. Bem mais recentemente, finalmente, decidi enfrentar o direito público de Kant como fizera Aguinaldo. Afinal, não basta dizer que a ética e o direito privado de Kant oferecem fundamentos sólidos para um anarquismo de cunho individualista. É preciso provar que o argumento de Kant em prol do Estado fracassa. Falar que Kant errou, afinal, é sempre fácil. Abrir o livro, explicar o argumento e mostrar onde está o erro é para poucos, pouquíssimos! Nesse sentido, vou confessar uma coisa. Houve momentos em que minhas convicções fraquejaram diante dos argumentos de Kant. Definitivamente, eu prefiro ter Kant no meu time. Jogar contra ele é um pesadelo! Mas deixem-me lhes apresentar o balanço geral das minhas impressões depois desse embate que me custou tanto esforço.</div>
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Se eu fosse explicar, do modo mais didático possível, o argumento de Kant, eu pediria para terem em conta, primeiramente, a impossibilidade física, para a maioria de nós, de que vivamos em isolamento. Essa é uma premissa de Kant que não pode nos passar despercebida. Como ele gosta de dizer, o fato da Terra ser esférica, em vez de se estender por um plano infinito, é significativo para o direito. A razão disso é que o argumento aceita como condição de sua validade que não possamos evitar que nossas ações tenham influência sobre outras pessoas. Se nós pudermos simplesmente evitar a repercussão de nossos atos na vida de outros, para tudo! Basta que nos apartemos e não há mais problema jurídico algum. Mas são poucos os que podem escolher viver como eremitas. A imensa maioria terá que viver em sociedade. Assim, partamos do fato da sociedade.</div>
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Muito bem, agora, outro aspecto. Você pode não saber, mas Kant tem uma concepção de natureza humana mais pessimista do que a de Hobbes. Em escritos não publicados, chega a ser chocante o que ele diz sobre o modo como nos comportaríamos na ausência do Estado. Você pode pensar em Kant - e em nós kantianos - como um idealista quanto à bondade humana, mas não é nada disso. Para Kant, o dever moral sempre nos revela apenas e tão somente nossa capacidade moral. Isso não significa, em absoluto, que Kant acredite que as pessoas de fato escolham viver moralmente. Pelo contrário, ele nos diz expressamente que, diante da ausência de coerção externa, a tendência é escolhermos o mal, como podemos constatar pelo conhecimento que temos de nós mesmos.</div>
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Contudo, dito isso no § 42 da Doutrina do Direito, um pouco adiante, no 44, Kant indica não precisar de uma premissa antropológica tão forte. Ele sugere que suas conclusões se seguiriam mesmo que os seres humanos fossem bem dispostos em relação uns aos outros. Daí, a importância da inevitabilidade do contato humano. Onde houver sociedade, haverá conflito jurídico. Isso ocorre, porque mesmo pessoas de boa fé podem falhar cognitivamente, embora não do ponto de vista volitivo. Explico. Você quer respeitar o direito dos outros. Todavia, você entende que está fazendo isso, enquanto a outra parte, também de boa fé, acredita que você está violando seu direito. Pense, por exemplo, em dois vizinhos que discordam sobre o limite onde deve ser colocada a cerca que separa suas propriedades. Para imaginar um conflito aqui, não precisamos pressupor que um queira roubar parte das terras do outro. Eles podem, honestamente, acreditar que suas propriedades se estendem até pontos diferentes e conflitantes.</div>
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Ora, se você concede a possibilidade acima, você deve conceder que, sem o Estado, ninguém pode garantir que meus direitos não serão violados até por pessoas que pretendem agir em conformidade com o direito. Assim, o estado de natureza é um estado de insegurança jurídica, um estado onde nenhum direito é, como gosta de dizer Kant, peremptório, isto é, nenhum direito é indisputável e nenhuma disputa pode ser definitivamente selada. </div>
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Dada essa situação, Kant defende que seja um dever moral que adentremos a condição civil. E, se é um dever moral jurídico, posso, inclusive, usar a força para obrigar o indivíduo a cumprir com ele. É assim que Kant acredita que o contrato social dispensa a necessidade de consentimento voluntário. Você pode obrigar o outro a entrar com você em uma condição em que nós dois abandonamos o direito de obrigarmos qualquer um a fazer qualquer outra coisa. Nós dois, no caso, na condição civil, transferimos esse direito de exercer a coerção em nome do direito para um terceiro. Desse momento em diante, só por meio dessa figura, alguém pode ser obrigado ao que quer que seja. Isso significa que os direitos passarão a ser garantidos de forma peremptória, pois, uma vez que essa figura jurídica recém instituída se manifeste em definitivo, ninguém terá o direito de contestar sua decisão, exceto em meras palavras.</div>
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Agora - e isso é essencial - notem o seguinte: se apenas por meio dessa figura jurídica é que a força pode ser exercida em conformidade com o direito, então a força jamais poderá ser exercida contra essa figura. Kant admite que temos direitos com respeito a essa instituição. Ele ressalta, porém, que são direitos não coercivos. Em outras palavras, nós não podemos obrigar essa instituição a respeitar nossos direitos. Isso faz todo sentido dado que nós delegamos a essa instituição a coerção conforme ao direito. É assim que nasceria aquele monopólio do uso da força de que Weber nos falará mais tarde: todo o direito de executar o direito pertence ao Estado.</div>
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Bem, voltemos ao que Kant nos dizia sobre a natureza humana, tão propensa a violar direitos quando acha uma oportunidade para tanto. Pensemos ainda no que ele nos diz sobre a possibilidade de que mesmo pessoas bem dispostas, por erro de juízo, violem direitos. Não seria então absolutamente natural pensarmos que os representantes do Estado cometerão erros, sejam esses volitivos ou cognitivos? Na verdade, no que convém ainda mais ao ponto anarquista, Kant está bem ciente de que a maioria pode marchar contra o direito da mesma forma que qualquer indivíduo tomado isoladamente. Na verdade, ele parece acreditar que a tendência da maioria sempre será optar pelo bem-estar, em detrimento da justiça.</div>
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Neste ponto, então, eu pergunto: faz sentido acreditar em um dever moral (categórico) de assinar o contrato social, aquela passagem só de ida para a condição civil? Veja bem, você pode muito bem nem sequer estar envolvido em uma disputa. Kant deixa claro que seu argumento não pressupõe um fato empírico: uma pendenga a ser resolvida. Partamos então do princípio de que você não é um agressor, não violou direito algum. Mesmo assim, você pode ser coagido a adentrar em um tipo de associação onde você ficará absolutamente indefeso caso seus direitos sejam de fato violados? </div>
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É verdade que, mesmo que eu nunca tenha agredido ninguém, o estado de natureza é uma condição em que eu sempre represento para o outro um risco de agressão. Mas, em nome desse mero risco, ele tem o direito de me obrigar a aceitar uma condição em que eu só poderei reclamar verbalmente quando (eu não digo "se" propositadamente, mas bastaria o "se" para meu argumento) meus direitos forem de fato violados pelo Estado?</div>
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Para mim, isso não faz sentido algum! Dadas justamente as premissas de Kant, faz mais sentido moral ficarmos no estado de natureza, onde há maior equilíbrio de forças, e ninguém será um Deus entre meros mortais. Vocês se lembram do que Gláucon, partindo de semelhante concepção da natureza humana, diz na <i>República</i>? O maior dos bens é praticarmos injustiças sem sermos punidos. O maior dos males é sermos vítima de injustiça sem podermos nos vingar. Assim, escolhemos o caminho da justiça, que é o caminho do meio, porque o maior dos bens não está disponível para nenhum mortal. Ora, eu digo que o que o argumento de Kant faz é apenas entregar o anel de Giges para um mortal (ou muitos deles). O que fizeram com o anel? A história mostra...</div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/05507574057753299136noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7696277628071033130.post-85747333663399822212014-01-06T14:36:00.000-02:002014-01-06T14:36:02.583-02:00A resposta de Nozick a Rothbard<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhmwg9zPuj6fas2wiVRZMsR35RomMpRXWnd0J3SoG1mmE0EN8e18XqcI5hDQR67CMhxVl49k8a7O9gJicoC-CXV0P1N6OM5yKipIPM5R4BmwVK7-LUsa0hQXzcAcRmJZMC61RAxKr642Dc/s1600/foto.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhmwg9zPuj6fas2wiVRZMsR35RomMpRXWnd0J3SoG1mmE0EN8e18XqcI5hDQR67CMhxVl49k8a7O9gJicoC-CXV0P1N6OM5yKipIPM5R4BmwVK7-LUsa0hQXzcAcRmJZMC61RAxKr642Dc/s1600/foto.jpg" height="320" width="320" /></a></div>
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Não sei se o próprio Nozick respondeu às críticas de Rothbard à sua defesa do Estado e fico grata desde já ao leitor que me esclarecer a respeito. Por sinal, foi através de um gentil leitor que travei conhecimento com a própria crítica de Rothbard, que vocês podem acessar <a href="http://mises.org.br/EbookChapter.aspx?id=33" target="_blank">aqui</a>. Neste post, eu vou brincar de vestir as armas de Nozick para responder a Rothbard.</div>
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Como serei um tanto dura com Rothbard, antes de mais nada, gostaria de expressar minha admiração por ele. Na verdade, mais do que de admiração, trata-se de identificação. Há auto-declarados “libertários” que, a julgar por seus argumentos, se tornariam socialistas no ato se provassem a eles que todos ficariam com a barriga mais cheia com menos liberdade. Inclusive, gosto de dizer que esses "libertários" não acreditam no princípio da não agressão, mas sim no "princípio da barriga cheia". Esse não é o caso de Rothbard. O fato dele ser libertário por princípio moral aflora a cada linha passional de seu texto. Eu gosto disso! Aprecio gente de caráter, o que, para mim, é sinônimo de gente comprometida com princípios (que não o da "barriga cheia").</div>
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Dito isso, no entanto, devo observar que, com exceção de alguns pontos fracos bem captados, a leitura que Rothbard faz de Nozick me parece tão equivocada que tendo a creditar seus equívocos a esse mesmo entusiasmo moral. É como se, ao ter diante de si um dos objetivos anunciados de <i>Anarquia, Estado e Utopia</i> - a justificativa de um Estado mínimo - Rothbard não tivesse nenhum interesse em verdadeiramente entender o ponto de seu oponente, mas apenas o firme propósito de refutá-lo para pôr a salvo seu anarco-capitalismo. Porém, se tivesse realmente se empenhado em compreender as teses de Nozick, duvido que Rothbard, ao fim do processo, teria ainda alguma preocupação em refutá-lo. Vejamos por que sustento tal tese.</div>
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Para começar, gostaria de mencionar um ponto em que Rothbard e eu estamos de acordo contra Nozick. Eventualmente, mencionarei outros no decorrer do texto. De fato, Nozick parece se fiar demais em um argumento que é meramente conjectural. É impossível provar<i> a priori </i>(ou por meros conceitos, sem recurso à experiência)<i> </i>que, em uma sociedade anarco-capitalista, surgiria uma agência protetora dominante ou um sistema unificado de agências do tipo. Nozick pode apenas conjecturar sobre como clientes e executivos calculariam seus interesses em um mercado do tipo. Ele não pode demonstrar logicamente que o livre mercado tomaria um ou outro rumo.</div>
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Todavia, eu não estou certa do impacto dessa observação sobre a tese geral de Nozick. Se fizermos o que Rothbard não fez, ou seja, se lermos o texto de Nozick com a lupa, notaremos que, já na p. 05 da edição original de <i>Anarquia, Estado e Utopia</i>, Nozick afirma que basta a ele mostrar que o Estado "would be an improvement if it arose [seria um avanço se surgisse]", acrescentando que "this would provide a rationale for the state’s existence; it would justify the state [isso traria uma razão para a existência do estado; justificaria o estado]". Em suma, ainda que Nozick pareça ter a convicção indevida de que uma agência dominante ou um sistema unificado emergiria da livre concorrência entre as agências, uma leitura cuidadosa mostra que o argumento dele apenas requer que seja provado que, longe de cometer uma violação contra qualquer direito individual, a emergência de uma agência dominante ou a formação de um sistema unificado de agências seria benéfica aos direitos individuais. </div>
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Nozick quer refutar a tese anarquista de acordo com a qual: "any state necessarily violates people’s moral rights and hence is intrinsically immoral [qualquer estado necessariamente viola direitos morais das pessoas e, portanto, é intrinsecamente imoral]". Trata-se, como se vê, de um objetivo meramente conceitual, e não histórico: defender a compatibilidade lógica entre a existência de um Estado e o respeito a direitos morais dos indivíduos. Daí que Nozick não recorra à história para mostrar que Estados reais, de fato, teriam emergido sem violência. Basta que Estados possam emergir e se manter sem violência para que anarquistas não possam condenar o Estado enquanto tal como agressor por definição.</div>
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Seja lá como for, aqui, Rothbard pode ainda discordar, alegando que, ao contrário do que pensa Nozick, a concentração de poder seria uma ameaça à liberdade individual. Contudo, ambos os filósofos estão de acordo quanto à probabilidade (e à necessidade) de que os conflitos entre as agências de proteção não sejam resolvidos pela força. É, grosso modo, do interesse egoísta de todos por soluções pacíficas que Nozick deriva a ideia de um sistema unificado ou de uma agência dominante. </div>
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E será que o Código de Leis Básico de Rothbard, ao qual todos os juízes obedeceriam, não contaria como o sistema unificado de Nozick? Se todas as agências seguissem um mesmo código, como se fosse sua constituição, elas não formariam uma federação de agências? Note-se que Nozick não menciona um Supremo Tribunal Federal. Tudo que ele diz (p. 16) é que: "Thus emerges a system of appeals courts and agreed upon rules about jurisdiction and the conflict of laws. Though different agencies operate, there is one unified federal judicial system of which they all are components. [Assim, emerge um sistema de cortes de apelação e acordos sobre regras sobre jurisdição e o conflito de leis. Embora diferentes agências operem, há um sistema judicial federal unificado do qual elas são todas componentes]". Por isso, deixo registrada aqui minha suspeita de que a divergência entre Rothbard e Nozick quanto ao ponto seja muito mais terminológica do que conceitual.</div>
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Então, a esta altura, já começamos a perceber que Rothbard e Nozick não estão tão distantes como pensa o primeiro. Agora, precisamos entender que, quando Nozick se refere a um monopólio por parte da federação das agências ativas em um dado território, ele não está, de modo algum, criminalizando a concorrência como Rothbard o acusa de fazer. Prova desta minha leitura, pode, por exemplo, ser encontrada na p. 113, quando Nozick discute o interesse dos clientes em manterem seu contrato com a agência dominante/agência membro da federação. Eles são livres para deixarem qualquer agência da federação ou a única agência dominante, conforme for, e escolherem se querem contratar uma agência independente ou se defenderem por conta própria. Aliás, como uma curiosidade a esse respeito, observem o quão raras são as aparições do termo "cidadão" na primeira parte de <i>Anarquia, Estado e Utopia,</i> e comparem com o número de aparições do termo "cliente". Para Nozick, ao fim e ao cabo, somos clientes do Estado, exatamente porque decidimos ficar sob suas leis pelas razões a respeito das quais ele especula. Não somos coagidos a tanto. </div>
