domingo, 7 de dezembro de 2014

Blogando em um novo endereço

Prezados leitores, resolvi transferir o blog The Misfit para a plataforma Wordpress. Já transferi todo o conteúdo deste blog para o endereço https://andreafaggion.wordpress.com Não encontrarão mais posts novos aqui.
Aguardo vocês lá!
Um abraço,
Andrea

sábado, 22 de novembro de 2014

Mais Kant, menos Mill


No último post, eu comentei o que considero ser a grande contribuição de Mill ao liberalismo clássico/libertarianismo: sua crítica à democracia, ou às tentativas de compensar perdas no que Berlin viria a chamar de "liberdade negativa", o espaço de não-interferência na vida dos indivíduos, por ganhos no que Berlin chamaria de "liberdade positiva", auto-governo. Mill tem razão. Quando o poder deixou de ser exercido explicitamente por oligarquias e passou, em tese, para as mãos do povo, criou-se a falsa impressão de que as reivindicações liberais por um espaço de não-interferência na liberdade individual não fariam mais sentido, estariam historicamente superadas. Ledo engano. Por mais autêntica que seja a democracia, a liberdade positiva ou auto-governo não substitui a liberdade negativa ou não-interferência, pelo simples fato de que não se trata aqui do governo do indivíduo sobre si mesmo. Trata-se apenas e tão somente do direito do indivíduo a um voto na multidão, sem que o indivíduo sequer precise dar seu consentimento explícito para que uma dada matéria torne-se ponto de pauta para uma assembleia. Em suma, basta que lhe dêem o direito a um voto e decidem até se você pode fumar ou beber, por exemplo.

Kant, ao contrário de Mill, não parece ter estado suficientemente atento para a necessidade de que a tal "vontade geral" ou "vontade unida do povo" seja devidamente limitada. Ele defendia o direito de que o sujeito fosse senhor de si, é verdade. Mas, conforme a letra do texto, ele também pensava que essa autonomia jurídica deveria ser exercida como soberania popular, pois ele permite que a lei para o indivíduo seja dada por ele mesmo na companhia dos outros. No fim das contas, isso significa que uma instituição - seja ela representada por uma assembleia ou por um indivíduo - tem o direito de agir contra o consentimento explícito de um indivíduo, alegando representar a vontade geral, que, teoricamente, inclui a vontade desse indivíduo, ao menos enquanto vontade racionalmente considerada.

Claro que Kant não pensava no voto de uma maioria esmagando o indivíduo. Ele nem sequer acreditava que a vontade geral coincidisse com a vontade de todos empiricamente unificada em um plebiscito. No entanto, o soberano legisla em nome dessa vontade geral - uma ideia racional do que todos deveriam querer - e eu não vejo em Kant uma defesa forte o bastante dos limites dessa legislação, por mais que ele tenha criticado tanto o paternalismo do Estado, que tenta fazer o súdito feliz, quanto a pretensão do Estado que tenta transformar o indivíduo em um ser virtuoso. Por exemplo, Kant não disse claramente que o princípio universal do direito ou o direito inato à liberdade deveria limitar e determinar o princípio do contrato, embora eu ache que essa seja a melhor interpretação de sua posição.

O princípio do contrato, grosso modo, diz que o soberano só pode impôr ao indivíduo o que cada um poderia impôr a si mesmo. É isso que significa ser senhor de si mesmo na companhia de outros. O problema dos liberais com isso é que o soberano pode interpretar como ele bem entender o que seria razoável para o indivíduo aceitar. Não há a necessidade do consentimento explícito de cada um. Como explica Berlin, o soberano respeita uma ideia de vontade racional do indivíduo, não a vontade de fato do indivíduo. Atento a isso, Mill diz claramente que precisamos de um princípio para sabermos onde vamos traçar o limite do que o soberano pode decidir forçar o indivíduo a fazer contra sua vontade empiricamente considerada. Agora, embora Kant não tenha dito o mesmo com todas as letras, eu defendo que o princípio que Kant tinha à sua disposição para limitar o direito de coerção externa era muito melhor do que o de Mill. Vejamos.

Segundo Mill, o princípio que separa as interferências governamentais legítimas das ilegítimas é o "princípio do dano". Mill defende que a auto-proteção é o único princípio que legitima interferências na liberdade de ação de qualquer número de membros de uma sociedade. Ele entende por isso que o poder só pode ser exercido, em conformidade com o direito e contra a vontade de qualquer membro da comunidade, se o objetivo é evitar danos a terceiros.

Ora, à primeira vista, isso parece uma perfeita formulação do princípio da não-agressão dos libertários, o famoso PNA. Pois eu alego que, bem pelo contrário, esse é um princípio coletivista que deixa entrar pela porta dos fundos toda a ameaça de tirania que Mill tentou expulsar pela porta da frente.

O ponto central é: Como defino um dano? Dano a quê? Um dano pode ser um mero efeito indesejado em minha vida. Um dano pode ser consentido. Por exemplo, você resolve usar drogas. Em um primeiro momento, eu não posso proibi-lo de fazê-lo de acordo com o princípio do dano, afinal, Mill diz claramente que não se trata de impôr a alguém o que, supostamente, seria melhor para ele mesmo. Só que a família de um usuário de drogas pode ser prejudicada por suas ações. Eles podem ter que acordar no meio da madrugada para socorrem o usuário em uma emergência. Eles podem ter que cobrir os custos materiais da droga na vida desse indivíduo. Eles podem simplesmente sofrer emocionalmente ao assistirem a decadência de um ente querido. Isso tudo não conta como dano?

Mas a questão é o sentido do "ter que" acima. Você não é forçado a socorrer seu ente querido financeiramente. Você pode escolher pagar o preço de vê-lo sofrendo. Em suma, você o socorre, porque quer, a menos que ele tenha chegado ao ponto de apontar uma arma para sua cabeça. Enquanto não chegarmos a esse ponto, existe dano, mas não existe dano à liberdade. Em outras palavras, o princípio do dano abre as portas para restrições de sua liberdade em ações em que você não restringiu a liberdade de ninguém.

A coisa fica ainda pior. Eu disse acima que você pode escolher omitir socorro. Portanto, nesse caso, se você sofre um dano causado pelo seu ente querido, esse dano é consentido por você. Mas não é bem assim no cenário do princípio do dano, porque Mill ainda admite explicitamente que o princípio legitima também a coerção à performance de atos individuais de beneficência. Em outras palavras, amigos libertários, Mill, de bom grado e conscientemente, abre as portas para deveres positivos.

There are also many positive acts for the benefit of others, which he may rightfully be compelled to perform...
Para Mill, não apenas nossas ações, mas também nossas omissões podem causar danos a terceiros, de forma que você deve prestar contas pela injúria da omissão. Ora, nada mais anti-libertário do que isso! A boa lição de Nozick é que, do fato de podermos impedir um dano, mas não o fazermos, não decorre que tenhamos sido a causa do dano. Nozick aponta que só seríamos a causa do dano por omissão, justamente se fosse pressuposto que tínhamos a responsabilidade ou o dever de agir quando nos omitimos. É verdade que Mill diz que os casos em que somos responsabilizados por omissões são de exceção, mas fica aberto mais um flanco para ataques contra a liberdade.

Por fim, eu quero expor também meu descontentamento com o fundamento utilitarista do princípio do dano. Já disse aqui e repito: utilitarismo é coletivismo; se advogada pela causa da liberdade individual, é só como meio. Isso fica claro no texto de Mill quando ele nos diz que o princípio último de todas as questões de ética é a utilidade em sentido amplo, definida como: os interesses permanentes do homem como um ser que progride. Quer dizer, no fim, não importa a sua vontade de fato, os seus interesses particulares, mas, assim como para os democratas, está em jogo um conjunto de interesses abstratamente considerados, a serem definidos pelos legisladores e opostos aos cidadãos reais, empiricamente tomados. Se se deixa espaço para a manobra dos indivíduos reais, é apenas porque se acredita que essa margem de não-interferência serve a esse homem abstrato a ser sempre aperfeiçoado.

Bom, e Kant? Kant pode até ter se degenerado depois, no desenrolar de sua filosofia política, mas, como bem aponta Berlin, ele começa como um genuíno individualista. A humanidade na sua pessoa é digna de respeito absoluto. Isso implica que você pode ser restrito na busca dos seus fins, mas jamais pode ser usado como um meio para quaisquer fins, como, por exemplo, o progresso da humanidade em seus "interesses permanentes".

O que está em jogo é justamente qual o princípio que orienta essa restrição da liberdade do indivíduo na busca de seus fins privados. É nesse momento que Kant formula o PNA melhor que qualquer libertário de carteirinha. A liberdade só pode ser restrita em nome dela própria: é permitida apenas a coerção da coerção. Se minha liberdade pode coexistir com a sua e, mesmo assim, você me restringe, aí sim, você me causa dano: dano à liberdade! Para Kant, não cabe ao direito interferir se um dano foi causado apenas graças ao consentimento daquele que o sofreu.

Por isso que, diga-se de passagem, em Kant, não cabe o conceito de "coerção moral" cunhado por Mill. De acordo com Mill, interferências na liberdade também podem ser morais, e não apenas físicas, no sentido em que alguém pode sofrer como sanção uma reprovação. Ora, isso não cabe em Kant. É verdade que posso ser moralmente punida pela reprovação do juízo alheio. Mas o seu mero juízo não restringe meu arbítrio. Eu posso continuar fazendo as mesmas coisas que você reprova, enquanto você meramente expressa sua reprovação. Assim, pode ser anti-ético que você me censure sem boas razões, mas não é uma violação de direitos meus, porque eu não tenho um direito à sua aprovação. Esse é mais um benefício do modo preciso como Kant distingue ética e direito, coisa que Mill não fez.

Voltando ao exemplo do usuário de drogas, eu posso sofrer se escolho não ajudar meu ente querido em sua decadência. Mas nem todo sofrimento é uma violação de um direito meu, ou seja, uma restrição de minha liberdade. Eu não tenho o direito de não ser emocionalmente magoada ou de não ser contrariada. Uma ameaça qualquer de sofrimento, por si só, não restringe minha liberdade.

Por exemplo, uma coisa é dizermos: "se você bater em João, não falo mais com você". Aqui, o indivíduo fica perante uma simples escolha: ou bate no João, ou continua falando comigo, sendo que ele não pode reivindicar um direito a uma coisa ou a outra. Ele não tem direito à minha ação de conversar com ele. Eu não tenho a obrigação de falar com ele, ou eu seria uma escrava dele, em vez de um ser livre. Da mesma forma, ele não tem o direito de usar o corpo de João como saco de pancadas, ou João seria um escravo dele, em vez de um ser livre. Assim, a liberdade do sujeito fica preservada na encruzilhada em que eu o coloco. Ele escolhe. Não poder ter as duas coisas não é sinal de falta de liberdade.

Agora, se eu digo: "se você bater no João, eu mato você, ou prendo você, ou tomo sua propriedade", a coisa muda de figura. Você tem o direito de não ser morto, não ter seu corpo aprisionado e não ter sua propriedade levada, porque a sua liberdade é restringida em qualquer um desses casos. Adotar esse tipo de ação contra você claramente restringe sua liberdade. Por que eu teria o direito de restringir sua liberdade? Na verdade, eu não tenho. Só passo a ter se você bater em João, ou seja, restringir a liberdade dele primeiro. A minha ameaça só é legítima, porque ela visa obstruir uma escolha ilegítima.

Tudo mudaria se eu dissesse: "se você não falar mais comigo, eu mato você". Aqui, ao não falar com você, eu não restrinjo sua liberdade. Eu apenas deixo de prover você com o que você considera um bem: minha companhia. Ao me matar, porém, você restringe minha liberdade terminantemente.

Já fica implícito aqui que o princípio de Kant ainda tem a vantagem de excluir explicitamente as ações de benevolência do âmbito do direito, reservando-as para a ética, ao afirmar que o direito não trata da relação do meu arbítrio com seus fins (necessidades ou desejos), mas sim de uma relação externa e formal entre nossos arbítrios, em que se analisa apenas se um arbítrio impediu o outro.

Enfim, por essas e outras, acredito que libertários devamos "perdoar" a filosofia política de Kant e abraçarmos como PNA o princípio universal do direito que diz que a minha ação é conforme ao direito (portanto, não pode ser impedida), quando pode coexistir com a liberdade de todos os outros conforme uma lei universal. Se você acredita que o papel do direito é ser um garantidor da liberdade individual, pronto, o princípio é esse. Se o próprio Kant foi sempre fiel a ele, é outra história. Podemos nos apropriar do que nos interessa em um autor, deixando o resto lá.



sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Religião cívica e filosofia política no Brasil


Momentaneamente, tenho deixado Nozick de lado para me concentrar em seus predecessores do liberalismo clássico. Tem sido um prazer descobrir autores como Benjamin Constant e John Stuart Mill, que, até então, eu só conhecia por rápidas referências em fontes secundárias. Mas também é com muita tristeza que constato que uma tradição tão rica, com raras exceções, parece esquecida no Brasil. Via de regra, quando se fala em liberalismo clássico no Brasil, pensa-se em Locke, talvez o único liberal que figure com frequência no currículo dos cursos de filosofia no país. Sem contar que o interesse por Locke parece se dar muito mais em virtude do seu contratualismo do que em virtude de seu liberalismo. Ainda por cima, veja bem, estamos falando de um filósofo do séc. XVII. Minha impressão pessoal é que o liberalismo do séc. XIX, por exemplo, seria indiferente para as reflexões políticas feitas na academia brasileira.