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Outra prova do que estou dizendo quanto à falsidade da acusação de que Nozick criminalizaria a concorrência encontra-se às pp. 109-110 da obra em questão, quando Nozick afirma expressamente que o Estado não poderia interferir se os independentes estiverem satisfeitos com os procedimentos de justiça aplicados entre eles, tese exatamente oposta à que Rothbard atribui a Nozick: "the protective association would have no proper business interfering if both independents were satisfied with their procedure of justice. [a associação protetora não teria nada que interferir se ambos os independentes estivessem satisfeitos com seus procedimentos de justiça]." Na verdade, Nozick parece admitir que mesmo os clientes, em comum acordo, podem solicitar à agência dominante (vulgo Estado) que não interfira no conflito deles.</div>
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Por fim, esta passagem da p. 109 é taxativa contra a interpretação de Rothbard de acordo com a qual o Estado de Nozick criminalizaria agências concorrentes: "Other protective agencies, to be sure, can enter the market and attempt to wean customers away from the dominant protective agency. They can attempt to replace it as the dominant one. [Outras agências protetoras, com certeza, podem entrar no mercado e tentar tomar clientes da agência protetora dominante. Elas podem tentar substitui-la como a agência dominante]."</div>
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Aqui, é fundamental observar que a agência dominante (ou a federação de agências) é denominada Estado por ser a única forte o bastante para garantir a seus clientes que eles não serão penalizados injustamente, ou ao menos que quem os punir injustamente não ficará impune. É só isso. O mesmo direito, na verdade, assiste aos independentes da mesma maneira, mas só a agência dominante (ou a federação) é forte o bastante para aplicá-lo. Por isso, Nozick insiste tanto que se trata de um monopólio de fato, não de direito (por exemplo, p. 109): "the right includes the right to stop others from wrongfully exercising the right, and only the dominant power will be able to exercise this right against all others. [o direito inclui o direito de impedir outros de exercerem erroneamente o direito, e somente o poder dominante terá condições de exercer esse direito contra todos os outros]."</div>
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Vejam, aqui, temos um outro ponto essencial a tratarmos. Rothbard nega a existência desse direito universal, que, no entanto, apenas o mais forte conseguiria fazer valer. Para lidarmos com isso, deve ser notado que temos aqui, a princípio, um outro ponto de minha convergência com Rothbard: eu concordo com ele quanto ao fato de Nozick cometer um grave equívoco ao defender que ações de risco podem ser proibidas, desde que aqueles que tenham suas ações proibidas sejam devidamente recompensados, nos casos em que a proibição os deixa em desvantagem social. Eu estou com Rothbard quando ele defende que ações de risco não podem ser proibidas, sob pena de abrirmos as porteiras para todo tipo de violação de direitos. Afinal, qual ação não representa qualquer risco de violação de direitos dos outros? Ainda que Nozick enfrente esse tipo de objeção, confesso que, mesmo com a lupa, não encontrei um bom argumento a ser usado em sua defesa, assim como não fui capaz de pensar em um por conta própria.</div>
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Porém, se Rothbard tivesse usado o mínimo de caridade hermenêutica - aquele princípio salutar de acordo com o qual lemos nosso adversário procurando os pontos fortes de seu argumento, em vez de apenas explorarmos seus pontos fracos - ele teria notado que, totalmente à parte da proibição das ações de risco, Nozick tem um bom argumento para defender a tese segundo a qual é parte do direito que tenhamos também o direito de impedir execuções equivocadas do direito, sendo esse, como já dito, um direito que assiste igualmente a todos, mas que uma agência dominante estaria em condição privilegiada para levar a efeito. Trata-se de um argumento baseado no princípio epistêmico, que passo a expor e defender.</div>
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Muito bem, eis a formulação do referido princípio, encontrada na p. 106: "If someone knows that doing act A would violate Q’s rights unless condition C obtained, he may not do A if he has not ascertained that C obtains through being in the best feasible position for ascertaining this. [Se alguém sabe que fazer A violaria os direitos de Q a menos que a condição C estivesse realizada, ele não pode fazer A se ele não se certificou que C se realiza, estando na melhor posição viável para se certificar disso]."</div>
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Para entendermos o que está em jogo aqui, consideremos o seguinte cenário. O carro de meu vizinho foi furtado de sua garagem durante a madrugada. Eu sou cliente da agência dominante, o que não é o caso de meu vizinho. Meu vizinho, por sua vez, alega ter consultado os serviços de uma vidente, que, lendo suas cartas, teria revelado a ele que eu fui a autora do furto de seu carro, um episódio inédito na carreira dessa vidente Assim, sob essa alegação, ele leva o meu próprio carro como reparação do furto sofrido por ele, admitindo que, se eu não tivesse primeiramente furtado seu carro, ele não teria o direito de levar meu próprio carro, já que esse ato, sim, então se constituiria em um furto. Para completar o cenário, suponha ainda que eu sou realmente culpada pelo furto de que sou acusada. Porém, minha agência não sabe disso, sendo que meu vizinho não dispõe de qualquer evidência ou razão para desconfiar de mim, exceto pelo testemunho da vidente baseado no jogo de cartas, jogo este que, jamais, outrora desvelou qualquer crime. Nessas circunstâncias, a minha agência tem o direito de punir meu vizinho por ter levado meu carro? </div>
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Note que, se sua resposta for "não", como parece ser a resposta de Rothbard, a minha agência se torna completamente inócua para mim, já que eu posso vir a sofrer qualquer agressão, sem que ela puna o agressor, desde que o agressor, por um motivo qualquer, alegue estar ele próprio me punindo. De repente, o meu agressor teve uma revelação em sonho sobre minha identidade secreta de <i>serial killer</i>, por exemplo. Ora, mesmo para além de qualquer questão operacional da minha agência, que ficaria sempre de mãos atadas se quisesse me proteger sem violar direitos alheios, de fato, o direito natural parece requerer que eu possa comprovar a culpa de alguém, para além de toda dúvida razoável, antes de lhe aplicar uma punição qualquer. Afinal, que eu seja uma ladra não pode autorizar moralmente alguém a tirar de mim os bens que furtei, a menos que se possa provar que sou uma ladra, como reza o princípio epistêmico.</div>
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Parece então que a sensatez requer que, uma vez que acreditemos em direitos, incluamos dentre eles o direito de impedirmos a aplicação do direito a todo aquele que não comprovou a culpa do réu para além de toda dúvida razoável. Do contrário, todo e qualquer direito poderia ser violado mediante simples alegações falsas de direito por parte do agressor.</div>
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Agora, se você aceita 1) o princípio epistêmico e suas implicações, e 2) a possibilidade de uma federação de agências protetoras (ou uma agência dominante), então, você deve aceitar 3) que independentes podem ser impedidos de executar o direito dentro de um território sem que isso implique, necessariamente, na violação de seus direitos. </div>
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Porém, nunca poderíamos insistir demais que a) o mesmo direito assiste aos independentes com relação à agência dominante e que b) a agência dominante/federação só tem esse direito com relação à proteção de seus próprios clientes, pois, como afirma Nozick, a agência/federação possui apenas os direitos que seus clientes escolheram transferir a ela. Fala-se em monopólio de fato, e não de direito, porque o independente que acreditar que a agência não provou, além de toda dúvida razoável, a culpa de um réu condenado será impotente para agir, embora tenha o direito de impedir a execução da pena.</div>
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Estamos diante então de uma grande ameaça à liberdade quando permitimos o surgimento de uma agência dominante? Ora, talvez, haja o risco de violação de direitos aqui, mas lembre-se que foi Rothbard quem se levantou contra a proibição de ações de risco! Assim, segundo Rothbard, não poderíamos impedir que a maioria das pessoas se tornassem clientes de uma mesma agência, alegando que isso colocaria em risco os direitos da minoria (Nozick lida muito bem com essa questão, mesmo tendo que aceitar a premissa da proibição das ações de risco, mas seu argumento é muito sutil para que eu o exponha aqui). </div>
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Ademais, também é preciso que mantenhamos em mente que os clientes estariam moralmente autorizados para romperem com a agência dominante/federação, caso julgassem injustos os procedimentos da agência dominante ou federação. Suponha, por exemplo, que seja a agência dominante/federação a agir aleatoriamente em processos penais, sem que a prática seja permitida pelo contrato do cliente. O cliente estaria tão moralmente obrigado a continuar na condição de cliente de um Estado injusto quanto você está moralmente obrigado a renovar um contrato de telefonia que não o serviu. </div>
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Ah, mas quem vai proteger o cliente que acusa a agência dominante/membro da federação de não cumprir o contrato, ou, simplesmente, o cliente que quer exercer o direito de não renovar o seu contrato? Talvez, ninguém tenha força para isso. Mas o ponto é que uma agência que se comportasse com tal violência perante seus próprios clientes seria, para a filosofia de Nozick, uma agência agressora ilegítima da qual seríamos vítimas, e não o Estado moralmente justificado.</div>
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Foi essa necessidade interna à teoria de Nozick de que a agência sempre satisfizesse seus clientes, por sinal, o grande ponto que escapou a Rothbard. Por isso, por exemplo, Rothbard acusa Nozick de não ter uma teoria para a cobrança de impostos ou para procedimentos democráticos. Quanto a essas críticas, eu apenas pergunto a Rothbard: Que impostos? Que democracia? Para a teoria, trata-se de clientes satisfeitos de uma empresa, e nada mais! Da mesma forma, não se trata de alienar os direitos de gerações futuras. Um filho nem sequer herdaria algum direito, possuído pelo pai, de ser protegido pela agência protetora da qual o último teria sido cliente, a menos que o pai tivesse deixado como herança exatamente o título de proteção pago. De outra forma, o filho teria que pagar por essa proteção, como qualquer outro, ou seria um independente.</div>
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A propósito, esse é outro ponto interessante. Nozick, com base no equivocado princípio de compensação por proibição de ações de risco que causam desvantagens, acredita que a agência dominante/federação deve ajudar o independente carente a pagar por seus serviços de proteção, quando ele é proibido de executar a justiça contra um membro da agência. Mas isso é algo muito diferente de se dizer que todos os habitantes de um dado território ficam cobertos pelos serviços de proteção da agência dominante/federação que atua naquele território. Aquele independente que fosse agredido por outro independente não teria direito a qualquer proteção por parte da agência dominante/federação. Tampouco teria esse direito aquele independente que entrasse em conflito com o cliente da agência dominante/agência membro da federação, negando-se a pagar pelo montante do valor da proteção que ele teria condições de pagar. Consultem a p. 113 de <i>Anarquia, Estado e Utopia</i> quanto a esse ponto.</div>
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É por todas as considerações feitas acima que digo que, na ânsia de refutar qualquer justificativa do Estado, Rothbard discutiu com um espantalho que ele mesmo criou, não com Nozick. Ainda que Nozick tenha cometido falhas pontuais - notadamente quanto ao princípio da compensação - que vício moral, afinal, Rothbard poderia denunciar em um Estado utópico que permite desfiliação e concorrência? Qual direito seria violado por esse Estado? O direito de consultar videntes ou folhas de chá (exemplo de Nozick) para descobrir culpados e poder executar penas?</div>
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Parece-me que o triunfo de Nozick foi ter obtido sucesso em mostrar que um determinado Estado pode emergir sem violar qualquer direito individual e, portanto, que o Estado não é intrinsecamente imoral. Agora, se um rothbardiano quisesse lançar uma última cartada, bastaria perguntar: isso que Nozick justificou tem alguma coisa a ver com o que mais alguém neste mundo já chamou de Estado?</div>
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Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/05507574057753299136noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7696277628071033130.post-78622828990471599152013-12-31T10:42:00.001-02:002013-12-31T10:42:13.911-02:00Podcast: Esse tal de libertarianismo<a href="http://livreintercambio.alexandrecosta.org/podcast/livre-intercambio-podcast-episodio-02-esse-tal-de-libertarianismo/" target="_blank">Livre Intercâmbio Podcast - Episódio 02: Esse tal de libertarianismo</a><br />
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Prezados amigos leitores, compartilho com vocês o podcast gravado com meu amigo Alexandre Costa, também libertário. Espero que gostem! Achei muito bacana gravar essa conversa, apesar de preferir bem mais escrever, para não deixar tantas pontas soltas na argumentação.</div>
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Falando nisso, agradeço a todos por terem dedicado um pouco do tempo de vocês para a leitura de textos meus em 2013 e desejo um excelente 2014! Continuemos divulgando a ideia de um mundo mais livre, portanto, mais justo!</div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/05507574057753299136noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7696277628071033130.post-12775009546182341972013-12-29T10:38:00.001-02:002013-12-29T10:38:13.048-02:00Anarco-capitalismo posto em prática<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiDHk10Q6pguUC2OryRymeT23ORS1PM2c1s17NORtcfawgwf3vSv8HQ4pGT5Lfk8LtyKxTpNw9HvbvOcI-tbnZLmcy7XUHq4O8bFnv8Dtd9mUVyyhATXN2M042Jg5gnCEVDJLABNT6ZsXs/s1600/3192281.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="213" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiDHk10Q6pguUC2OryRymeT23ORS1PM2c1s17NORtcfawgwf3vSv8HQ4pGT5Lfk8LtyKxTpNw9HvbvOcI-tbnZLmcy7XUHq4O8bFnv8Dtd9mUVyyhATXN2M042Jg5gnCEVDJLABNT6ZsXs/s320/3192281.jpg" width="320" /></a></div>
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Escrevo este post farta com o mesmo tipo de objeção que motivou um famoso opúsculo de Kant: aquelas baseadas no dito popular segundo o qual algo pode funcionar em teoria, mas não na prática. Ocorre que, via de regra, se alguém se diz anarquista, parece estar mais suscetível do que qualquer outro a essa linha de crítica. Isso acontece, em grande parte, dada a ignorância generalizada sobre as tantas variações possíveis de anarquismo. Mais especificamente, costumam assimilar todo e qualquer anarquismo àquele defendido por Godwin, baseado na promessa de um aperfeiçoamento da natureza humana. Em poucas palavras, pensam o anarquismo como a ausência de leis e a negação de qualquer instituição hierárquica, de tal forma que apenas a virtude moral poderia sustentar uma sociedade anarquista. Certamente, não é nada disso que está em jogo para o anarco-capitalista. </div>
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O anarco-capitalismo, diferentemente das vertentes coletivistas do anarquismo, não considera que estruturas hierárquicas baseadas na propriedade privada sejam estruturas coercivas, ou "de dominação", como os coletivistas gostam de dizer. Para o anarco-capitalismo, se outro não usou a violência ou a ameaça de violência para obter seu consentimento para sua adesão a uma determinada forma de cooperação, isso basta para que essa forma de cooperação seja vista como voluntária e, portanto, como legítima. Assim, é perfeitamente possível no anarco-capitalismo que uma empresa cresça exponencialmente, com executivos assumindo o comando de empregados em posição hierárquica inferior. Inclusive, isso é o bastante para que anarquistas coletivistas denunciem o anarco-capitalismo como uma forma inautêntica de anarquismo (talvez, porque eles acreditem ter a propriedade privada do termo "anarquismo").</div>