A meu ver, o que se quer esquecer de autores tais como Benjamin Constant, John Stuart Mill ou, mais recentemente, Isaiah Berlin é que a democracia, no seu melhor, pode perfeitamente ser tirânica, sem deixar minimamente de ser democracia. Por exemplo:

The liberals of the first half of the nineteenth century [...] pointed out that the sovereignty of the people could easily destroy that of indi­viduals. Mill explained, patiently and unanswerably, that govern­ ment by the people was not, in his sense, necessarily freedom at all. For those who govern are not necessarily the same 'people' as those who are governed, and democratic self-government is not the government 'of each by himself', but, at best, 'of each by all the rest'. Mill and his disciples spoke of 'the tyranny of the majority' and of the tyranny of 'the prevailing opinion and feeling', and saw no great difference between that and any other kind of tyranny which encroaches upon men's activities beyond the sacred frontiers of private life. (Berlin, "Two Concepts of Liberty")

No mesmo texto e ainda mais enfaticamente:

Democracy may disarm a given oligarchy, a given privileged individual or set of individuals, but it can still crush individuals as mercilessly as any previous ruler. An equal right to oppress - or interfere - is not equivalent to liberty.

Se formos diretamente ao texto de Mill, On Liberty, encontramos, por exemplo, que:

A time, however, came, in the progress of human affairs, when men ceased to think it a necessity of nature that their governors should be an independent power, opposed in interest to themselves. It appeared to them much better that the various magistrates of the State should be their tenants or delegates, revocable at their pleasure. In that way alone, it seemed, could they have complete security that the powers of government would never be abused to their disadvantage.
[...]
As the struggle proceeded for making the ruling power emanate from the periodical choice of the ruled, some persons began to think that too much importance had been attached to the limitation of the power itself. That (it might seem) was a resource against rulers whose interests were habitually opposed to those of the people. What was now wanted was, that the rulers should be identified with the people [...]. The nation did not need to be protected against its own will. There was no fear of its tyrannising over itself.
[...]
The notion, that the people have no need to limit their power over themselves, might seem axiomatic, when popular government was a thing only dreamed about, or read of as having existed at some distant period of the past. [...] It was now perceived that such phrases as ‘self-government’, and ‘the power of the people over themselves’, do not express the true state of the case. The ‘people’ who exercise the power are not always the same people with those over whom it is exercised; and the ‘self-government’ spoken of is not the government of each by himself, but of each by all the rest. The will of the people, moreover, practically means the will of the most numerous or the most active part of the people; the majority, or those who succeed in making themselves accepted as the majority; the people, consequently, may desire to oppress a part of their number; and precautions are as much needed against this as against any other abuse of power. The limitation, therefore, of the power of government over individuals loses none of its importance when the holders of power are regularly accountable to the community, that is, to the strongest party therein. 
É muito importante atentar para o fato que o que esses autores têm em mente como "tirania da maioria" não se aplica apenas a democracias diretas - Mill claramente trata de uma democracia representativa - ou ao exercício arbitrário do poder de uma massa, que não se constitui em lei. O liberalismo de que tratamos aqui aconselha a restrição do poder da lei legitimamente promulgada em democracias representativas como a nossa. Berlin fala da necessidade de regras que delimitem fronteiras que a lei democrática não possa cruzar, sejam essas regras oriundas do direito natural ou do utilitarismo ou do que mais seja, pouco importa. O ponto é que, quando se acredita em liberdade como algum direito de não-interferência pertencente a cada indivíduo, o legislador do Estado Democrático de Direito e o bandido com o canivete na esquina estariam igualmente obrigados a recuar perante tal direito. Agora, se não acreditamos na existência desse espaço, por mínimo que seja, sobre o qual o Estado está proibido de avançar legitimamente, a lição liberal é que o indivíduo é convertido em escravo da maioria, e não será menos escravo ainda que se auto-declare como livre. No texto de Berlin já citado, lemos que: 
The triumph of despotism is to force the slaves to declare themselves free. It may need no force; the slaves may proclaim their freedom quite sincerely: but they are none the less slaves.
Naturalmente, eles são escravos se temos em vista o conceito liberal de liberdade: o direito (em alguma medida) à não-interferência. Estamos dispostos a abrir mão desse conceito? Estamos dispostos a entregar cada espaço de nossas vidas à legislação democrática? Diante de questões como a união civil homossexual, por exemplo, não seria o caso de simplesmente dizermos ao Estado Democrático de Direito: "Família, não! Não é sua esfera defini-la ou legislar sobre ela!"? 

O custo de convertermos a liberdade no direito a um voto - sobretudo, como observa Benjamin Constant, nos Estados Modernos, onde um voto não decide nada - parece alto demais, pois parece o completo abandono de qualquer autonomia individual a favor da assim chamada "soberania popular". Como nos advertia Mill na passagem acima, se o poder é do povo, pode parecer que não faz sentido limitá-lo, pois como poderia o povo escravizar a si mesmo? Ah, mas esquecem do indivíduo... Esquecem que o poder do povo sobre si mesmo está longe de corresponder ao poder do indivíduo sobre si mesmo, por mais que a filosofia política contratualista se esforce para promover tal assimilação.

O fato é que, sendo ou não bem sucedido em seu argumento, o acadêmico brasileiro, no mais das vezes, parece ter esquecido do debate. Portando-se muito mais como o ministro de uma religião cívica do que como filósofo, ele assimila "democracia" ao "regime da liberdade", sem mais, sem qualificações ao que se entende por essa tal "liberdade", sem se lembrar de Berlin... Assim, qualquer um que critique a democracia é imediatamente assimilado a um defensor da intervenção militar. Isso mesmo, se expomos os possíveis problemas morais da democracia, nem se lembram mais que, com isso, queremos dizer que ela não deve interferir com o indivíduo. Já implicam que queremos dizer que, nela, devem interferir os militares. Menos democracia, oras bolas, na boca de um liberal, significa apenas: mais espaço para decisões individuais. Não significa a troca de um ocupante do poder por outro.

Mas na esteira da conversão da democracia em religião cívica, a própria palavra "democrático" se tornou adjetivo que valoriza qualquer intervenção, seja ela qual for. "Você não está sendo democrático!" não comporta como resposta um "e daí!". Pois deveria! 

No pensamento político brasileiro atual - sobretudo, em suas versões mais acadêmicas (por que será?) - liberalismo é sinônimo de uma pura e simples defesa do corte de gastos sociais, e não de uma teoria moral geral sobre a necessária limitação do Estado, seja lá quem exerça o poder. Assim, liberalismo é um demônio a ser combatido, não uma filosofia a ser seriamente estudada.

Enfim, nunca pensei que eu fosse dizer isso, mas acho que vou mandar fazer umas camisetas com os dizeres: "Menos Rousseau, Mais Constant"; e quem sabe até (e, principalmente, no nosso caso): "Menos Kant, Mais Mill".




 

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Regulamentação da mídia: o que o governo realmente quer?


Em 2015, a regulamentação da mídia pautará boa parte do debate político nacional. Difícil não entender essa agenda petista como uma simples reação a matérias fortemente oposicionistas publicadas por meios de comunicação como a revista Veja. Mas deixemos de lado essa reação imediata e foquemos nos argumentos comumente apresentados por aqueles que reivindicam um projeto de regulamentação do tipo. Claro que a primeira palavra que nos ocorre é "monopólio". Alega-se que, se cabe ao governo impedir um monopólio em qualquer setor da economia, por um silogismo simples, também cabe ao governo impedir um monopólio dos meios de comunicação. 

Ora, primeiramente, cabe observar que não existe monopólio dos meios de comunicação no Brasil. "Mono - pólio", o nome já diz, implicaria em um único proprietário de todos os meios. Não é esse o caso! Na verdade, eles mesmos gostam de dizer que umas cinco ou seis famílias detêm os meios de comunicação no país. Seria então um oligopólio, certo? Rigorismos à parte, o argumento se repetiria: também caberia ao governo acabar com oligopólios. Mas será que podemos ousar criticar essa premissa maior do nosso silogismo?

Pois bem, eu não acredito que o governo deva combater monopólios ou oligopólios não violentos em quaisquer áreas. Explico. O problema com monopólios e oligopólios só surge quando os empresários estabelecidos proíbem novos entrantes no seu mercado. Por exemplo, você começa a vender um jornalzinho estudantil na sua escola e ameaça bater nos coleguinhas que imitem sua ideia, começando a vender também seus jornalzinhos. Nesses casos específicos de uso da força ou ameaça de uso da força para eliminação da concorrência, é legítimo que se use a força no sentido contrário, para garantir o livre mercado. 

Note, então, como uma curiosidade, que a atuação dos governos reais não costuma se reduzir à proibição dos monopólios e oligopólios violentos. Governos são, sim, os criadores de monopólios e oligopólios violentos! São os governos que usam a força para proibir que novos entrantes apareçam em certos mercados, como, por exemplo, no precário mercado de telefonia do Brasil. Na verdade, o próprio governo, enquanto Estado, é um monopólio que criminaliza a concorrência com ele em seu território. Assim, é bem chocante que um governo, qualquer governo, venha nos dizer que é um opositor de monopólios, amigo do livre mercado.

Agora, note como a proibição dos monopólios ou oligopólios não violentos, ao invés de ser um ato de proteção da liberdade, é, na verdade, uma agressão à liberdade. Voltemos ao seu jornalzinho estudantil. Desta vez, você não usou de força ou ameaça de uso da força para desmotivar seu coleguinha a concorrer com você. Em vez disso, ele desistiu espontaneamente de competir, quando verificou que não tinha recursos suficientes para oferecer um produto de qualidade pelo preço que você oferecia. Você teve a ideia primeiro, ganhou dinheiro, ampliou seu negócio e conseguiu investir em papel de qualidade, contratou outro coleguinha para ser um ilustrador e assim por diante. O seu novo concorrente não tem capital suficiente para contratar outros coleguinhas para melhorarem a qualidade do serviço dele e nem pode investir em uma matéria-prima de tanta qualidade. O jornalzinho dele é feio, de conteúdo pobre e o preço acaba não sendo muito diferente do seu. 

Resultado: ninguém (ou quase ninguém) escolhe comprar o jornalzinho do seu concorrente, porque a relação custo/benefício não compensa para o consumidor. Consequência: seu concorrente fecha por uma decisão dele, baseada em pura análise de custo e benefício para ele, uma análise na qual não entrou nenhuma ameaça de violência da sua parte. O que acontece? Você tem um monopólio não violento, uma simples situação de fato e momentânea, e uma situação que, por sinal, não fere a liberdade de ninguém, nem de concorrentes e nem de consumidores. Logo, uma ação de fora para limitar o seu negócio seria uma pura e simples proibição do sucesso.

No mais, se nenhuma violência se fizer presente, a tendência é que seu monopólio fatual seja abalado a qualquer momento por um novo entrante que acredite ter capital suficiente para conquistar ao menos uma fatia do seu mercado. Um observador externo notará, por exemplo, que você não fala muito sobre vídeo-games no seu jornalzinho, ao passo que, na escola, há um público ávido por mais matérias sobre games. Então, esse observador pode convencer investidores (outros coleguinhas) a lançarem com ele um jornalzinho só sobre games: um nicho que você não estava explorando devidamente. E por aí vai... Não há mercado realmente aberto que tenda à perpetuação de monopólios de fato, até pelo simples fato de que pessoas têm gostos e necessidades diferentes. Empiricamente, mercados monopolizados são sempre, pasmem, mercados... excessivamente regulamentados pelos governos. Irônico, não?

Ok, agora, que podemos descartar essa balela sobre monopólios (ou melhor, oligopólios), podemos questionar o que realmente quer o governo. Qual a situação de fato quando alguém limita o tamanho do seu jornalzinho (seja limitando a tiragem ou definindo em que partes da escola você pode vender), ou ainda te proíbe de começar um fanzine na escola, porque, afinal, você já tem um jornalzinho? Já vimos que apenas sua liberdade está sendo restringida, e a de mais ninguém, já que o tamanho do seu negócio, a menos que você proíba concorrentes, por si só, não cerceia a liberdade de ninguém. Mas a situação de fato que interessa ao regulador quando ele cerceia sua liberdade dessa forma é que você perde poder de disseminação do seu conteúdo. Antes, a escola inteira, se quisesse, poderia acessar conteúdo produzido por você. Agora, mesmo que alguém queira, será impedido de comprar conteúdo produzido por você, porque você está proibido de ter um negócio grande (a regulamentação definirá o que é "grande").

Mas por que interessa tanto ao governo que um empresário não possa atingir um público além de um certo limite? Simples, meu caro, nesse cenário, quem é o único que atinge a todos dentro de um mesmo território? Ele mesmo: o governo! A nossa presidente pode entrar em cadeia nacional de rádio e TV no momento em que bem entender. Além disso, os gastos públicos com propaganda governamental são sempre exorbitantes. Eventualmente, até carteiros (os funcionários de um certo monopólio governista) distribuirão material de propaganda governista, não é? Qual a melhor maneira de não se ter oposição sem ter que partir diretamente para a censura de conteúdos? Isso mesmo: você impede qualquer outro de atingir um público suficientemente grande para incomodar o governo. 

Sim, outros governos fizeram isso. Por exemplo, o mesmo governo argentino que saiu à caça do Clarin usou uma TV estatal para reproduzir um documentário sobre vida animal, enquanto o povo saía às ruas para protestar... contra o governo. 