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A observação acima, aliás, me faz lembrar de uma situação que me foi relatada certa vez. Em uma universidade pública, um professor que se dizia anarquista lecionava para um aluno que se dizia adepto da mesma posição política. Assim, no dia em que o professor devolveu ao aluno um trabalho devidamente avaliado, o último fez questão de rasgá-lo acintosamente, perante todos os demais colegas da classe. Com o gesto, o aluno quis dizer que anarquistas não poderiam aceitar qualquer forma de autoridade. </div>
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Ora, nada seria mais incorreto do ponto de vista do anarco-capitalismo. Tanto aluno quanto professor assinaram um contrato com a universidade por livre e espontânea vontade. Por meio desse contrato, ambos aceitaram as regras da instituição. Por isso, seria perfeitamente legítimo que qualquer uma das partes sofresse sanções por não cumprir o contrato assinado. Em suma, ao rasgar o trabalho, o aluno rasgou o contrato que ele próprio assinou.</div>
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<br /></div>
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No anarco-capitalismo, assume-se que, eventualmente, as pessoas, de fato, rasgarão contratos. Além disso, pessoas também podem tiranizar outras pessoas, ou seja, colocá-las sob um poder com o qual elas não consentiram em contrato algum. Nesses casos, o anarco-capitalismo assume que há um uso legítimo a ser feito da força. Dessa maneira, nota-se que o anarco-capitalismo não é: 1) uma teoria baseada em um otimismo excessivo quanto à natureza humana, 2) uma teoria baseada na ausência de órgãos de execução do direito. O anarco-capitalismo é, sim, uma teoria que nega que o direito à execução do próprio direito possa ser monopolizado por uma pessoa ou por um grupo de pessoas. Assim, há leis, há tribunais, mas não há Estado em sentido weberiano, porque a própria execução da justiça é vista como um serviço prestado em uma concorrência efetiva ou sempre, ao menos, possível.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
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Feitos esses esclarecimentos iniciais, passemos, finalmente, à nossa questão: como o anarco-capitalismo poderia ser posto em prática? Ao contrário de alguns, eu não penso que o Estado poderia ou deveria ser pura e simplesmente dissolvido, com todo seu patrimônio sendo revertido à condição de coisa a ser apropriada. Parece-me mais sensato que a elite governante simplesmente enviasse uma carta de alforria a cada cidadão. </div>
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<br /></div>
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Nessa carta, o não mais Estado nos informaria que não cobraria mais impostos, daí a alforria, pois ninguém mais o serviria de forma compulsória. Na mesma carta, porém, a nova instituição nascida do Estado informaria estar vendendo seus serviços. Ela poderia fazer isso em um pacote único, incluindo, saúde, educação, segurança, etc... Ou poderia vender pacotes diferentes por preços diferentes. O importante é que ela daria a oportunidade das pessoas escolherem se quereriam ou não continuar como seus membros. A carta ainda deveria deixar claro que, em caso da opção pela ruptura completa com a instituição, o ex-membro não mais gozaria de quaisquer serviços estatais, incluindo a proteção à sua vida. Porém, aqui temos um ponto delicado: O ex-membro ajudou a financiar a estrutura da qual ele não mais usufruirá. </div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
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Em nossa cultura, todos nos revoltamos ao pensarmos nos escravos negros libertos com uma mão na frente e outra atrás. É uma clara injustiça que um ex-escravo não receba uma compensação para dar início à sua nova vida, dada a riqueza que ele ajudou a gerar e deixará para trás. Agora, é o momento em que você diz: muito bem, o Estado não tem como compensar a todos os membros que queiram partir, e nem teria como averiguar o valor exato de cada compensação. Bom, infelizmente para você, também é o momento em que eu respondo que seu argumento valeria igualmente contra a libertação histórica dos escravos negros. </div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
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O argumento moral sempre se sobrepõe a qualquer consideração consequencialista e o caso da libertação dos escravos negros é prova de que todos concordamos com isso. Você pode até ser um liberal que argumentará que a libertação dos negros, de fato, trouxe benefícios econômicos, e só por isso ocorreu. Porém, dificilmente, você argumentaria que os negros não deveriam ter sido libertados caso isso não fosse o caso. Portanto, Mises é irrelevante para o debate acerca da justiça. Por sinal, não devemos misturar economia com justiça, como muitos de vocês, liberais e marxistas, estão tão acostumados a fazer. </div>
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<br /></div>
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Mas, voltando ao ponto do pagamento das compensações, e assumindo que a impossibilidade de pagá-las jamais poderia ser um motivo para defendermos a manutenção da escravidão, na verdade, há uma forma razoável do ex-Estado proceder. Ele poderia estabelecer um período de tempo dentro do qual aqueles que decidissem se dissociar ainda poderiam gozar de algum benefício, mesmo sem contribuir. Talvez, aquele que resolvesse partir devesse receber o direito de escolher o serviço do qual gostaria de gozar gratuitamente dentro daquele período.</div>
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<br /></div>
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Que fique claro que tenho em vista, não uma indenização pelos anos de privação da liberdade (que também poderia vir a ser o caso), mas uma mera compensação pela riqueza que ficará em poder da associação quando o membro partir. Assim, o ex-Estado teria que ser competente o bastante para financiar a oferta temporária do serviço gratuito com a venda dos demais serviços. </div>
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<br /></div>
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Agora, você pode pensar que os que decidem ficar estarão sendo escravizados para a oferta desse serviço "gratuito". Todavia, não é o caso, primeiramente, porque caberá a eles decidir se ficam ou partem, e, em segundo lugar, porque, se decidirem ficar, saberão que herdarão um patrimônio que não construíram sozinhos, daí a compensação aos dissidentes.</div>
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Agora, suponha que seu temor se realize e que o ex-Estado comece a ter que se desfazer desse patrimônio para as contas fecharem. Suponha ainda que os serviços, cada vez mais precários, levem a uma perda cada vez maior de clientes, portanto, a necessidades crescentes de pagamento de compensações. Ora, isso não é problema algum para o anarco-capitalista, porque é aqui que entra a concorrência. </div>
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O ex-Estado, marcado pela necessidade de pagar por seu passado, pode ou não ter competência suficiente para se valer da condição de partida, por outro lado, privilegiada de primeira associação do mercado. É certo, afinal, que muitos - por exemplo, todos aqueles que tremem ao ouvirem a expressão "anarco-capitalismo" - escolherão ficar! Isso será o bastante para manter a associação? Só o mercado responderá, ou seja, só a satisfação dos clientes. </div>
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Mas que horrível essa ideia de um "Estado" ter que satisfazer clientes, não? Enfim...</div>
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Agora, quero tratar de outro ponto. Por que diabos algum Estado escreveria aquela carta que o forçaria, afinal, a ter que satisfazer aqueles a quem ele pode muito bem continuar simplesmente extorquindo? Calma, anarco-capitalistas não sairão por aí quebrando bancos, com camisetas enroladas na cabeça, para mudar o mundo. Se o anarco-capitalismo fosse difundido enquanto ideologia a ponto de se tornar o pensamento hegemônico em uma sociedade - uma ideia tão óbvia quanto a ideia de que os escravos negros precisavam ser libertados <i>no matter what</i> - o Estado é que teria que se manter exclusivamente pela força bruta, o que não é possível. </div>
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As pessoas subestimam a dependência estatal da adesão voluntária. Por exemplo, vocês acham que a Coréia do Norte ainda estaria de pé se a maior parte do seu povo resolvesse marchar para a fronteira com a Coréia do Sul? Um muro foi capaz de deter os alemães? Uma sociedade que gosta de se dizer livre não pode ser uma sociedade de pessoas que, de forma hegemônica, se consideram vítimas de seus governantes. Por isso, os argumentos dos anarco-capitalistas, se difundidos, podem fazer muito mais estragos do que as marretas dos black blocs. </div>
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É preciso deixar claro, porém, que uma coisa não levaria à outra. Alguém convencido de argumentos anarco-capitalistas jamais sairia cometendo agressões. A atitude revolucionária do anarco-capitalista, como é bem sabido, é a resistência pacífica. Por exemplo, o governo o proíbe de vender cachorro-quente em um carrinho. Você desobedece. O agente do governo vem confiscar seu carrinho. Você luta se ele o agredir, corre se puder, etc... Em uma sociedade convencida de que hierarquias devem brotar apenas do consentimento, os outros vão ajudá-lo a esconder seu carrinho ao menos sempre que isso não implicar em sofrer uma sanção. A troco de que, no final, o governo insistiria em perseguir seu carrinho? No final, enviar a carta não seria a saída até mais inteligente, do ponto de vista da sobrevivência da instituição?</div>
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Mas, Andrea, quem disse que as pessoas se convencem por argumentos? Elas apenas, por exemplo, aprenderam a acreditar que escravidão é errado, do mesmo jeito que poderiam ter se acostumado a acreditar que escravidão é certo. E o governo? Quem diz que faz o que é mais racional do ponto de vista de seus próprios interesses? Nossa presidente mal consegue articular duas sentenças! </div>
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Agora, sim, eu aceito seu argumento. De fato, apenas uma pequenina parcela da humanidade consegue refletir sobre seus próprios princípios e fazer o mínimo de esforço para viver de forma coerente com eles. É muito provável então, você dirá, que, por isso, o anarco-capitalismo sempre triunfe nos discursos teóricos, sem jamais alcançar a prática. </div>
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Contudo, aqui, ainda parece estar escapando um ponto àqueles que gostam de denunciar utopias. A validade de um princípio moral, Kant me ensinou, não requer que o mundo, de fato, esteja de acordo com ele. Mas, sim, que <b>você</b> <b>possa</b> agir de acordo com ele. Pois bem, meu amigo, você pode muito bem agir tomando a obediência a leis positivas por si só como um conselho prudencial, em vez de um imperativo categórico. É esse todo o ponto do anarco-capitalismo! Em outras palavras, você pode colocá-lo em prática, sem esperar que a Dilma faça isso por você. </div>
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Por sinal, existe um imperativo em Kant que é compreendido por poucos. Diz, mais ou menos, assim: "aja como se a humanidade progredisse sempre para o melhor". Claro que o melhor, para Kant, infelizmente, não era o anarco-capitalismo, mas sim um ideal de República. Mas eu posso me apropriar exatamente do que ele tinha em mente com aquele imperativo: É seu dever viver já de acordo com seu ideal, como se a humanidade estivesse progredindo para aquele ideal. Em poucas palavras, seja o escravo que ousou saber e ainda fazer uso público de sua razão.</div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/05507574057753299136noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7696277628071033130.post-12498683182293825502013-12-27T10:41:00.002-02:002013-12-27T10:41:21.419-02:00Deus morreu! Mas por que não o Estado?<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgt_YOmO0z4FsRXGZPYHOmAlTeOYfcRGrQVbDl8PPJVEgt5cgikk6tqWzq4ZXEG1-DLzD0Y_PXzRtnIhPZ4tVQSLLav1K3BPnw4TcxuoIZFFcMgxbDGFE6hVsKhkYlkgDaBkqg-0Xm5RX8/s1600/deus-morto.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgt_YOmO0z4FsRXGZPYHOmAlTeOYfcRGrQVbDl8PPJVEgt5cgikk6tqWzq4ZXEG1-DLzD0Y_PXzRtnIhPZ4tVQSLLav1K3BPnw4TcxuoIZFFcMgxbDGFE6hVsKhkYlkgDaBkqg-0Xm5RX8/s320/deus-morto.jpg" width="307" /></a></div>
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Calma, antes de mais nada, calma. Quando eu digo que Deus morreu, refiro-me apenas ao fato de que os filósofos profissionais, via de regra, não se ocupam mais da demonstração de sua existência. Foi-se o tempo em que os grandes nomes da filosofia se debruçavam sobre estratégias lógicas das mais diversas para provar a existência de um ser absoluto diferente do mundo e seu criador. Talvez, ainda haja quem faça isso. Todavia, por mais que a filosofia seja marcada pela ausência do consenso, a imensa maioria dos filósofos acadêmicos entende que a questão da existência de Deus deva pertencer ao domínio do insolúvel. </div>
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Eu confesso que, quando comparo essa situação atual com os debates filosóficos da Idade Média e início da Idade Moderna, fico pensando se não chegará também o dia em que o Estado morrerá, ou seja, o dia em que os filósofos profissionais entenderão que não é possível justificar racionalmente a autoridade política, entendida como um direito especial que uma pessoa ou um grupo teria para exigir a obediência de todos os demais. Inclusive, como todos bem sabemos, as duas questões - Deus e autoridade política - já apareceram conectadas na história da filosofia.</div>
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Claro que a simples existência de Deus não seria suficiente para resolver o problema desse direito especial que caracteriza a autoridade política. Explico. Ainda que Deus exista, isso não significa que ele tenha assinalado alguém para governar aos demais. Ele poderia ter criado a todos rigorosamente iguais, como queria Locke contra Filmer. Na verdade, ainda que Deus exista e que tenha assinalado alguém para nos governar, como queria Filmer, isso ainda não significa que sejamos capazes de identificar o seu escolhido. Por isso, afirmo que, mesmo que fosse possível resolvermos o problema da existência de Deus, nem por isso, já estaria resolvido o problema da autoridade política. </div>
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Porém, a existência de Deus, se pudesse ser provada, ao menos poderia doar algum sentido à ideia de um escolhido, isto é, à ideia de um portador de direitos especiais. A autoridade política seria, ao fim e ao cabo, a autoridade do representante de Deus na Terra. Por isso, uma vez que não se podia mais aceitar que o poder absoluto dos reis era diretamente derivado do poder do ser absoluto que nos criou a todos, surgiu, para a filosofia, o problema da justificativa racional do dever de obediência ao Estado. Se não se trata de uma extensão do dever de obediência a Deus, por que diabos teríamos que obedecer a um homem exatamente igual a qualquer um de nós?</div>
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Foi aqui, para não deixar o Estado morrer com Deus, que a filosofia inventou um outro ente tão metafísico quanto: o povo. Desde a morte de Deus, não se governa mais em Seu nome, mas em nome do... povo. Na verdade, a autoridade política nem sequer se apresenta mais como um direito especial que alguém teria de governar aos demais, mas sim como o povo governando a si mesmo. Eis o mito da democracia substituindo o mito de todas as religiões.</div>
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Mas qual o referente do conceito "povo"? Só poderia ser a soma completa dos indivíduos efetivamente existentes em um dado território em um dado tempo. Mas então uma decisão só seria uma decisão do "povo" se fosse uma decisão empiricamente unânime, coisa que jamais se viu em qualquer democracia. Se um único indivíduo se mostra contrário a uma decisão, já não se trata mais de uma decisão do "povo", mas sim de uma decisão da maioria. É aqui que a filosofia não pode se furtar à tarefa de justificar o direito da maioria de submeter a minoria à sua autoridade. Sem essa justificativa, a democracia é apenas o governo da força, como qualquer tirania.</div>