Por falar em sair às ruas, dia 15 de novembro está aí. Se você precisava de mais um motivo para ir às ruas mostrar sua oposição ao PT, que tal este? Vá enquanto há canais que possam exibir sua manifestação para todo o Brasil.


terça-feira, 7 de outubro de 2014

Libertarianismo e federalismo


Certos ideais políticos, por sua própria natureza, não são exequíveis por meio da prática da política partidária. É verdade que, no Brasil mesmo, temos partidos socialistas extremistas, que negam a legitimidade do regime democrático, porém, valem-se dele para divulgar suas ideias. Talvez, a médio ou longo prazo, essa possa até ser uma alternativa também para libertários. Seja lá como for, parece-me que a principal atuação política de um libertário deva ser o convencimento de que soluções estatais nunca são as melhores soluções para nossos problemas, seja do ponto de vista moral ou do ponto de vista pragmático. Em suma, em vez de fundar um partido, parece fazer mais sentido que o libertário dê sua contribuição a um movimento que auxilie mais e mais pessoas no entendimento de que, não, a vida não é o voto. Penso que a religião cívica precise ser abandonada para que surja uma nova sociedade verdadeiramente livre.

Contudo, este post consiste em uma reflexão sobre o tipo de ideal que poderia ser coerentemente perseguido no âmbito da política partidária para facilitar a transição entre o regime democrático e uma sociedade livre. Aliás, antes de mais nada, para não pressupor que o leitor é um profundo conhecedor de minhas irrelevantes ideias, permita que eu esclareça o que entendo por uma sociedade livre. Vejo assim toda sociedade em que indivíduos não são coagidos a tomar parte de quaisquer empreendimentos cooperativos, ou seja, sociedades em que as associações são todas voluntárias. Isso significa que, em vez do direito ao voto, uma sociedade livre reconheceria o direito do indivíduo não-agressivo de não aderir a um governo a menos que ele assim desejasse. A consequência prática seria o fim dos impostos, dado que toda contribuição teria que ser voluntária, e a permissão de governos concorrentes dentro de um mesmo território. 

Enfim, agora, deve ficar mais claro por que eu disse acima que o caminho para tal sociedade não é a política partidária. Não se trata aqui de um projeto eleitoralmente concorrente para um governo democrático, mas do fim da própria democracia, no sentido em que a maioria não teria nenhuma legitimidade para legislar sobre uma minoria. Em uma sociedade livre, cada adesão a um governo teria que ser conquistada pelo convencimento efetivo daquele indivíduo. Para cobrar a adesão do indivíduo a um governo, não bastaria dizer que o indivíduo poderia ter votado no chefe daquele governo e, se não o fez, foi porque não quis.

Voltando agora ao ponto central do post, dentro do regime democrático, há Estados mais e menos nocivos à liberdade, ou seja, há Estados que se intrometem mais e há Estados que se intrometem menos na condução da vida dos indivíduos. Da mesma maneira, há Estados que permitem que os indivíduos que compõem uma mesma comunidade local gerenciem suas vidas e há Estados que centralizam e uniformizam todas as decisões.

Curiosamente, a história da federação norte-americana oferece boas razões para que defensores da liberdade defendam um poder central intervencionista, contra poderes locais. O federalismo que os pais fundadores dos Estados Unidos tentaram proteger a todos custo, antes de aceitarem uma mesma constituição, caiu em desgraça na guerra civil daquele país. Ocorreu que o poder central precisou interferir no direito dos estados para libertar escravos. Desde então, quando se usa essa expressão - "direto dos estados" - nos EUA, implica-se a defesa do racismo. 

Por motivos diferentes, mas também por influência da história americana, a defesa de maior autonomia dos estados na federação brasileira também é moralmente mal vista por nossas bandas. Em geral, nossa peculiaridade é que, quando se fala em um verdadeiro federalismo, lembra-se de movimentos separatistas, que, via de regra, são atrelados ao preconceito contra o povo nordestino. Com isso, prospera um projeto de governo que centralizou as decisões como nunca se viu antes na história desse país. Não se trata apenas de enfraquecer estados e municípios do ponto de vista orçamentário, como se a esfera federal fosse menos suscetível a casos de corrupção e má gestão de verba pública. Trata-se de uniformizar um modelo de sociedade, por exemplo, através da educação, com um MEC cada vez mais poderoso. A ideia de um mesmo exame garantir a admissão em universidades de norte a sul de um país continental é apenas a ponta do iceberg. O fato é que temos um governo que vê Brasília como o único cérebro do país. As demais regiões - consideradas corruptas ou simplesmente inaptas - devem apenas implementar decisões tomadas em Brasília. 

Ora, não há problema, dirão, que toda decisão relevante para esta nação seja tomada em Brasília, porque, afinal, todos estamos representados em Brasília. Será? Supondo, em prol do argumento, a legitimidade do conceito de representação política, quem está mais próximo de você: o vereador do seu município ou o deputado federal que sua cidade elegeu? Aliás, meu caro, sua cidade elegeu algum deputado federal? Se elegeu, responda-me quantos votos foram necessários para a eleição do deputado federal de sua região e quantos votos são necessários para a eleição de um vereador em seu município. Agora, diga-me em qual eleição o seu voto tem mais valor (tomando por valor o poder de influenciar o resultado da eleição): a eleição de um deputado federal ou a eleição de um vereador?

Parece-me claro que, quanto mais local o poder, maior o poder de cada indivíduo. Isso, é verdade, não impede que vizinhos sejam déspotas para com uma minoria local. Todavia, a possibilidade de que o voto da maioria viole direitos individuais é um problema inerente à democracia, e não ao federalismo, como a história pode ter feito parecer.

Do mesmo modo que indivíduos podem se associar para formar uma comunidade política local, o federalismo é uma associação de associações. Assim, não se pode respeitar o indivíduo sem respeitar cada associação. Naturalmente, assim como no caso do indivíduo, respeito implica, primeiramente, o reconhecimento do direito de deixar a associação. Portanto, sim, um libertário deve sempre defender direitos separatistas. Isso é diferente, entretanto, de defender a efetiva separação. Ao defender, por exemplo, o direito do indivíduo de não aderir a um governo, sem que ele tenha que deixar o território daquele governo, eu não defenderia que os indivíduos não continuassem como membros dos governos que lhe reconhecem o direito de saída (se existissem, claro!). É como uma esposa que defenda o direito ao divórcio, ainda que ela própria não pretenda se divorciar. São coisas diferentes! O ponto é que, se o indivíduo tem o direito de deixar uma associação, uma associação de indivíduos também deve ter o direito de deixar uma federação.

Naturalmente, na realidade, não se reconhece o primeiro direito acima, tampouco se reconhecerá o segundo. Como proceder então, na realidade, para que uma federação diminua o poder tirânico exercido sobre as associações que ela coage a permanecerem como parte dela? Creio que Nozick nos dê bons subsídios para pensarmos no assunto, quando discute o princípio da equidade no cap. 05 de Anarquia, Estado e Utopia, ainda que o ponto dele seja a associação de indivíduos, não a federação de associações. No caso, dois pontos do argumento dele me interessam aqui, neste cenário em que sabemos que os estados não serão autorizados a deixar a federação, o que é imoral, mas, infelizmente, é real.

O primeiro ponto (adaptando) é que, se uma associação precisa arcar com um ônus, restringindo sua autonomia em nome de um benefício que ela supostamente colhe da participação na federação, então o benefício tem que ser maior do que o ônus. Obviamente, seria abertamente agressora a federação que admitisse que obriga um determinado estado a arcar com um prejuízo por ser parte sua, mas, mesmo assim, não vai permitir que esse estado deixe a federação. 

É fácil ver, porém, que será difícil encontramos um critério objetivo que prove que, sob qualquer ótica, o benefício de participar de uma federação cobre o custo implicado por isso. Tendemos a pensar em benefícios econômicos. Porém, os indivíduos de uma associação podem sentir tamanho mal-estar por terem que obedecer leis cunhadas fora da comunidade restrita com a qual eles se identificam que isso poderia ser o bastante para dizermos que o benefício de ser parte da federação não cobre o custo. Assim, esse primeiro ponto não nos ajuda muito, porque ele nos remete novamente à necessidade de consultarmos a associação sobre seu desejo de permanecer como membro da federação. Só ela pode medir o custo e o benefício, afinal!

O segundo ponto (também adaptado), talvez, nos ajude um pouco mais. Os benefícios podem cobrir os custos da inclusão na federação, mas podem fazer isso no limite, a ponto de ser quase indiferente para o estado se ele participa ou não da federação. Contudo, podem haver outros estados que, em sua própria avaliação, colhem muito mais benefícios e não estão minimamente dispostos a deixar a federação. Nesse caso, sempre partindo do pressuposto de que os estados não têm permissão para deixar a federação, é justo cobrar de cada estado o mesmo ônus?

Pensemos em termos puramente materiais para facilitar a comparação. Suponha que dois estados possuem o mesmo direito de reivindicar ajuda da guarda nacional em caso de transtornos domésticos. Porém, só um desses estados possui uma ampla rede de universidades federais em seu território, enquanto o outro tem que usar parcos recursos próprios se quiser se equiparar ao primeiro estado em termos da oferta proporcional de um número vagas de ensino superior para sua população. É justo que os dois estados arquem com o mesmo ônus para fazerem parte da federação? 

Parece-me, enfim, que uma regra mínima de moralidade em uma federação seria a repartição igualitária de custos e benefícios. A violação dessa regra faz valer uma política redistributiva entre estados que só faria sentido em casos bem claros de restituição. Por exemplo, durante as décadas 1 e 2, o estado A recebeu mais benefícios do que o estado B. Logo, para que haja retificação da injustiça, durante as décadas 3 e 4, o estado B receberá mais benefícios do que o estado A, na mesma proporção. Não basta provar qual estado precisa de mais recursos para justificar a desigualdade na distribuição dos benefícios e a igualdade na distribuição do ônus (ou vice-versa), a menos que você esteja disposto a demonstrar que um estado tem o dever de prover o outro, ainda que ele nada tenha tirado desse último. Boa sorte com isso!

No mais, como dito acima, quanto mais a federação delegasse aos estados em termos de legislação, tanto melhor, dada a maior proximidade entre os vereadores e deputados estaduais com relação à população que os elege. Você pode objetar a essa ponderação, observando que as pessoas se lembram com mais facilidade de quem votaram na esfera federal.  Mas isso ocorre, exatamente porque as pessoas nem sabem quais as parcas atribuições dos poderes municipal e estadual, e, quando sabem, reconhecem, com razão, que eles quase nada podem sem os repasses federais. Daí a importância do deputado federal, como uma espécie de soldado responsável por trazer (de volta?) para casa uma pequena parte dos muitos recursos concentrados na união. Inverta-se a lógica e o eleitor saberá, não apenas o nome, como o endereço do seu vereador. Já seria alguma coisa...

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Contra Hobbes

 

Hobbes é bem conhecido por sua defesa da racionalidade da guerra preventiva. De fato, logo no início do capítulo XIII do Leviatã, ele defende a razoabilidade da antecipação do ataque como um requerimento da auto-conservação.

there is no way for any man to secure himself so reasonable as anticipation; that is, by force, or wiles, to master the persons of all men he can so long till he see no other power great enough to endanger him: and this is no more than his own conservation requireth, and is generally allowed.

A razoabilidade da antecipação do ataque está diretamente relacionada à ausência do poder estatal. Em outras palavras, tratar-se-ia do que a razão recomenda quando o único poder a ser temido é o poder singular de outro indivíduo. A ideia é que, desejosos que somos das mesmas coisas (escassas) e equivalentes que somos em poder (enquanto indivíduos), nunca podemos nos assegurar de que não seremos atacados. Assim, devemos aumentar o nosso poder sobre os demais sempre que possível:

such augmentation of dominion over men being necessary to a man's conservation, it ought to be allowed him.

O que me interessa em especial neste post, porém, é um argumento similar que Hobbes desenvolve no capítulo seguinte, sobre contratos. Segundo esse argumento, não seria recomendado pela razão que fizéssemos primeiro a nossa parte em um contrato, na expectativa de que a outra parte também desempenhasse o que lhe cabe, a menos que houvesse um poder comum forte o bastante para obrigar esse desempenho.

If a covenant be made wherein neither of the parties perform presently, but trust one another, in the condition of mere nature (which is a condition of war of every man against every man) upon any reasonable suspicion, it is void: but if there be a common power set over them both, with right and force sufficient to compel performance, it is not void. For he that performeth first has no assurance the other will perform after, because the bonds of words are too weak to bridle men's ambition, avarice, anger, and other passions, without the fear of some coercive power; which in the condition of mere nature, where all men are equal, and judges of the justness of their own fears, cannot possibly be supposed. And therefore he which performeth first does but betray himself to his enemy, contrary to the right he can never abandon of defending his life and means of living.

Quero chamar sua atenção, em especial, para as últimas linhas, que refletem o caráter normativo ou prescritivo do ponto de Hobbes: na ausência do Leviatã, se um agente A beneficia outro agente B na expectativa de ser por ele também beneficiado, A trai seu próprio interesse, contraria um direito que ele não pode abandonar, a saber, o direito de defender a própria vida. Pelo que vejo, a justificativa para essa alegação é a falta de uma garantia de que B cumprirá sua parte. É claro que é possível que B cumpra sua parte. Mas, não havendo tal garantia, quando A cumpre primeiro a sua parte, ele arca com um custo para sua auto-conservação que bem pode não lhe render qualquer fruto. Daí que seja dito por Hobbes que, no estado de natureza, aquele que confia no outro trai a si mesmo.