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<br /></div>
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Agora, por que a união de indivíduos em uma maioria conferiria a essa maioria direitos especiais, portanto, direitos que eles não possuiriam como indivíduos separados? Certamente, a união faz a força, mas por que faria o direito? Você aceitaria que um indivíduo, considerado isoladamente, não tem o direito de lhe obrigar a deixar de ingerir uma substância tóxica nociva à sua própria saúde. Agora, se todos os outros indivíduos da sua comunidade, exceto por você, concordarem que você não deve ingerir essa substância, então eles passam a ter o direito de lhe obrigar a não ingeri-lá. Por quê? Não seria mais razoável aceitar que eles passariam apenas a ter força para lhe obrigar?</div>
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<br /></div>
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Talvez, você acredite que o direito da maioria emana do fato deles terem lhe concedido o direito a também dar seu voto. Veja só, seus vizinhos se reúnem para decidir se você pode continuar ingerindo sódio e vendo pornografia no computador, mas eles são democráticos, então eles deixam você votar também. Isso significa que a autoridade política não está mais personalizada em João ou José. Ela é pura e simplesmente concentrada na maioria numérica, seja lá quem for que a componha. </div>
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<br /></div>
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Neste ponto, eu recoloco a pergunta. A menos que você tenha dado seu consentimento ao princípio da maioria, como eu fiz pontualmente, por exemplo, ao aceitar ser membro de um departamento em uma universidade, por que uma maioria teria direitos especiais sobre você? Quem escolheu o princípio da maioria como um princípio de legitimidade? Circularmente, a maioria? Você só evita o círculo se puder explicar por que o mero fato da maioria tornaria legítima a mesma imposição que seria ilegítima caso partisse de uma minoria. Dizer que eu poderia ter sido parte da maioria, se eu tivesse votado (como me foi permitido) e se um número suficiente dos outros tivesse votado comigo, não resolve o problema. Se eu não concordei em jogar o jogo, então não basta dizer que as regras, em tese, permitiriam a minha vitória, para que você tenha o direito de me forçar a aceitar a sua vitória.</div>
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<br /></div>
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Então é isso. Até que me provem a legitimidade do princípio da maioria (sem circularidade), eu seguirei acreditando que o filósofo libertário está para a filosofia política contemporânea assim como o "insensato" estava para a filosofia medieval cristã. Talvez, um dia, vocês que aceitaram que Deus é apenas uma questão de fé, ou seja, de uma decisão subjetiva de acreditar, também aceitem que o Estado é apenas uma questão de força. A filosofia não pode acabar com o fanatismo, mas pode, ao menos, parar de lhe prestar homenagens servis.</div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/05507574057753299136noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7696277628071033130.post-46645865454607238592013-12-20T15:10:00.000-02:002013-12-20T20:05:15.866-02:00O que significa o direito de ser livre?<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhLOTyxp50BNGU-RAdmvvaC0IKlxSmal20-OteTus5GUPb7bE2_aTUG9eLso8kCv6L2E6CuiWAhxyEIPq8tfd521YuoK5I6xx46AZr2J3Fxvsks5sdb1LyKv71yey50Xx1CDidAw5XlNwk/s1600/liberdade.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="315" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhLOTyxp50BNGU-RAdmvvaC0IKlxSmal20-OteTus5GUPb7bE2_aTUG9eLso8kCv6L2E6CuiWAhxyEIPq8tfd521YuoK5I6xx46AZr2J3Fxvsks5sdb1LyKv71yey50Xx1CDidAw5XlNwk/s320/liberdade.png" width="320" /></a></div>
<br />
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Costumo dizer a meus alunos que há duas maneiras (não excludentes) de criticarmos um argumento. Podemos aceitar as premissas do adversário, ao passo que procuramos mostrar que a inferência feita a partir delas é logicamente inválida. Nesse caso, procuramos mostrar que as premissas não bastam para justificar a alegação feita pelo nosso oponente, de modo que a conclusão ainda poderia ser falsa, mesmo que as premissas fossem verdadeiras. Mas também podemos aceitar a validade do raciocínio do nosso oponente, negando então que o ponto de partida (a premissa) seja aceitável. Tenho notado que, via de regra, os colegas com quem discuto minhas posições libertárias Brasil afora tendem mais a recusar minha premissa, no caso, a redução de todo o direito a um direito irrestrito à liberdade não agressiva, do que a tentar invalidar meus argumentos anti-estatistas construídos a partir dessa premissa.</div>
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<br /></div>
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Para que compreendam melhor o ponto, saibam que eu entendo o famoso princípio libertário de não agressão como um princípio de não coerção. Coerção, por sua vez, eu entendo como todo uso da força, ou ameaça de uso da força, pelo qual se procura evitar que um agente escolha um determinado curso de ação, a princípio, disponível para ele. Em outras palavras, coerção é uma restrição que um agente impõe pela força ao arbítrio de outro. Já o direito à liberdade, eu entendo como um direito à ausência de coerção.</div>
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<br /></div>
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É verdade que circunstâncias também podem restringir o arbítrio de um agente, mas eu argumento que esse fato é absolutamente irrelevante do ponto de vista jurídico, de tal forma que não faria sentido algum falarmos em violações de direitos no contexto de restrições impostas por circunstâncias. </div>
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<br /></div>
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Considere o seguinte. Você está fazendo uma trilha desconhecida no meio de uma mata fechada. De repente, você sofre uma queda, fratura a perna e não consegue mais retomar a caminhada. Você está preso na mata. Agora, em outro cenário, você está fazendo a mesma trilha, mas, em vez de meramente sofrer uma queda, você cai em uma armadilha montada por um sociopata caçador de seres humanos. Ele o impede de retomar a caminhada. Nos dois casos, a restrição à sua liberdade é a mesma. Porém, você há de convir que, apenas no segundo caso, faz sentido dizer que um direito seu foi violado, não é mesmo? E por que é assim? Porque apenas no segundo caso a sua liberdade foi tolhida pela força de um outro agente, quer dizer, por outro arbítrio, e não pela natureza ou pelo contexto.</div>
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<br /></div>
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Assim, como bem definiu Kant, a liberdade que consiste em um direito moral não diz respeito à independência de constrangimento das circunstâncias, mas sim, justamente, à independência de restrições ao nosso arbítrio impostas à força pelo arbítrio de outro agente. </div>
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<br /></div>
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Naturalmente, dado que um direito, em sentido moral, além de corresponder a um dever, deve ainda ter validade recíproca, a independência de coerção do arbítrio de outro a que temos direito não pode valer incondicionalmente. Há uma condição para o exercício de nosso direito à liberdade assim concebida. Todavia, trata-se de uma condição que brota internamente da própria ideia de um direito universal à independência de coerção por parte do arbítrio de outro. Essa condição é apenas que nossa própria ação não seja ela mesma, primeiramente, uma coerção para o arbítrio de um outro. Em suma, não podemos reclamar o direito de não sofrermos coerção apenas quando nós mesmos, primeiramente, estamos usando nossa liberdade de modo coercivo. É assim que falo em um direito irrestrito ao uso não agressivo (não coercivo) da liberdade.</div>
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<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Muito bem, é claro que eu preciso justificar essa premissa, antes de extrair conclusões anti-estatistas dela. Ela mesma consiste em uma alegação considerável para a qual eu assumo o ônus da prova. Entretanto, curiosamente, meus oponentes não se interessam tanto em desafiar minhas razões para reclamar esse direito. Eles preferem, em vez disso, constatar um caráter algo anêmico nessa minha premissa. Ela simplesmente pecaria por ser fraca demais, ou reducionista demais, na medida em que eu reduziria todo o direito a um simples direito de não ser forçado a nada por outro. Falam então em um conceito maior, mais forte, mais rico... da liberdade a que teríamos direito. Isso me dá a entender que eles pensam que o conceito de liberdade deles engloba o meu e o estende. Bom, eu acredito que não seja bem assim.</div>
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<br /></div>
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Note que, juridicamente, quando falamos em um direito, estamos, automaticamente, postulando obrigações que podem ser impostas pelo uso da força. Alegar um direito é sempre alegar o direito de exigir seu respeito por parte dos demais agentes. Eu penso dispensá-los de sua obrigação de respeitar meu direito. Mas isso cabe a mim. A rigor, um Robinson Cruzoe não teria direito algum, porque ele não teria ninguém a quem opor direitos. Dito isso, fica claro que o conceito de uma coerção legítima, uma autorização para o uso da força, é, como dizia Kant, sinônimo do conceito de direito.<br />
<br />
Decorre dos esclarecimentos do último parágrafo que só não é contraditório dizermos que temos direito à liberdade (entendida como ausência de coerção), portanto, que estamos autorizados a usar a força em nome dessa liberdade (para protegê-la como direito), quando (e somente quando) estamos exercendo coerção contra uma coerção prévia. Como Kant diz em um de seus momentos mais brilhantes, a resistência que se opõe a uma resistência à liberdade colabora com ela. Em síntese, coerção de uma coerção é um favorecimento da liberdade, do mesmo jeito que, matemática e logicamente, a negação de uma negação equivale a uma afirmação.</div>
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<br /></div>
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Quero com isso dizer que, sempre que uma coerção for praticada para além da supressão de uma coerção prévia, teremos a pura e simples coerção de um arbítrio por parte de outro, o que viola o suposto direito, alegado por mim, à liberdade como independência da coerção do arbítrio de outro. Por consequência, - é aqui onde eu queria chegar - meu oponente não pode dizer que tem um conceito de liberdade como direito que é mais amplo, rico... do que o meu. Na verdade, ele tem um conceito de direito à liberdade oposto ao meu, pois, sempre que ele fizer valer pela força o direito mais amplo que ele alega ter, ele necessariamente violará o direito minimalista que eu alego ter. </div>
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<br /></div>
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Muito bem, o meu oponente tem um conceito de direito à liberdade, de acordo com o qual posso ser coagida a fazer x ou a deixar de fazer x, mesmo quando, ao não fazer x ou ao não deixar de fazer x, eu não coajo ninguém. Em nome de sua concepção de direito à liberdade, o meu oponente me faz fazer à força aquilo com o que eu não consinto. Será então que, realmente, faz sentido que ele se apresente como um defensor da liberdade, assim como eu, apenas tendo um conceito mais "rico" dela? Particularmente, acho muito curioso esse conceito de liberdade que permite que uma arma seja apontada para mim para que eu faça o que não quero fazer. Será que não seria mais honesto - e mais produtivo para o debate - que o meu oponente assumisse que, para ele, há valores superiores à liberdade, em nome dos quais podemos violar o direito à liberdade sempre que for preciso, como o combate à fome, por exemplo?</div>
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<br /></div>
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Sabe, há momentos na filosofia em que precisamos "morder a bala" [<i>bite the bullet</i>], como dizem os anglófonos. Em outras palavras, nós precisamos aceitar que, ao defendermos determinados valores, podemos estar nos comprometendo com consequências indesejáveis. No meu caso, morder a bala significa aceitar que, como defendo o direito irrestrito à liberdade não agressiva, não posso, ao mesmo tempo, defender que uma pessoa rica seja forçada a amparar um miserável. No caso do meu adversário, como ele defende que os miseráveis sejam amparados pelo Estado com recursos públicos, ele precisa aceitar que ele defende a iniciativa de violência em nome de determinados fins. Não se pode ter o melhor de dois mundos!</div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/05507574057753299136noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7696277628071033130.post-54016563725326022092013-11-26T10:45:00.000-02:002013-11-26T10:45:17.866-02:00Teria Nozick sido o maior dos anarco-capitalistas?<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgu3lvqnOUCYbE0uOUkYJZYVso6ivGKLKrk2EzRydNmk8hgGtehGUBJY42SNFr5dxXgGSMIIdvXqDtoSD3y9koqkgvlmj0ok0D_eMVR5xxsKO5Aa0BzHHujsaWOyqizn2lVmJFS1InIum8/s1600/555739_408901875837059_2075144114_n.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="167" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgu3lvqnOUCYbE0uOUkYJZYVso6ivGKLKrk2EzRydNmk8hgGtehGUBJY42SNFr5dxXgGSMIIdvXqDtoSD3y9koqkgvlmj0ok0D_eMVR5xxsKO5Aa0BzHHujsaWOyqizn2lVmJFS1InIum8/s320/555739_408901875837059_2075144114_n.jpg" width="320" /></a></div>
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<br /></div>
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Sabe quando você lê uma obra de ficção até o final e o desfecho o surpreende de tal maneira que você precisa atribuir um novo sentido a tudo que leu até ali para encaixar aquela conclusão em um todo coerente? Foi assim que eu me senti finalizando a leitura mais rigorosa que fui capaz de fazer da primeira parte de <i>Anarquia, Estado e Utopia</i>. </div>
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Logo no prefácio dessa obra, Nozick havia declarado sua posição no debate político: ele defenderia o Estado mínimo, entendido como um Estado limitado às funções de proteção contra violência e fraude. Foi por essa razão que, aqui mesmo, eu o classifiquei como um liberal clássico, reservando o termo libertário aos anarco-capitalistas, para maior organização de minha leitura pessoal do debate. </div>
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<br /></div>
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Também a segunda parte da obra de Nozick, devotada à crítica da teoria da justiça de John Rawls e outras igualmente proponentes de maior intervenção estatal, apresenta a posição do autor como aquela segundo a qual o Estado não deve ir além do mínimo, o que, em termos de configuração final da sociedade na prática, não nos diz muito quanto a diferenças essenciais entre a concepção de Estado de Nozick e aquela de qualquer liberal clássico.</div>
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<br /></div>
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Neste post, pretendo explicar por que não acho mais que seja simples assim, ou seja, por que passei a considerar indevida a classificação de Nozick como um combatente das fileiras do liberalismo clássico ou um mini-arquista em sentido próprio.</div>
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Confesso que, desde o início de minha leitura da primeira parte de <i>Anarquia, Estado e Utopia</i>, eu me preparei para presenciar um fracasso filosófico retumbante. Explico. Nozick se comprometeu com a premissa tipicamente libertária, de acordo com a qual a associação entre os indivíduos não produz novos direitos. Em outras palavras, conforme essa tese, um grupo de indivíduos não possui qualquer direito que não possa ser reduzido à soma dos direitos individuais de seus membros. Assim, os direitos civis já seriam todos direitos naturais. </div>