Tendo sempre em vista que o fundamento de todas as nossas obrigações naturais, bem como o único fim de nossos atos voluntários é a auto-preservação, a prescrição da razão, no estado de natureza, é que não façamos contratos, mas sim ataquemos, sempre que tivermos uma oportunidade. Ora, como esse estado de coisas, por si mesmo, acaba contrariando nosso interesse de auto-preservação, devemos alterar essa lógica pelo único meio possível: a criação de um poder comum que puna o início de violência e obrigue o cumprimento de contratos.

Há vários pontos do argumento de Hobbes dos quais discordo. Por exemplo, Hobbes desconsidera por completo a possibilidade de que seres humanos sejam sujeitos autônomos dignos de respeito, a ponto de poder haver uma proibição moral de que sejam usados como simples meios no interesse de minha auto-preservação, ou de minha leitura do interesse deles próprios. Essa consideração poderia alterar toda a lógica que nos conduz aos braços do Leviatã, pois, por mais prudente que fosse a submissão a ele, supondo que seres humanos sejam moralmente invioláveis, eles não poderiam ser submetidos a um poder maior com base em um argumento prudencial.

Ademais, posso conceber um direito natural de auto-preservação, mas não uma obrigação. Por que eu teria o dever de viver? Por que eu não poderia escolher o estado de natureza simplesmente alegando que prefiro liberdade à segurança? Note que a pressuposição da busca por auto-preservação é o que fundamenta as prescrições racionais em Hobbes. Não vejo qual a justificativa da maior racionalidade da própria busca por segurança. Em vez disso, vejo apenas a afirmação dogmática de que tal fim seria natural.

Por fim, ainda que concedamos 1) que seres humanos não tenham valor moral e, portanto, possam ser submetidos a um Leviatã em nome de interesses de auto-preservação, e; 2) que a própria auto-preservação seja uma obrigação; ainda percebo algo que não fecha no argumento de Hobbes. Não é mesmo racional firmar um contrato na ausência do Leviatã? É claro que Hobbes tem razão quanto à possibilidade de que o outro não cumpra sua parte. Mas ele parece exagerar ao extremo essa probabilidade, minimizando demais as motivações egoístas para que alguém cumpra um contrato mesmo sem ter sanções legais a temer.

Posso mostrar como obtemos sucesso cotidiano fazendo cálculos diferentes dos cálculos prescritos por Hobbes. Hobbes não nos pediu para que atentássemos a exemplos do cotidiano dentro do Estado ao imaginarmos como seria o estado de natureza? Pois bem, ofereço dois exemplos banais e convido meu leitor a pensar em outros tantos a partir de sua própria experiência.

Em Fortaleza, queria comprar um shorts em uma feira de artesanato. Naturalmente, a feirante não dispunha de um provador. Como ela também não aceitava cartão e eu estava sem dinheiro, ela sugeriu que eu levasse o shorts para o hotel, provasse e voltasse depois com o shorts ou o dinheiro. Quando eu voltei com o dinheiro, ela me contou que sempre age assim, sendo que, vez ou outra, as pessoas levam muitas roupas e não aparecem mais. Ela simplesmente decidiu não tomar esses casos como regra e, com isso, segundo ela mesma, tem tido mais ganhos do que perdas. Por que ela estaria traindo a si mesma ao negociar assim?

Já hoje, ocorreu o inverso. Levei uma roupinha da Mel para trocar e o Pet Shop não tinha outra peça para pronta entrega. Deixei a roupinha lá, sem nenhum comprovante, e vou esperar que me liguem quando a roupinha chegar. Se não ligarem, não tenho como registrar nenhuma queixa contra a loja perante o Leviatã. Mesmo se tivesse, não compensaria o trabalho.

Bom, o que quero dizer com isso é que o cotidiano está repleto de exemplos de contratos que cumprimos mesmo sabendo que não há possibilidade de "enforcement". Em outras palavras, depois de nos beneficiarmos do contrato, nós ainda fazemos a nossa parte, conscientes de que não sofreríamos uma punição legal se não a fizéssemos. Ou, então, quando do outro lado, nós confiamos que o outro cumprirá sua parte depois de termos feito a nossa.

E nós não agimos assim, necessariamente, por sermos bons, embora escrúpulos morais e laços afetivos possam ter seu papel aqui. Nós agimos assim, por exemplo, porque queremos seguir firmando esse tipo de contrato. É do nosso interesse egoísta que contratos assim sejam realizados e, mais ainda, que confiem que vamos fazer nossa parte neles. Infelizmente, essa é uma possibilidade que Hobbes mal contempla. Nesta passagem, é que ele me parece chegar mais perto dela:

The force of words being (as I have formerly noted) too weak to hold men to the performance of their covenants, there are in man's nature but two imaginable helps to strengthen it. And those are either a fear of the consequence of breaking their word, or a glory or pride in appearing not to need to break it. This latter is a generosity too rarely found to be presumed on, especially in the pursuers of wealth, command, or sensual pleasure, which are the greatest part of mankind. The passion to be reckoned upon is fear.

Ora, eu não falava acima de um interesse em parecer não precisar quebrar pactos por orgulho. Eu falava do interesse pragmático de querer celebrar novos pactos no futuro. É esse interesse que parece ter escapado a Hobbes justamente no capítulo que ele dedica à lógica dos contratos. A sanção para aquele que não faz sua parte após ser beneficiado pelo outro é não mais poder buscar ajuda nesse outro ou naqueles que tiveram ciência do seu comportamento.

Pelas considerações acima, penso que Hobbes está simplesmente errado ao generalizar e tratar todo e qualquer contrato de confiança como contrário ao nosso interesse racional na ausência do Leviatã. No caso, a feirante de Fortaleza me parece mais sábia do que esse grande filósofo que legou um preconceito tão arraigado na filosofia política que o sucedeu. Talvez, os filósofos devessem seguir o conselho do próprio Hobbes e observar melhor o cotidiano. Veriam que trancamos nossos bens, sim, mas também selecionamos pessoas em quem confiamos, mesmo quando a espada do Leviatã não pode alcançá-las por nós.

 

 

quarta-feira, 21 de maio de 2014

O Estado de Bem-Estar Social como uma Confusão Conceitual


No último encontro de seu grupo de pesquisa, Aguinaldo comentava como Kant é necessário para a organização de sua vida mental. Essa constatação não poderia ser mais verdadeira para mim. Discordando ou não de Kant quanto ao conteúdo de teses, o fato é que ele oferece o referencial teórico, o quadro conceitual pelo qual consigo me orientar no pensamento, elaborando questões e buscando respostas para elas. O que tenho em mente fica claro se tivermos em vista, por exemplo, a importante distinção entre deveres perfeitos e imperfeitos. Aliás, é esse o ponto: Kant sempre tem em mãos uma distinçãozinha que evita que caíamos em desgraça, ou seja, em confusão.

É verdade, porém, que a distinção nem sempre é ela mesma tão clara. Muita bibliografia já foi produzida, por exemplo, sobre o cerne da diferença entre deveres perfeitos e imperfeitos. Obviamente, não é minha intenção entrar em debates hermenêuticos neste espaço. É a intuição fundamental da distinção que me interessa. Entendamos, então, por deveres perfeitos, os deveres relativos a práticas de ações que podem ser diretamente especificadas a partir de um procedimento formal. Isso implica em deveres estritos, que não deixam margem para o juízo moral do agente. Por exemplo, não se pergunta para com quem temos o dever de não cometermos fraude, ou quais assassinatos não devemos cometer. Tendo em vista uma investigação que Nozick desenvolve muito proximamente ao espírito da ética kantiana da qual quero me apropriar livremente aqui, podemos dizer que deveres perfeitos dizem respeito aos deveres que temos de não respondermos ao valor da pessoa humana como se ele fosse um desvalor. Em outras palavras, deveres perfeitos são deveres de não tratarmos o valor como se ele fosse algo que pudesse ser destruído. Comportamentos destrutivos ou agressivos à pessoa humana são, portanto, comportamentos absolutamente reprováveis.

Agora, há deveres imperfeitos, no sentido não de deveres que podemos deixar de lado, mas no sentido de deveres que comportam uma latitude para a decisão do agente quanto aos casos de aplicação. Por exemplo, provavelmente, você acredita que tenhamos algum dever de cooperação ou, simplesmente, de caridade. No entanto, da aceitação desse preceito, não decorre que tenhamos o dever de ajudarmos a toda e qualquer outra pessoa, em todas e quaisquer circunstâncias, com relação a todas e quaisquer necessidades suas. Quer dizer, não fica determinado o que devemos fazer com relação a quem, pois uma coisa é termos um dever lato de beneficência e outra coisa é termos o dever estrito de darmos R$100,00 ao mendigo João que nos aborda no semáforo da esquina X. Quanto a esses deveres, cabe nossa ponderação pessoal com respeito a quem devemos ajudar, em que circunstâncias, com o que... Por isso, do seu dever lato de beneficência não decorre um direito meu de ser assistida por você.

A natureza desses deveres imperfeitos também ficará mais clara se eu continuar abusando de Nozick. São deveres para que eu responda ao valor da pessoa humana como algo de valor, procurando mantê-lo em existência. Naturalmente, se eu não faço isso, isto é, se eu me omito e deixo de evitar que o valor seja destruído, isso não implica que eu mesma tenha destruído o valor. Por isso, são deveres profundamente diferentes com relação aos deveres perfeitos. Não tomar interesse pelo valor como algo de valor não é o mesmo que agir no sentido de destruí-lo como se ele não tivesse valor ou fosse mesmo algo de nocivo. A indiferença por uma pessoa não é idêntica a uma atitude pela qual eu a tome por uma coisa e a use como tal. Eu nunca posso usar pessoas como se fossem coisas, mas, por vezes, posso ser indiferente a elas, como quando passo por estranhos na rua sem sequer atentar para a existência deles. A minha indiferença não colabora para a manutenção do valor das pessoas, mas também não é destrutiva desse valor.

Enfim, agora, por mais que eu tenha deixado possíveis questões em aberto acima, afinal, isto não é um livro de filosofia, já posso delinear meu ponto sobre o Estado de Bem-Estar Social. Os seus proponentes tomam deveres imperfeitos como se fossem perfeitos. É como se eu tivesse o dever estrito de manter o valor de todos, do mesmo jeito que tenho o dever estrito de não destruir o valor de ninguém. Ora, como eu poderia colaborar para manter o valor de todos? Parece claro que um tal dever estaria além da capacidade humana. E é por isso mesmo que o proponente do Estado de Bem-Estar Social não acredita que associações voluntárias possam fazer as vezes do Estado no tocante à beneficência. Só o Estado pode tirar um pouco de todos e criar um fundo disponível para o benefício de todos. Mas se a ação beneficente fosse voluntária, note que eu, necessariamente, teria que escolher a quem ajudar, com qual causa colaborar e com quanto. É essa dinâmica do dever imperfeito que o proponente do Estado de Bem-Estar Social não aceita. Ele quer implantar aqui a dinâmica estrita dos deveres perfeitos.

Para defender seu caso contra a distinção entre deveres perfeitos e imperfeitos, o advogado do Estado de Bem-Estar Social carrega nas tintas e imagina casos extremos em que qualquer sujeito julgaria estar diante de uma instância de aplicação do dever imperfeito. Por exemplo, imagine que você seja o único transitando por um dado caminho à noite. O lugar é deserto e você o procurou exatamente porque queria ficar sozinho. Você está, portanto, ciente de que as chances de mais alguém passar por ali são mínimas. Trata-se também de uma época de inverno rigoroso, sendo que o frio vai se intensificando conforme a noite cai. Então, você ouve o choro de um bebê e percebe, à beira do caminho, que ele foi abandonado ali à própria sorte. Ora, se você não socorrer o bebê, é muito provável que ele não resista até o amanhecer. O que você deve fazer? 

É claro que essa decisão não é como a decisão de doarmos R$10,00, R$50,00 ou nada para um determinado pedinte no semáforo. O contexto reúne circunstâncias tão extremas que facilitam o juízo moral do agente. Sabemos que devemos cumprir o dever imperfeito ajudando o bebê. Mas, veja bem, nem por isso, ele seria então um dever perfeito. A diferença não foi anulada. A minha omissão no caso de um bebê que não coloquei no mundo não é equivalente a um ato meu visando assassiná-lo. Eu não seria responsável pela morte dele simplesmente por ter o poder de evitá-la e escolher não fazê-lo. Apenas era um caso claro em que eu tinha que cumprir o dever de manter o valor da pessoa humana em existência. Era um caso claro em que a resposta apropriada ao valor não poderia ser a indiferença. Mas esse caso atípico, excepcional não pode ser convertido em uma regra que anule a latitude própria dos deveres imperfeitos. No máximo, inclusive, a atenção para com casos assim poderia vir a justificar a criminalização da omissão de socorro, mas não a imposição da cooperação social em geral.

Mas será que é apenas pela sua latitude inerente que deveres imperfeitos não podem ser objeto de imposição? Quero encerrar esse texto dizendo que há algo mais aqui. Como Nozick bem nota na última entrevista que deu em vida, aquela que gostam de esquecer pelo fato dele se reafirmar nela como libertário, quando impomos o que estou chamando aqui de deveres imperfeitos estamos ferindo o que estou chamando aqui de deveres perfeitos. A imposição de que alguém responda positivamente ao valor, mantendo-o em existência, implica em tratar esse alguém como sendo ele próprio algo sem valor, algo que pode, portanto, contra sua vontade, ser o mero recurso ou instrumento de minha própria boa ação. Por isso, a única forma consistentemente moral de respondermos positivamente ao valor é a cooperação voluntária, não o Estado de Bem-Estar Social ou algo que o valha.