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<br /></div>
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Ora, por outro lado, via de regra, entendemos a autoridade política constitutiva do Estado como a alegação de um direito especial por parte de um grupo de indivíduos: apenas os agentes do Estado teriam o direito de executar a justiça dentro de um dado território. Dentro da tradição weberiana, isso pode ser explicado como a alegação de um direito ao monopólio do uso da força dentro de um território. Com isso, para que uma instituição cumprisse ao menos com o requisito mínimo para ser chamada de Estado, constituindo-se, portanto, como Estado mínimo, ela já teria que violar a premissa libertária da inexistência de quaisquer direitos especiais na condição civil. </div>
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<br /></div>
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Agora, você entende por que eu estava incrédula quanto à capacidade de Nozick de justificar o Estado mínimo sem contradizer a premissa libertária de seu argumento: seria impossível justificar o Estado sem fazer com que, da associação dos indivíduos em sociedade civil, surgisse esse novo direito à exclusividade da execução da justiça.</div>
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<br /></div>
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Verdade seja dita, embora, no início da obra, Nozick tenha explicado o problema do Estado nos termos da tradição weberiana, a menos que algo tenha me escapado, ele não assumiu conosco o compromisso de justificar o Estado entendido nesses termos. Na passagem mais significativa para o ponto, ele diz apenas que:</div>
<blockquote class="tr_bq" style="text-align: justify;">
uma condição necessária para a existência de um Estado é que ele (alguma pessoa ou organização) anuncie que [...] punirá a todos que ele descobrir terem usado a força sem sua permissão expressa. (p. 24)</blockquote>
<div style="text-align: justify;">
A partir de então, Nozick pretende mostrar que, para fazerem tal anúncio, os agentes do Estado prescindem de qualquer direito especial. Acontece que o custo desse reconhecimento de que ninguém teria um direito especial de fazer tal anúncio é justamente a perda do direito ao monopólio do uso da força. O que Nozick, de fato, mostrará é apenas que, para que a justiça seja devidamente executada, não basta que o punido seja culpado, mas que saibamos que ele é culpado. A introdução desse princípio epistêmico servirá para demonstrar que qualquer um teria o direito de proibir a execução de uma pena se a culpa do réu não é devidamente comprovada aos olhos do público. É com base nesse direito que, após ter tornado público todos os procedimentos que ela considera especialmente capazes de condenar inocentes, uma organização teria legitimidade moral para punir quem usasse um procedimento diferente dos listados para punir um de seus membros por um crime alegado. </div>
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<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Acontece que, e isso é fundamental, 1) ninguém fica obrigado a se tornar membro de tal organização; 2) ninguém fica obrigado a permanecer indefinidamente como membro da organização; 3) ninguém fica impedido de fundar outra organização; 4) outros indivíduos e organizações conservam exatamente o mesmo direito de anunciar que punirão quem punir indivíduos com base em procedimentos penais que consideram pouco confiáveis para averiguar a culpa; 5) os agentes de quaisquer organizações podem ser punidos por violações de direitos como quaisquer outros indivíduos. Nozick apenas supõe - e com bons argumentos, creio eu - que a maioria das pessoas faria parte de uma mesma organização ou federação de organizações, que teria mais força para exercer o direito de punir quem executa o direito sem averiguar devidamente a culpa do réu. Assim, haveria um monopólio de fato do direito de executar processos penais contra membros da organização majoritária. Só. Nada mais. </div>
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<br /></div>
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É isso mesmo que você entendeu: o "Estado" de Nozick opera <b>dentro</b> de uma sociedade da qual fazem parte independentes ou, ao menos, qualquer um pode se tornar independente no momento em que quiser. E, sim, para ser moralmente legítimo, esse "Estado" teria que aceitar a concorrência pelo mercado da justiça dentro do seu próprio território. É por isso que quem leu a Parte I de <i>Anarquia, Estado e Utopia </i>até o fim viu Nozick dizer que, por vezes, em vez de falar em "Estado", para lembrar que ele havia enfraquecido a definição weberiana do conceito, ele falaria em uma "entidade semelhante ao Estado [statelike entity]" (p. 118).</div>
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<br /></div>
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Agora, você deve estar se perguntando: "Ok, parece que Nozick, no final das contas, defendeu uma instituição compatível com o anarco-capitalismo, mas por que isso o tornaria o maior dos anarco-capitalistas?" Muito bem. Era a isso que eu me referia quando disse que, ao chegar ao final do argumento e constatar que Nozick não justifica o que usualmente entendemos por autoridade política, tive que re-significar minha leitura das passagens anteriores. Lembrei-me então que sempre que Nozick havia apresentado problemas inerentes à execução do direito em uma sociedade sem Estado (entendido em sentido weberiano), ele observou, às vezes como quem não queria nada, que o Estado tampouco resolveria aqueles problemas. Por exemplo, você pode dizer que, sem o Estado, não existe consenso quanto ao que seria justo ou injusto para podermos aplicar a justiça. Porém, o Estado tampouco cria esse consenso. Ele apenas impõe um dos conceitos para todos. Ao mostrar como o direito pode ser executado por uma agência privada que, na busca da maximização de seus lucros, acaba agindo com transparência pública e imparcialidade, evitando a guerra, Nozick mostra que, no mínimo, a execução do direito na sociedade anarco-capitalista é tão factível quanto no Estado weberiano. </div>
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Em suma, eu aprendi com Nozick que o executor público do direito não deve ser o Estado weberiano, exatamente porque ninguém tem uma prerrogativa natural sobre os demais para decidir o certo e o errado. É essa a distinção que Nozick faz no capítulo 6, na seção que versa justamente sobre legitimidade, entre uma organização que tem certos poderes apenas porque alguns indivíduos consentiram em transferir seus direitos a ela e uma organização que se julga no direito de que indivíduos transfiram seus poderes a ela. Mais ainda, eu aprendi que o reconhecimento da violência inerente ao Estado weberiano não nos condenaria a nenhum caos social, já que Nozick descreve cenários perfeitamente plausíveis de execução da justiça sem um Leviatã.</div>
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Para terminar, eu gostaria de mostrar uma passagem em que Nozick cita Locke e parece confessar seu plano de nos seduzir ao anarco-capitalismo disfarçando-o com o seguro manto da palavra "Estado":</div>
<blockquote class="tr_bq" style="text-align: justify;">
Nós devemos dizer que um Estado que surgiu do estado de natureza pelo processo descrito substituiu o estado de natureza que, portanto, não existe mais, ou nós devemos dizer que <b>ele existe dentro de um estado de natureza e, portanto, é compatível com ele</b>? Sem dúvida, a primeira alternativa se encaixa melhor na tradição lockeana; mas o Estado surge tão gradualmente e imperceptivelmente do estado de natureza de Locke, sem qualquer quebra de continuidade grande ou fundamental, que somos tentados a escolher a segunda opção, a despeito da incredulidade de Locke: "<b>a menos que alguém vá dizer que o estado de natureza e a sociedade civil são uma e a mesma coisa, coisa que eu nunca encontrei alguém que fosse um defensor tão grande do anarquismo para afirmar</b> (§ 94)." (p. 133)</blockquote>
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Parece que Nozick quis ser esse cara...</div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/05507574057753299136noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7696277628071033130.post-66357437861861154342013-11-23T20:07:00.000-02:002013-11-23T20:07:17.548-02:00Respondendo as questões do NYT<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgauvtPqYA4sf8AGG9sHD1r4HNk_k4GF-Ixw_3pqEaM52P3mB3gmqgP8vY4KS41ghV7C_EgCN-azb-653DZeHJkrP9fPv6mYF7MYC3UHlWyIxxrzBTTw7VtSB1CxOmwjsH1dZv_nRKfeZk/s1600/Nytimes_hq.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="212" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgauvtPqYA4sf8AGG9sHD1r4HNk_k4GF-Ixw_3pqEaM52P3mB3gmqgP8vY4KS41ghV7C_EgCN-azb-653DZeHJkrP9fPv6mYF7MYC3UHlWyIxxrzBTTw7VtSB1CxOmwjsH1dZv_nRKfeZk/s320/Nytimes_hq.jpg" width="320" /></a></div>
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<div style="text-align: justify;">
No dia 20 de outubro, o jornal democrata The New York Times publicou uma <a href="http://mobile.nytimes.com/blogs/opinionator/2013/10/20/questions-for-free-market-moralists/?rct=j&q=%22amia+srinivasan%22&source=web&cd=8&ved=0CEsQFjAH&url=http%3A%2F%2Fopinionator.blogs.nytimes.com%2F2013%2F10%2F20%2Fquestions-for-free-market-moralists%2F&ei=jR6QUrWUG9GPkAeU1IHYBw&usg=AFQjCNG5w3J8zfSSNLZYa-lgyJfFziNDkA&bvm=bv.56988011%2Cd.eW0&_r=0" target="_blank">coluna de opinião</a> em que Amia Srinivasan, basicamente, retrata Nozick como o ideólogo por trás das tentativas mais canalhas de justificativa do <i>status quo</i>. Eu ia parando de ler o artigo no ponto em que a autora chega ao cúmulo de associar o libertarianismo de Nozick a uma "crescente proteção a corporações". Fui mais um pouquinho adiante para ter a infelicidade de ver Nozick sendo culpado até pela "corrente crise econômica". Daí parei.<br />
<br />
Resolvi voltar a ler, porque lembrei que os amigos que me mostraram o artigo haviam mencionado algumas questões. Fiquei curiosa para ver quais eram. Pois bem, já que li as questões, vou me dar também ao trabalho de respondê-las.<br />
<br />
<i>1. Na ausência de compulsão física direta de uma parte contra outra (ou ameaça disso), qualquer troca entre duas pessoas é necessariamente livre?</i><br />
<br />
Em sua própria resposta, a autora denuncia um equívoco por parte de quem responde positivamente à pergunta, porque essa pessoa estaria negligenciando um tipo de coerção que não é exercido por um agente sobre outro agente, mas sim por parte de circunstâncias, como o fato de um agente ter filhos que passam fome. Bom, Deus dai-me paciência com quem não lê Kant e vamos lá!<br />
<br />
É claro que, primeiramente, temos que esclarecer o que entendemos por liberdade aqui. Do ponto de vista interno, podemos nos perguntar se quem passa fome ou, mais ainda, sente a dor de ver seus filhos passando fome, ainda é livre para tomar decisões, ou tem seu arbítrio necessariamente determinado por tais inclinações. Não sou especialista no assunto, mas imagino que a fome, em grau extremo, pode muito bem transtornar as faculdades do sujeito a ponto dele não ter mais condições de ser considerado um agente livre e racional. Agora, se o agente ainda é capaz de deliberação, supondo a validade de uma tese metafísica de acordo com a qual seres humanos teríamos um livre-arbítrio, então o fato do agente ter apenas duas opções diante de si (no exemplo da autora, se prostituir ou deixar os filhos passando fome) não o tornaria menos livre.<br />
<br />
A liberdade, como bem lembrou o Aguinaldo em uma de nossas reuniões, não é ampliada ou diminuída conforme o número de opções disponíveis para a escolha. Você não é mais livre para escolher em um restaurante com um cardápio mais variado do que o de outro (para roubar também o exemplo do Aguinaldo). Então, OK, reconheçamos que a situação de um agente que precisa escolher entre X e a morte é uma situação indesejável e desfavorável, mas não digamos que, só por isso, isto é, pela escassez de alternativas, o agente não seria livre para escolher entre elas. Não estupremos os conceitos para conseguirmos chegar às conclusões que desejamos!<br />
<br />
Agora, em prol do argumento, suponhamos que o agente pressionado por <i>circunstâncias</i> não seja livre. A questão então seria: o que um agente A teria a ver com a escassez de opções que, independentemente dele, se colocam diante do arbítrio de um agente B? É fácil ver por que Kant disse que o nosso único direito inato é um direito à independência da <i>coerção do arbítrio de outro</i> (não da coerção de circunstâncias), desde que a nossa liberdade não seja ela mesma usada de maneira coercitiva primeiramente. Nesse caso determinado por Kant, eu tenho como exigir daquele que me aprisiona que ele me liberte, quer dizer, o meu direito, se existe mesmo, é obviamente correspondido por uma obrigação por parte de outro.<br />
<br />
Mas notem que a autora do artigo admite francamente que, em seu exemplo, são <i>circunstâncias </i>que exercem coerção sobre o agente. Pois bem, cabe a ela o ônus de provar que o agente A tem a obrigação de livrar o agente B de circunstâncias adversas e, acima de tudo, deve ser punido se ele não cumprir com essa obrigação. Em outras palavras, a autora precisa demonstrar a legitimidade de uma obrigação e, mais ainda, a legitimidade de um direito ao exercício da coerção para que a obrigação seja cumprida, pois também é possível que haja obrigações meramente éticas, no sentido em que não podemos ser externamente forçados a cumpri-las. Neste debate sobre políticas de Estado, afinal, trata-se sempre de saber com que direito a coerção pode ser exercida por um agente sobre outro. Não está em questão, portanto, meramente determinarmos se não seria virtuoso ajudarmos o agente B a ampliar seu leque de escolhas, mas sim se há uma obrigação tal que A possa ser punido por não fazer isso por B.<br />
<br />
Assim, o que a autora defende é que, estando o agente B sob a coação de "circunstâncias", o agente A, que não exerceu nenhuma coerção, deve ser, ele sim, coagido por outro agente, no caso o Estado, a libertar o agente B. Eu, realmente, não vejo como essa tese faria sentido sem toda uma teoria de acordo com a qual se provasse que B, de fato, encontra-se em tais circunstâncias por responsabilidade de A.<br />
<br />
<i>2. Qualquer troca livre (não compelida fisicamente) é moralmente permissível?</i><br />
<br />
Li e reli a resposta que a autora considera libertária. Confesso que não entendo o que ela vê de tão chocante nela. No exemplo da autora, o dono de um latifúndio paga pouco para quem cultiva uma parte de suas terras, que, mais tarde, ele vende por muito. Honestamente, exceto pela aceitação da teoria da mais-valia, que, junto com a teoria do valor trabalho, eu recuso, eu não posso ver qual o escândalo aqui. Novamente, ressalto que está em jogo a justiça (obrigações cujo cumprimento pode ser objeto de coerção externa), e não a virtude. Talvez, o latifundiário não seja virtuoso. Mas, certamente, não acho que ele tenha sido injusto, a menos que se prove que seus pais, de quem ele herdou a terra, tenham adquirido essas terras por violência ou fraude.<br />
<br />
<i>3. As pessoas merecem tudo que elas podem conseguir, e somente o que elas podem conseguir, através de livre troca?</i><br />
<br />
Bom, isso eu já respondi <a href="http://andreafaggion.blogspot.com.br/2013/06/por-um-libertarianismo-sem-meritocracia.html" target="_blank">aqui</a>. Meritocracia não tem nada a ver com meu libertarianismo (e nem com o de Nozick).<br />
<br />
<i>4. As pessoas não têm a obrigação de fazer nada que elas não queiram fazer livremente ou tenham se comprometido livremente a fazer?</i><br />
<br />
Esta é a mais divertida. De fato, de acordo com o libertarianismo, sem um contrato prévio livremente estabelecido, eu não tenho obrigações positivas, mas apenas negativas. Quer dizer, eu tenho obrigações gerais apenas de deixar de fazer algo, mas não de fazer algo. No caso, eu tenho, para com todos, independentemente de contrato, as obrigações de não cometer fraude e violência.<br />
<br />
Então, vejamos o exemplo da autora, que ilustraria o absurdo da posição libertária. A caminho da biblioteca, eu veria um homem se afogando. Então, eu calcularia que o prazer de salvá-lo não compensaria o transtorno de me molhar e me atrasar. Assim, como eu não assinei nenhum contrato me obrigando a resgatar esse homem, eu o deixo se afogando e sigo meu rumo.<br />
<br />
Creio que, agora, mais do que nunca, vale a distinção que eu venho fazendo entre obrigações <i>simpliciter</i> e obrigações cujo cumprimento pode ser objeto de coerção (portanto, de punição em caso de falta com a obrigação). A autora quer mostrar com o exemplo que Nozick precisa estar errado, porque qualquer um discordaria da conduta desse homem que deixou o outro se afogando. Da perspectiva do senso comum, diz ela, a moral de Nozick é absurda. Pois eu digo que ela falha mais uma vez em fazer as devidas distinções.<br />
<br />
Eu não sei quem é o porta-voz do tal "senso comum" que a autora evoca com tamanha autoridade. Eu diria, mais modestamente, apenas que muitos concordariam que o homem não fez a coisa certa, supondo que ele fosse um excelente nadador e um homem muito forte. Afinal, a autora despreza até o fato de que muitos poderiam morrer fazendo o que ela parece ver como um gesto tão simples. Por caridade, vou até arrumar o exemplo dela e dizer que a pessoa seguiu seu rumo sem chamar socorro para quem estava se afogando. Muito bem. Eu diria que a pessoa que não faz o mínimo de esforço para socorrer quem está agonizando diante dela não é virtuosa. Mas isso é diferente de dizer que ele deve ser punido por omissão de socorro em um acidente que ele não causou.<br />
<br />
Na verdade, assumir que as pessoas podem ser coagidas a prestar socorro, quando esse socorro não representa um custo alto demais, parece ter, sim, implicações que não parecem agradar tanto ao paladar do nosso querido "senso comum". Naturalmente, a autora do artigo não deve estar prioritariamente preocupada com leis que punam a omissão de socorro em acidentes. O meu exemplo, penso eu, é que vai ilustrar melhor o ponto dela e, talvez, colocar de forma mais honesta, diante do tribunal do "senso comum", o que ela quer verdadeiramente defender.<br />
<br />
Hoje é sábado. Possivelmente, você está se arrumando para sair com os amigos. Você não é o rei do camarote, mas vai gastar algum dinheiro em cerveja. Um dos seus amigos, porém, toma à força metade do dinheiro que você tinha guardado para a cerveja. Você se exalta diante da explicação de que não vai te fazer mal nenhum tomar metade da cerveja que você tinha planejado tomar. Mas, então, ele explica que agiu por uma boa causa. Ele gastou o valor (que ele dobrou com recursos próprios) em uma doação para um projeto que salva a vida de crianças africanas, investindo em coisas tão básicas como água potável. E o que são umas cervejas a mais diante de quem não tem água potável?<br />
<br />
Eu termino este post de respostas libertárias com uma questão libertária para o senhor "senso comum": seu amigo tinha esse direito?</div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/05507574057753299136noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7696277628071033130.post-89992941610994573822013-11-22T15:38:00.001-02:002013-11-22T15:38:57.063-02:00Sobre unicórnios de dois chifres<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgvV7AVLPGO7EydcQMTor547NDmmTSnEJRZSwrejVwo_WPueXPQM9LzX_HPmuI86RExIbaQNLeFzlOZK25r6hG4kGAmxmSENEcP_cqJQRpU9OkQeMaf8YzWzovitkxtjbXtXp3Vdd-UxpY/s1600/immanuelkant-130621115116-phpapp01-thumbnail-4.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="240" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgvV7AVLPGO7EydcQMTor547NDmmTSnEJRZSwrejVwo_WPueXPQM9LzX_HPmuI86RExIbaQNLeFzlOZK25r6hG4kGAmxmSENEcP_cqJQRpU9OkQeMaf8YzWzovitkxtjbXtXp3Vdd-UxpY/s320/immanuelkant-130621115116-phpapp01-thumbnail-4.jpg" width="320" /></a></div>
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Como se ainda precisasse, farei uma confissão franca, amigos. Não sou apenas alguém que se debruça quase que diariamente sobre a obra de Kant há 15 anos, eu sou kantiana, no sentido em que comungo dos princípios mais essenciais da filosofia de Kant. Eu me considero uma filósofa kantiana contemporânea, ou seja, alguém que mobiliza tais princípios - contra a letra de Kant, se preciso for - para lidar com questões atuais. Assim, o meu kantismo não é uma estratégia acidental e oportunista para defender preferências subjetivas por uma economia de livre mercado. Bem ao contrário, eu cheguei a minhas convicções libertárias como derivações do compromisso com uma certa leitura que faço do direito kantiano. Tanto é assim que eu fui informada de que o nome do que eu estava defendendo, a partir de Kant, era libertarianismo, bem antes de saber da existência de filósofos como Rothbard e Nozick. Qual não foi então minha alegria ao descobrir em Nozick um filósofo que defende suas teses morais libertárias usando Kant contra os utilitaristas. E qual não foi então o meu espanto ao ouvir falar de, pasmem, libertários utilitaristas, o que me soou desde o início como "unicórnios de dois chifres".</div>
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Neste post, quero então tratar dos equívocos que penso estarem subjacentes a essas aproximações entre o libertarianismo e o utilitarismo. O primeiro equívoco, para o qual darei menos atenção, diz respeito a uma crença de que argumentos utilitaristas seriam necessários, porque uma defesa deontológica do libertarianismo não seria persuasiva o bastante do ponto de vista popular. Para expor o segundo e mais grave equívoco, mostrarei que o princípio do utilitarismo (seja lá que forma específica ele tome) exige o abandono do individualismo e do subjetivismo, podendo promover então apenas, no máximo, uma caricatura do libertarianismo. Essa é a razão pela qual chamo os auto-intitulados "libertários utilitaristas" de "unicórnios de dois chifres". Por último, exponho um equívoco que está relacionado à crença de que um utilitarismo libertário teria um ônus epistemológico menor do que o do jusnaturalismo libertário. Mostrarei que o ônus é exatamente o mesmo, ou até maior. </div>
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Tenho para mim que a alegação de um suposto apelo popular do utilitarismo tome por base uma apresentação desonesta da doutrina. Certos populistas estão vendendo para o público a ideia de que, segundo o utilitarismo, algo é certo quando torna a todos mais felizes, quando, na verdade, a tese utilitarista resolve conflitos exatamente pesando o que favorece à maioria, pois se uma decisão favorecesse a todos, nem sequer haveria o dilema prático e a necessidade de uma teoria moral para lidar com ele. Em outras palavras, em vez de afirmar que uma sociedade pautada pelo livre mercado beneficiária mais a todos, sem exceção, o verdadeiro utilitarista defensor do livre mercado não teria qualquer problema em reconhecer o prejuízo de uma minoria no abandono do governo interventor. </div>
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Como Rothbard insistia, o Estado corporativista é defendido pelos conservadores, exatamente porque ele seria o melhor para uma elite. Mega-empresários e políticos à parte, existe ainda uma sub-elite - da qual, aparentemente, eu, como servidora pública, faço parte - que também se beneficia da situação de Estado forte. Se eu pensar exclusivamente nos meus interesses privados, não tenho nenhuma razão para desejar a privatização da UEL, por exemplo. Ademais, como o Aguinaldo já observou em uma reunião do nosso grupo, os próprios miseráveis estarão mais interessados nos benefícios imediatos dos programas sociais e políticas públicas do que na perspectiva de uma sociedade futura economicamente mais próspera. Sem os programas sociais, é verdade para muitos que se morre de fome antes dos efeitos do livre mercado se fazerem sentir algum dia! Aliás, mesmo dentro do livre mercado funcionando a pleno vapor, a situação dos inaptos é mais frágil e incerta. Eles dependerão pura e simplesmente de caridade voluntária. Ora, por definição, o que é voluntário pode não acontecer, a depender da vontade do agente. </div>
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Enfim, o defensor honesto do utilitarismo de livre mercado tem que reconhecer que o Estado atuante não é um malefício universal, o que também em nada contraria as premissas do utilitarismo, mas, ao contrário, mostra por que haveria um motivo para precisarmos do utilitarismo.</div>
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Temos até aqui, portanto, que o utilitarista honesto, ao alegar ter mais poder de persuasão, tem que convencer o público de que é lícito sacrificar um inocente pelo bem de muitos. Note uma coisa importante. Não vale introduzir sub-repticiamente o deontologismo e apresentar a minoria como se ela estivesse para sofrer um prejuízo merecido, dada alguma suposta agressão inerente ao seu benefício atual. Sem o apelo a um princípio deontológico, não podemos falar em um grupo cujos direitos são violados por outro. Trata-se apenas de calcular quantos colhem mais benefícios em cada situação. </div>
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Ora, desculpem-me, amigos unicórnios de dois chifres, mas com isso eu posso mostrar como seu utilitarismo, uma vez desnudado, não tem popularidade nenhuma. Como eu prometi que me deteria pouco nisso e já me estendi demais, na verdade, eu vou transferir o ônus para você e pedir que você me passe sua lista de obras de ficção em que um herói, de grande apelo popular, sacrificou um inocente pelo bem de muitas pessoas, como na decisão utilitarista para o dilema do Trolley. A minha lista de obras de ficção de sucesso anti-utilitaristas seria bem longa!<br />
<br />
Mas sabe por que o povo é... digamos, "kantiano"... e gosta de heróis deontológicos? Simples, é o contrário: foi Kant quem foi buscar seu princípio deontológico nos juízos morais da razão comum. Ao contrário de Ayn Rand, ele não quis ensinar ao povo o que é moral. Quis aprender com ele para esclarecê-lo. Mas, chega do fracasso de popularidade do utilitarismo, sempre que não usam de um deontologismo camuflado.</div>
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Passemos ao segundo ponto, que, na verdade, já foi preparado em minha abordagem do primeiro. O que devemos perguntar agora é qual o pressuposto dessa regra, segundo a qual, grosso modo, uma norma é correta se beneficia a maioria. Eu creio que Nozick tenha razão quanto a esse pressuposto e, se ele tem razão, prova-se meu ponto quanto ao utilitarismo ser oposto ao libertarianismo. Esse pressuposto, de acordo com Nozick, seria a existência de algo como um ente social.<br />
<br />
Veja. Se um diabético corta um dedo para não perder o pé, isso só faz sentido, porque o dedo faz parte do mesmo corpo que o pé. Assim, o corpo perdeu uma parte mínima para conservar uma mais essencial ou maior. Em outras palavras, a saúde do pé, para o corpo em geral, compensou o sacrifício do dedo. Agora, como Nozick diz, não existe o equivalente a este organismo quando passamos ao plano social. Ele sustenta a tese da separabilidade de cada vida para mostrar que o sacrifício de uma vida é e sempre será apenas seu sacrifício, não sendo em nada compensado pelo benefício gerado aos demais indivíduos, que vivem suas próprias vidas.<br />
<br />
Eu cito o argumento de Nozick apenas para mostrar a mútua exclusão entre individualismo e utilitarismo. Lembre-se sempre que, quando um utilitarista defende um direito individual, é apenas porque ele acredita no impacto positivo que o exercício desse direito terá na somatória do bem social, e não por que ele defenda o indivíduo pelo indivíduo. O enfrentamento entre Nozick e os utilitaristas traz esse fato à tona em toda sua plenitude.<br />
<br />
Um outro ponto do argumento utilitarista pelo livre mercado também parece inaceitável para um libertário. Eu me refiro ao seguinte. Se a norma é válida quando beneficia mais à maioria, temos que ter uma teoria objetiva de bens universalmente válidos, para podermos saber no que, afinal, consiste um benefício. Por exemplo, ainda que se aceite que o livre mercado gera mais prosperidade material para a maioria, quem disse que não haverá perdas no que diz respeito a outros valores, que serão mais preciosos para muitos do que a prosperidade material? Não é à toa que, volta e meia, um defensor do livre mercado precisa se ver diante da defesa de um "estilo de vida", digamos assim. É como se fosse possível provar que, para qualquer ser humano, uma vida pautada em mais tecnologia e conforto material é mais desejável do que qualquer forma de vida que a industrialização tenha deixado para trás.<br />
<br />
Por exemplo, dizem que o próprio Nozick, após <i>Anarquia, Estado e Utopia</i>, teria se tornado mais transigente em seu libertarianismo por reconhecer funções simbólicas do Estado. Inclusive, muitas monarquias são mantidas, em pleno século XXI, porque simbolizam a unidade nacional desejada pela maioria. Muitos valorizam a vida em uma sociedade paternalista muito mais do que valorizariam a vida em uma sociedade livre, exatamente porque, assim, se sentem amparados como em uma família, onde se obedece o pai, mas também se recorre a ele nas dificuldades. Na verdade, como era de se esperar, pesquisas costumam mostrar imensa aceitação de medidas paternalistas. É o paternalismo que me garante o conforto de não precisar pensar no que é melhor para mim nem quando escolho um biscoito no supermercado (papai governo vai retirar dele a gordura que faz mal!). Em suma, como dizia Kant, a saída da menoridade não é algo que fazemos de bom grado.<br />
<br />
Bom, como kantiana, eu tenho um motivo para querer que as pessoas saiam da menoridade e rejeitem o paternalismo de Estado: a dignidade humana não é compatível com a menoridade e o paternalismo. Mas se as pessoas são felizes assim, qual seu motivo, utilitarista? Você vai dizer que a maioria das pessoas apenas pensa que o paternalismo é o melhor para elas, quando deveriam rejeitá-lo para se tornarem mais felizes? Olha, boa sorte tentando mostrar que essa posição é compatível com uma filosofia libertária! Mas acho que, no máximo, você vai conseguir mostrar que o livre mercado é compatível com mais iPhones circulando na sociedade, não com mais gente feliz.<br />
<br />
Suponhamos que você tenha concordado comigo que o utilitarismo que mostra as caras como tal não é popular coisíssima nenhuma. Suponhamos ainda que você compreenda meu ponto sobre o antagonismo entre o libertarianismo e o utilitarismo. Resta ainda abordar um ponto da suposta vantagem da defesa utilitarista do libertarianismo: o utilitarismo seria epistemologicamente mais defensável do que o jusnaturalismo.<br />
<br />
Eu sempre acho patético quando um libertário começa a querer se desvencilhar do jusnaturalismo, porque o assimila à famosa falácia "is-ought" denunciada por Hume, ou qualquer variável da falácia naturalista, mas nem desconfia que direitos naturais, desde Kant, podem significar apenas direitos <i>a priori</i>. Em outras palavras, em Kant, a doutrina é "ought-ought", não "is-ought". A questão é que o primeiro "ought" é <i>a priori</i>, e só por isso, natural.<br />
<br />
Mas espera aí que a coisa fica bem estranha, viu? Eles querem evitar uma teoria jusnaturalista para não assumirem compromissos epistemológicos de tamanha monta. E então, o que eles fazem para justificar o livre mercado para além de um acidente histórico-geográfico? Isso mesmo: eles recorrem a uma teoria universal que pretende garantir que, seja lá qual for o contexto de vida em uma sociedade humana, o livre mercado, a longo prazo, sempre trará os mesmos efeitos (aqueles que eles consideram benéficos). Que tipo de teoria é essa? Pois é, pasmem, trata-se de uma teoria <i>a priori </i>da ação humana - eu repito: teoria... <i>a priori...</i> da... ação... humana - que eles chamam de "praxeologia". Sim, além de se tratar de uma teoria tão apriorística quanto o direito kantiano (ou mais?), ainda se trata de uma teoria descritiva da realidade, e não meramente normativa como o direito kantiano. Bem-vindos de volta à metafísica racionalista do séc. XVII, amigos, porque até a física newtoniana já era epistemologicamente mais modesta (muito mais)! Aliás, eu me pergunto se deveria a economia substituir a física como a mais exata das ciências naturais. Ou mesmo se deveria a economia figurar no rol das ciências formais, ao lado da matemática e da lógica.<br />
<br />
Para terminar, apesar de eu ficar chocada com o estatuto epistemológico que certos libertários atribuem à economia, meu objetivo nem é criticar a tal "praxeologia". Só a menciono para desmascarar a pretensão dos utilitaristas libertários de terem alguma vantagem epistemológica sobre jusnaturalistas. De minha parte, fico feliz por não precisar assumir a incumbência de defender esse negócio. Qualquer um que conheça um pouco de teoria do conhecimento vê que minha tarefa como defensora do direito racional é infinitamente mais fácil do que a tarefa de defender uma... err... economia racional!</div>
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Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/05507574057753299136noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7696277628071033130.post-4897733278464223742013-11-20T20:56:00.001-02:002013-11-20T21:55:34.427-02:00Esquerda e Direita: um breve exercício de lógica<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEje6hphmJkbDeJGTg2Bb3QFDYLhz4IgP9t7CRYJQDLnbblSUqPRRsgPijm9Uk-kOex9PpTLf6ExPnn5PZmPW3Q9ao1sjk0gmwTS2n6hZrr7GxWWc8CeFX-6BGZoJJv79ixMcoYLLn_BkMY/s1600/direita+e+esquerda.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="307" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEje6hphmJkbDeJGTg2Bb3QFDYLhz4IgP9t7CRYJQDLnbblSUqPRRsgPijm9Uk-kOex9PpTLf6ExPnn5PZmPW3Q9ao1sjk0gmwTS2n6hZrr7GxWWc8CeFX-6BGZoJJv79ixMcoYLLn_BkMY/s320/direita+e+esquerda.png" width="320" /></a></div>
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Este breve post tem um objetivo pretensioso: demonstrar o quão pueril é a tentativa de dividirmos todas as posições políticas possíveis em apenas duas, direita e esquerda, abrindo margem somente para a classificação entre os mais ou menos radicais dentro de cada grupo. </div>
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Muito bem. Digo que a prática é pueril, porque qualquer criança já se deu conta de que, dado qualquer conceito possível, de fato, é possível dividir todos os objetos possíveis entre aqueles que fazem parte da esfera desse conceito e aqueles que ficam fora dela. Por exemplo, você pode dividir o mundo entre fumantes e não-fumantes. E, então, é claro, você pode estabelecer graus de adesão ao fumo, indo desde aquele ente que nunca tocou em um cigarro (uma pedra em Marte ou minha tia-avó, por exemplo) até aquele que fumou compulsivamente por décadas. Com isso, seu pensamento funciona em uma linha reta, onde cabem todos os objetos, separados apenas conforme sua maior proximidade com cada extremo oposto.</div>
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Remontando à origem dos conceitos de direita e esquerda, podemos dividir todas as pessoas entre conservadores e não-conservadores. Mas, agora, eu vou tentar explicar por que tenho a impressão de que esse procedimento não nos ajuda em nada, ao menos em matéria de política.<br />
<br />
Retomando a ideia de um conceito A e sua esfera, quando você divide o mundo entre os objetos A e não-A, a rigor, você não determinou em absoluto os objetos não-A. Em outras palavras, juízos do tipo "x é um não-fumante" são juízos infinitos, porque deixam em aberto infinitas maneiras de "x" ser positivamente qualificado, excluindo apenas o predicado "fumante". </div>
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Ora, eu, por acaso, sou "não-fumante". Ao saber disso, porém, tudo que você sabe que eu tenho em comum com "x", na verdade, é a exclusão de um predicado A. Disso, não se pode concluir imediatamente que "x" e eu pertençamos à esfera de um determinado conceito B. Em suma, o fato de "x" e eu não compartilharmos um dado predicado A (não fazermos parte da esfera de um mesmo conceito A), "fumante", não implica que, por outro lado, positivamente, compartilhemos um predicado B (façamos parte da esfera do conceito B).<br />
<br />
Parece-me, é verdade, que até teríamos que afirmar que teria que existir algum conceito geral o bastante para englobar a mim e a "x", visto que conceitos são organizados por subordinação. Mas o que importa para o meu ponto é que você não sabe qual é esse conceito na esfera do qual estou na companhia de "x", simplesmente ao saber, sim, que "x" e eu estamos igualmente fora da esfera de um outro conceito.</div>
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Você já deve ter entendido onde quero chegar com essa lógica de botequim, não é? Em geral, quem usa as etiquetas "direita" e "esquerda", está aplicando um conceito qualquer com o qual pretende separar todas as posições políticas, tomando juízos infinitos como se eles fossem semanticamente determinantes.<br />
<br />
O sujeito diz, por exemplo: "existem aqueles que são socialistas e existem os não-socialistas". Com isso, ele quer dizer que os não-socialistas pertencem todos a uma mesma categoria positiva, no caso: a direita. E é assim que eu acabo lá, jogada no mesmo saco que o Olavo de Carvalho e o Marco Feliciano, como se o fato de não compartilharmos um certo predicado implicasse no fato de compartilharmos um outro predicado determinado. </div>
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<br /></div>
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Acontece que eu posso usar o mesmo truquezinho lógico. Posso dizer: "existem aqueles que são liberais e existem os não-liberais". Pronto, assim, eu jogo socialistas e fascistas no mesmo saco, como se existisse positivamente o saco "não-liberal", do mesmo jeito que existe o saco "liberal".</div>
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<br /></div>
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Por fim, eu pergunto: o que ganhamos com esses joguinhos de criança? Não seria mais interessante se parássemos de dividir o mundo apenas entre aquilo que somos nós e aquilo que não somos nós, e começássemos a nos empenhar mais pela compreensão positiva do que são esses outros, em suas particularidades, diferenciando-os também entre si? Garanto que, com isso, você não conseguiria dividir o mundo todo em apenas duas categorias, com meras variações internas de grau. Mas por que você quer tanto isso afinal?</div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/05507574057753299136noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7696277628071033130.post-74960025162023328552013-11-14T19:57:00.001-02:002013-11-14T20:01:50.741-02:00Liberalismo clássico e libertarianismo: uma revisão<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://lh6.googleusercontent.com/-etoVQEJDWXQ/UoVHSfevY_I/AAAAAAAAB_4/q9uKGcIb9Lk/s289/2013%25252019%25253A35.jpg" target="_blank" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img src="https://lh6.googleusercontent.com/-etoVQEJDWXQ/UoVHSfevY_I/AAAAAAAAB_4/q9uKGcIb9Lk/s289/2013%25252019%25253A35.jpg" id="blogsy-1384466495046.194" class="aligncenter" width="289" height="175" alt=""></a></div>
<p style="text-align: justify;"> Como eu falei, escrevo para colocar as ideias em ordem para mim. Como sempre, conversar com Aguinaldo me ajuda muito nisso. Estava contando para ele sobre o post aí abaixo, porque eu estava insatisfeita com o fato de eu ter concluído esse post sem oferecer propriamente uma definição de libertarianismo. E o pior é que, de fato, nós dois achamos que, se você pegar o pacote de teses do Nozick e comparar com o pacote do liberalismo clássico, você não encontra diferenças essenciais. Por isso mesmo, eu tinha dito no primeiro post que a diferença estaria no problema, e não nas posições adotadas.</p>
<p style="text-align: justify;">Mas, nesse caso, o que parece mais adequado de se dizer, ao contrário do que eu tinha dito, não é que Nozick é diferente dos liberais clássicos, porque enfrenta um problema que eles não formularam, mas sim que Nozick é um liberal enfrentando a novidade do libertarianismo, mais precisamente a novidade de um estado de natureza construído como uma sociedade anarco-capitalista. </p>
<p style="text-align: justify;">Se o termo neoliberal não fosse o maior de todos os Frankensteins da política, poderíamos até arriscar dizermos que Nozick seria um neoliberal: uma nova formulação do liberalismo para uma nova questão. Mas Deus me livre desse termo! Eu nunca faria isso com o pobre Nozick! </p>
<p style="text-align: justify;">Então, o negócio é que, para organizar as coisas na minha cabecinha (lembrando que você organiza a sua como bem entender), doravante, reservarei o termo "libertário" para designar o anarco-capitalista, ou seja, aquele que acredita na nessecidade da figura do executor do individualismo jusnaturalista, mas que não acredita no monopólio do direito a essa execução. Já o termo "liberal", eu vou aplicar a todo defensor do Estado mínimo, portanto, mesmo àquele que elabora sua teoria em resposta a Rothbard.</p>
<p style="text-align: justify;">Mas, é claro, vocês podem continuar usando os termos da forma confusa como sempre usaram. Eu perguntarei do que vocês estão falando e então guardarei cada teoria diferente em uma gavetinha semântica diferente no meu armário mental. Como já devem ter notado, tenho uma espécie de TOC relativo à arrumação desse armário, talvez, por ele ser pequeno...</p>
<p> </p><div style="text-align: right; font-size: small; clear: both;" id="blogsy_footer"><a href="http://blogsyapp.com" target="_blank"><img src="http://blogsyapp.com/images/blogsy_footer_icon.png" alt="Posted with Blogsy" style="vertical-align: middle; margin-right: 5px;" width="20" height="20" />Posted with Blogsy</a></div>Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/05507574057753299136noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7696277628071033130.post-65194628552720441732013-11-14T15:18:00.001-02:002013-11-14T15:18:22.245-02:00Liberalismo clássico e libertarianismo: por que dois "ismos"?<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj6b0t4-J36m2AkTvpksMnRMdKtg1jwetLbVv6_zKbhhUV0rHzzvmY73-fhxQprodZhPIoUUfFIWTWh6hzRyT3GUhjNxYYqQxNmL94S3H8ObREvUNPuRJfGGC4urpFuJ4qO5oIE56owBdo/s1600/images.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj6b0t4-J36m2AkTvpksMnRMdKtg1jwetLbVv6_zKbhhUV0rHzzvmY73-fhxQprodZhPIoUUfFIWTWh6hzRyT3GUhjNxYYqQxNmL94S3H8ObREvUNPuRJfGGC4urpFuJ4qO5oIE56owBdo/s1600/images.jpg" /></a></div>
<br />
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Amigos, vocês sabem que uso este blog como um espaço para construção e organização das minhas ideias. Pois bem, é bem neste espírito que escrevo este post. Vocês também não têm se sentido perdidos em meio a tantos "ismos" em filosofia política? Aliás, já pararam para pensar por que usamos os "ismos". Naturalmente, esses termos são etiquetas que colamos em conjuntos de ideias para separá-las de outras e uni-las entre si. </div>
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<br /></div>
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Já pensou se, a cada vez que você fosse explicar sua posição política, você tivesse que oferecer uma lista de todas as teses que você defende seguida de uma lista de todas as teses a que você se opõe? É claro que é muito mais prático simplesmente usarmos um termo que já expresse aquela associação de alegações, o que, grosso modo, corresponde ao que chamamos de "teoria". Também é claro que você pode discordar de algo em cada teoria já formulada. Nesse caso, você pode ser bravo o bastante para criar a sua própria teoria, reunindo elementos de umas com elementos de outras. Seu cuidado então, primeiramente, deve ser o de evitar associar ideias incompatíveis entre si. De todo modo, criada sua teoria, você a batizará e, depois de explicar pela primeira vez o significado daquele título que você deu à sua teoria, você passará a empregá-lo nos debates em que sua teoria estiver em questão, para evitar o trabalho de ter que repetir todos os pontos da sua teoria em cada sentença em que você for se referir a ela.</div>
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<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Bom, o que acontece na sequência, nós todos sabemos. Como todos repetiremos o título da teoria sem fazê-lo ser acompanhado de todo o conjunto articulado de teses que ele expressa, o que, afinal, o tornaria inútil, as pessoas começarão a usar o termo para designar conjuntos cada vez mais diferentes de teses. Isso pode acontecer por várias razões. Pode ser porque a pessoa que usa o termo nem sequer conhece as teses originais que ele designava, mas também pode ser por má-fé, porque o termo se tornou popular e a pessoa quer se apoderar dele para emprestar popularidade à sua própria teoria. </div>
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<br /></div>
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Seja lá como for, o fato é que, no final, usamos os mesmos termos para falarmos de teorias diferentes. Ou seja, os termos se tornam inúteis e até mesmo prejudiciais ao debate. Há debates - muitos, inclusive - que nunca chegam à conclusão alguma, exatamente porque um dos interlocutores associa um sentido enquanto o outro associa outro sentido a um mesmo "ismo". E eles nem percebem que o motivo de estarem discordando é estarem falando de coisas distintas sem saber!</div>
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<br /></div>
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Mas basta sobre a importância da precisão terminológica e meu desespero pela falta dela. Eu tenho pensado em especial em uma maneira de distinguir o liberalismo clássico do libertarianismo. Infelizmente, não adianta tentar fazer um balanço entre os autores que se auto-declaram membros de uma ou outra corrente, exatamente porque os dois termos já estão sendo usados para designar de tudo um pouco. Em especial, o termo "libertarianismo" já está praticamente perdido, porque foi tomado pelos liberais clássicos americanos que queriam se diferenciar dos esquerdistas, quando estes últimos passaram a se auto-intitular "liberais", bem como também pelos esquerdistas que querem se distinguir dos democratas (os tais left-libs).</div>
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<br /></div>
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Em meio a esse caos terminológico, eu pensei então que poderia ser produtivo examinar a questão da diferença entre o liberalismo clássico e o libertarianismo de modo mais filosófico do que histórico. Mas veja que, se simplesmente fizermos um balanço de posições finais, também podemos equiparar teorias diferentes. Por exemplo, Nozick se diz libertário, mas defende o Estado mínimo do liberalismo clássico. Sendo assim, por essa via, eu poderia dizer tanto que Locke teria sido um libertário quanto que Nozick teria sido um liberal clássico. Eu poderia dizer, enfim, que os dois termos são intermutáveis e, portanto, que não precisamos de dois termos! Ora, mas eu leio Locke e leio Nozick, e vejo que são diferentes! Portanto, tem algo mais aqui que não estamos captando. Algo estrutural que explica por que devemos usar um termo para um e outro para outro. Eu tenho um palpite do que seja.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Antes de introduzir meu palpite sobre o modo como devemos traçar a distinção entre liberais clássicos e libertários, permitam que eu proceda primeiro a uma divisão mais ampla entre individualismo e coletivismo. Primeiramente, eu digo então que liberais clássicos podem ser também coletivistas. Calma! É que eu estou classificando os utilitaristas como coletivistas. Classifico assim, porque o utilitarista, de uma forma ou de outra, pensa em uma espécie de entidade social a ser beneficiada ou prejudicada pelas normas a serem praticadas. Com isso, um utilitarista pode ser pró-livre mercado, pró-propriedade privada, etc... mas ele o será tendo em vista benefícios para uma coletividade, e não o indivíduo como um fim em si mesmo. É nesse sentido que eu jamais classificaria um utilitarista como um libertário. O meu pensamento fica mais organizado se eu reservo o termo "libertário" para aplicá-lo a individualistas, isto é, teóricos que consideram os direitos individuais como absolutos, e não como meios para favorecer alguma entidade social.</div>
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<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Agora, o meu próximo problema para chegar a uma definição apropriada de libertarianismo diz respeito a como distinguir os individualistas que são liberais clássicos dos individualistas que são libertários. Veja que estou aqui buscando uma diferença específica dentro do gênero comum do individualismo jusnaturalista. Calma de novo! Jusnaturalismo, eu entendo aqui em sentido amplo, englobando também uma teoria moral pautada em princípios racionais, como a de Kant. Como eu farei essa distinção de espécie dentro do gênero?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
É aqui que eu apelo à diferença no modo de colocar o problema da filosofia política. Para a tradição jusnaturalista em geral, o direito natural precisa de um executor, do contrário, não seria direito. Agora, pense o seguinte: quem, antes de Rothbard, levou a sério a possibilidade do direito ser executado por outro agente que não o Estado? Você vai dizer: "ora, em Locke, no estado de natureza, todos são executores do direito". E você tem razão. Mas note que é por isso mesmo que, em umas míseras cinco linhas, Locke nos tira do estado de natureza. Ele não considera viável que o direito seja executado no estado de natureza. </div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Perceba que o problema, para Locke, é a parcialidade do executor sem o Estado. O fato é que, segundo Locke, no estado de natureza, em última instância, o juiz é Deus. Em caso de divergência irreconciliável entre duas partes, não há uma terceira instância a se apelar. As partes partem para a guerra e Deus decide o vitorioso. Aliás, quando Locke diz: "Deus será o juiz"; parece-me que ele sempre quer dizer: "decide-se pela guerra". Mesmo em Kant, o que me dá o direito de obrigar alguém a sair do estado de natureza é justamente essa ausência de um terceiro para ser o executor do direito sem unilateralidade. Pois bem, é isso que muda com Rothbard. Por isso, temos inaugurada uma nova tradição, que merece um novo nome: libertarianismo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Para explicar isso um pouco melhor, permitam que eu comente brevemente, agora, a diferença entre o anarquismo libertário de Rothbard - o anarco-capitalismo - e o anarquismo em geral. Via de regra, quando falamos em anarquismo, a primeira reação de qualquer pessoa é de pensar que estamos falando em uma sociedade sem execução do direito. Por isso, a reação é de descrença, quer dizer, a reação mais comum é a pessoa dizer que a natureza humana não condiz com esse tipo de sociedade. Ora, é claro, a pessoa quer dizer que a natureza humana é propensa ao conflito, que esse conflito precisará ser resolvido, ou seja, que o direito precisará ser executado (imposto!) e que o Estado é a única instância capaz de fazer isso sem unilateralidade. Bem, o libertário, nesse momento, concordará com todas essas alegações, exceto pela última. </div>
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<br /></div>
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Para o anarco-capitalista, haverá conflitos insolúveis por acordo e o direito precisará ser executado no estado de natureza. Porém, será preciso que cada indivíduo dê seu próprio consentimento para que um tribunal tenha autoridade especial sobre ele, o que significa que o tribunal precisará ser contratado. Sem esse consentimento explícito por parte de um indivíduo, um tribunal tem sobre ele apenas o mesmo poder que qualquer outro indivíduo possui: o de punir agressões. </div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Agora, note algo interessante. Locke, mesmo após listar as inconveniências do estado de natureza, fala sobre essa mesma necessidade de consentimento próprio para que o indivíduo deixe o estado de natureza. Ele é textual quanto a isso e, no § 95 do Segundo Tratado, citado por Nozick, chega a dizer que os indivíduos que não dão seu consentimento próprio são deixados no estado de natureza. Pois é, já tinha reparado nisso? Para Locke, alguns entram no Estado, outros, não. Qual a novidade então do libertarianismo? A novidade de Rothbard foi perceber que, se é assim, não existe Estado, amigos! Esse executor do direito de Locke, que acaba com as inconveniências do estado de natureza, na linguagem de Rothbard, não é Estado!</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
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Aparentemente, nunca ocorreu a Locke que o contrato daqueles indivíduos pelo qual outros são deixados no estado de natureza não teria o poder de fundar um Estado. Porém, foi bem para isso que a tradição libertária atentou! Como Nozick diria, nesse ponto onde Locke nos deixou, achando que já tinha fundado o Estado, não temos Estado ainda, justamente porque não temos monopólio da execução do direito. O problema do Estado, colocado em termos novos pelo libertarianismo e nunca percebido pelo liberalismo clássico, é o problema de dizermos àqueles independentes que eles não podem executar o direito. Na verdade, o liberalismo de Locke nem tinha como colocar o problema nesses termos, porque é depois de Weber que definimos o Estado como o monopólio da execução do direito.</div>
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<br /></div>
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Para resumir - e tentar ser clara - no liberalismo clássico, o problema era: Precisamos de um executor do direito. Quem é o executor do direito? O Estado! E quem não consentir com o Estado? Ah, ficou lá esquecido no estado de natureza, como se não houvesse problema algum nisso (Locke), ou foi forçado a aderir ao contrato como se fosse um agressor só por não aderir (Kant). No libertarianismo, por outro lado, o problema é: como pode ser moral impedir aquele que não deu seu consentimento a nenhum tribunal de executar o direito por conta própria? Se essa questão não for respondida, não justificamos moralmente o Estado, porque existirão diversos executores do direito, igualmente legítimos, dentro de um mesmo território. </div>
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<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Note ainda que você não pode simplesmente considerar óbvio que as pessoas deixadas no estado de natureza possam ser impedidas de executar o direito, como parece ser o caso em Kant. Como pode ser moral que você puna alguém por fazer exatamente aquilo que o Estado faria? É isso que está em jogo! Para que haja Estado, ou seja, monopólio da execução do direito, o Estado deve punir qualquer um que execute o direito em seu território. Isso significa que o Estado deve punir aquele indivíduo A que aplicou a um indivíduo B, realmente culpado, a mesma punição x que ele próprio (Estado) aplicaria no mesmo caso. Essa é a implicação da definição de Estado da tradição weberiana. Mais do que isso, essa parece ser a definição correta de Estado, tendo em vista o que realmente faz aquilo que chamamos de Estado. Afinal, o que chamamos de Estado na vida prática não permite que você faça justiça com as próprias mãos, mesmo se o que você fizer corresponder ao que ele próprio faria diante das mesmas circunstâncias. </div>
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<br /></div>
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Para a tradição jusnaturalista específica que se inicia com Rothbard, por conseguinte, a moralidade do Estado está em questão, porque é necessário explicar por que é legítimo punir um indivíduo só por executar a justiça. Nozick pertence a essa tradição, e não à tradição do liberalismo clássico, porque ele assume o ônus de provar que o indivíduo punido por punir sem excesso seu agressor não foi ele próprio agredido. A minha intenção com este post é sugerir que estamos diante de um novo paradigma, mais do que meramente de uma nova teoria, porque o problema a ser resolvido mudou. O Estado que Locke justifica, como eu disse, para um libertário, nem sequer é Estado... Então, meus amigos, usemos "ismos" diferentes, porque, semelhanças à parte, estamos falando de coisas bem diferentes.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
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<br /></div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/05507574057753299136noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7696277628071033130.post-3723462142995186032013-11-11T17:35:00.001-02:002013-11-11T17:35:29.826-02:00Subjetivismo Kantiano x Objetivismo<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj4ZQJ3qsMX5nCkkeAlpMvzXxto0AgcG0jNmovo7bpQro2cqJRSwC1siQNt3VdlEbQ28FHqjNIS2WJ80-BKIqN3wq8lN3PeDkWPkjjkAexDIc-WZALtH1V9ew0TU9UEq8Pu4Oru7mSKeHc/s1600/BLADE+RUNNER+OJO.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="212" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj4ZQJ3qsMX5nCkkeAlpMvzXxto0AgcG0jNmovo7bpQro2cqJRSwC1siQNt3VdlEbQ28FHqjNIS2WJ80-BKIqN3wq8lN3PeDkWPkjjkAexDIc-WZALtH1V9ew0TU9UEq8Pu4Oru7mSKeHc/s320/BLADE+RUNNER+OJO.jpg" width="320" /></a></div>
<br />
<div style="text-align: justify;">
Eu posso estar enganada, mas tenho a impressão que os objetivistas têm em Kant um adversário pelas razões erradas. Parece-me que eles se opõem a Kant em função do idealismo transcendental, doutrina segundo a qual não conhecemos o que a realidade seria independentemente de certas condições epistêmicas. Já os contemporâneos de Kant, para sua fúria, confundiam o seu idealismo formal com o idealismo material de Descartes e Berkeley, portanto, não é de se admirar que os objetivistas cometam o mesmo equívoco.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Eu não pretendo, porém, desfazer o equívoco, explicando as sutilezas do idealismo transcendental em um blog. Já tenho poucos leitores, ficaria sem nenhum. Como não é esse o ponto da divergência entre kantianos e objetivistas, já que, empiricamente, Kant é um realista, eu vou me deter no que vejo, sim, de subjetivismo em Kant. E, por sinal, vejo como a maior virtude de sua filosofia moral.</div>
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Para ser mais precisa, a filosofia kantiana compatibiliza subjetivismo e objetivismo: subjetivismo quanto à matéria do querer, objetivismo quanto à forma do querer. O que significa isso? Bom, para explicar, permitam que eu trace um paralelo entre Kant e Ayn Rand. </div>
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Parece-me claro que Kant concordaria com Rand que o conceito de "valor" depende do conceito de "fim" [<i>goal</i>, em inglês]. Essa tese, além do mais, deve mesmo ser aceita por todos nós pelas seguintes razões. Se partirmos apenas de relações de causa e efeito objetivamente descobertas na realidade, algo de suma importância tanto para Kant quanto para Rand, não temos ainda o bastante para derivamos os conceitos de "bom" e "mau". Ao dizermos que "x" causa "y", digamos, que uma aspirina causa o alívio da dor de cabeça, só podemos dizer que a aspirina é boa se o fim for o alívio da dor de cabeça, e não pela simples constatação da relação causal.</div>
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Muito bem, o próximo passo comum aos dois filósofos também me parece digno de nossa aceitação. Se nossos fins determinam nossos valores, a cadeia de meios e fins precisa parar em algum fim em si mesmo, para evitar uma progressão ao infinito, que tornaria impossível para o agente racional justificar suas escolhas a contento. É aqui que os dois filósofos tomam caminhos diferentes, o de Rand levando, ao que me parece à primeira vista, a um precipício filosófico. </div>
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Fazendo pouco caso da acusação de falácia naturalista - a derivação de uma conclusão normativa a partir de premissas meramente descritivas - Rand equipara o fim em si mesmo à sobrevivência do organismo do indivíduo:</div>
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<blockquote class="tr_bq">
O fato que entidades viventes existem e funcionam necessita a existência de valores e de um valor último que, para qualquer entidade vivente dada, é a sua própria vida. Assim, a validação de juízos de valor deve ser obtida por referência aos fatos da realidade. O fato que uma entidade vivente é determina o que ela deve fazer. Basta para a questão [so much for the issue] da relação entre o "ser" e o "dever ser".</blockquote>
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Ora, mas é claro que não basta! Rand tem a pretensão de nos ensinar o que é ética - para ela, a ciência desses valores derivados do valor último de nossa vida - como se estivéssemos errando há milênios em nossos juízos de valor, o que significa que não é nem um pouco óbvio que a preservação da vida oriente nosso sistema de valores. O simples fato de, segundo Rand, termos a possibilidade de nos auto-destruir já significa que não é óbvio que nosso fim deva ser a auto-preservação. Ela não pode simplesmente derivar um fim último para minha vontade de uma tendência fisiológica de meu organismo. É nisso que consiste a falácia que ela não tem o direito de desprezar ao mesmo tempo em que se pretende uma grande advogada da razão nos conflitos filosóficos. </div>
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Só para ilustrar o meu caso, pense em quem oferece a vida em sacrifício para não ter que presenciar o sofrimento de um ente querido, ou em quem opta por uma vida breve de prazeres intensos a uma vida longa de prazeres mornos. Dizer que um e outro não vivem a vida apropriadamente não justifica o princípio do objetivismo, mas apenas o pressupõe.</div>
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Bom, basta, por enquanto, sobre a solução de Rand. Conforme minhas leituras progridam, talvez, eu retome o ponto. Falemos agora da solução de Kant para o problema do fim último de nossa cadeia de objetivos. </div>
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Em primeiro lugar, materialmente falando, nosso fim, para Kant, é a felicidade, não a vida. Nisso, consiste o subjetivismo de Kant, já que a felicidade não permite determinação objetiva. Ela seria apenas um sistema das inclinações de cada indivíduo. Por isso mesmo, da felicidade, Kant deriva apenas regras de prudência, variáveis conforme o indivíduo e o contexto, e não um código de ética. Ademais, da busca da felicidade universalmente constatada não decorre um código de ética, exatamente para evitar a falácia naturalista. </div>
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Agora, a felicidade, como todo kantiano sabe, não forma o todo do fim último para Kant. A felicidade, segundo Kant, deve ser buscada sob a condição da conquista do mérito para ser feliz, isto é, da virtude moral. Mas no que consiste a virtude? Aqui, estamos diante do objetivismo formal de Kant. </div>
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Uso aqui o termo "formal" para expressar uma condição limitadora, um princípio do qual não se pode derivar metas concretas, mas apenas discriminar entre as metas aceitáveis e as inaceitáveis. Somos virtuosos, em suma, quando abrimos mão de determinados cursos de ação que nos trariam a felicidade pessoal, só porque eles não se mostram adequados à exigência formal de que sejam universalizáveis, ou seja, válidos para todos os agentes racionais. A virtude consiste então na disposição de subordinar a felicidade pessoal às exigências formais de universalização da racionalidade. E, note bem, estamos evitando a falácia naturalista, justamente porque estamos falando de exigências normativas intrínsecas à racionalidade, e não derivadas da natureza. A exigência de universalização, no caso, é intrínseca à razão, porque, ao justificarmos qualquer uma de nossas condutas, queremos dizer que qualquer outro, em nosso lugar, poderia ter feito o mesmo. Em outras palavras, é próprio da racionalidade pretender ir além das idiossincrasias de cada um.</div>
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É assim que Kant evita o objetivismo de Rand, que nos diz o que devemos querer como fim último e deriva todos os meios desse fim, mas evita também o irracionalismo, já que não podemos praticar toda e qualquer ação que nos prometa uma vida mais feliz. Podemos adotar toda norma de conduta que nos traga a felicidade, mas com a condição de que essa norma também possa ser válida para os outros agentes racionais. Uma vida desonesta, por exemplo, seria eliminada pelo princípio, porque a desonestidade, para ser eficiente enquanto meio de obtenção da felicidade, depende de que os outros pensem que eu sou honesta, ou seja, a eficiência da desonestidade depende de que a regra geral seja a honestidade, e não a própria desonestidade. Assim, eu seria irracional ao ser desonesta, na medida em que eu agiria sob um princípio que só pode ser subjetivamente válido. </div>
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Agora, o fato de eu ter que abandonar regras de conduta que só podem ser praticadas como exceção, não significa que eu tenha que adotar todas as regras de conduta que passem pelo crivo da universalização. O oposto das regras que só valem como exceção é obrigatório (ser honesto, por exemplo). Mas existe uma ampla gama de regras que são tão universalizáveis quanto seus opostos. Como escolher entre elas? Simplesmente, opte pela regra que o torna mais feliz! É aqui que Kant garante o espaço para a subjetividade, na medida em que abre mão de um conceito objetivo de felicidade. É aqui, em suma, que, ao contrário de Rand, Kant harmoniza subjetividade e racionalidade.</div>
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