The Misfit
domingo, 7 de dezembro de 2014
Blogando em um novo endereço
Aguardo vocês lá!
Um abraço,
Andrea
sábado, 22 de novembro de 2014
Mais Kant, menos Mill
Claro que Kant não pensava no voto de uma maioria esmagando o indivíduo. Ele nem sequer acreditava que a vontade geral coincidisse com a vontade de todos empiricamente unificada em um plebiscito. No entanto, o soberano legisla em nome dessa vontade geral - uma ideia racional do que todos deveriam querer - e eu não vejo em Kant uma defesa forte o bastante dos limites dessa legislação, por mais que ele tenha criticado tanto o paternalismo do Estado, que tenta fazer o súdito feliz, quanto a pretensão do Estado que tenta transformar o indivíduo em um ser virtuoso. Por exemplo, Kant não disse claramente que o princípio universal do direito ou o direito inato à liberdade deveria limitar e determinar o princípio do contrato, embora eu ache que essa seja a melhor interpretação de sua posição.
Ora, à primeira vista, isso parece uma perfeita formulação do princípio da não-agressão dos libertários, o famoso PNA. Pois eu alego que, bem pelo contrário, esse é um princípio coletivista que deixa entrar pela porta dos fundos toda a ameaça de tirania que Mill tentou expulsar pela porta da frente.
O ponto central é: Como defino um dano? Dano a quê? Um dano pode ser um mero efeito indesejado em minha vida. Um dano pode ser consentido. Por exemplo, você resolve usar drogas. Em um primeiro momento, eu não posso proibi-lo de fazê-lo de acordo com o princípio do dano, afinal, Mill diz claramente que não se trata de impôr a alguém o que, supostamente, seria melhor para ele mesmo. Só que a família de um usuário de drogas pode ser prejudicada por suas ações. Eles podem ter que acordar no meio da madrugada para socorrem o usuário em uma emergência. Eles podem ter que cobrir os custos materiais da droga na vida desse indivíduo. Eles podem simplesmente sofrer emocionalmente ao assistirem a decadência de um ente querido. Isso tudo não conta como dano?
Mas a questão é o sentido do "ter que" acima. Você não é forçado a socorrer seu ente querido financeiramente. Você pode escolher pagar o preço de vê-lo sofrendo. Em suma, você o socorre, porque quer, a menos que ele tenha chegado ao ponto de apontar uma arma para sua cabeça. Enquanto não chegarmos a esse ponto, existe dano, mas não existe dano à liberdade. Em outras palavras, o princípio do dano abre as portas para restrições de sua liberdade em ações em que você não restringiu a liberdade de ninguém.
A coisa fica ainda pior. Eu disse acima que você pode escolher omitir socorro. Portanto, nesse caso, se você sofre um dano causado pelo seu ente querido, esse dano é consentido por você. Mas não é bem assim no cenário do princípio do dano, porque Mill ainda admite explicitamente que o princípio legitima também a coerção à performance de atos individuais de beneficência. Em outras palavras, amigos libertários, Mill, de bom grado e conscientemente, abre as portas para deveres positivos.
Para Mill, não apenas nossas ações, mas também nossas omissões podem causar danos a terceiros, de forma que você deve prestar contas pela injúria da omissão. Ora, nada mais anti-libertário do que isso! A boa lição de Nozick é que, do fato de podermos impedir um dano, mas não o fazermos, não decorre que tenhamos sido a causa do dano. Nozick aponta que só seríamos a causa do dano por omissão, justamente se fosse pressuposto que tínhamos a responsabilidade ou o dever de agir quando nos omitimos. É verdade que Mill diz que os casos em que somos responsabilizados por omissões são de exceção, mas fica aberto mais um flanco para ataques contra a liberdade.There are also many positive acts for the benefit of others, which he may rightfully be compelled to perform...
Por fim, eu quero expor também meu descontentamento com o fundamento utilitarista do princípio do dano. Já disse aqui e repito: utilitarismo é coletivismo; se advogada pela causa da liberdade individual, é só como meio. Isso fica claro no texto de Mill quando ele nos diz que o princípio último de todas as questões de ética é a utilidade em sentido amplo, definida como: os interesses permanentes do homem como um ser que progride. Quer dizer, no fim, não importa a sua vontade de fato, os seus interesses particulares, mas, assim como para os democratas, está em jogo um conjunto de interesses abstratamente considerados, a serem definidos pelos legisladores e opostos aos cidadãos reais, empiricamente tomados. Se se deixa espaço para a manobra dos indivíduos reais, é apenas porque se acredita que essa margem de não-interferência serve a esse homem abstrato a ser sempre aperfeiçoado.
Bom, e Kant? Kant pode até ter se degenerado depois, no desenrolar de sua filosofia política, mas, como bem aponta Berlin, ele começa como um genuíno individualista. A humanidade na sua pessoa é digna de respeito absoluto. Isso implica que você pode ser restrito na busca dos seus fins, mas jamais pode ser usado como um meio para quaisquer fins, como, por exemplo, o progresso da humanidade em seus "interesses permanentes".
O que está em jogo é justamente qual o princípio que orienta essa restrição da liberdade do indivíduo na busca de seus fins privados. É nesse momento que Kant formula o PNA melhor que qualquer libertário de carteirinha. A liberdade só pode ser restrita em nome dela própria: é permitida apenas a coerção da coerção. Se minha liberdade pode coexistir com a sua e, mesmo assim, você me restringe, aí sim, você me causa dano: dano à liberdade! Para Kant, não cabe ao direito interferir se um dano foi causado apenas graças ao consentimento daquele que o sofreu.
Por isso que, diga-se de passagem, em Kant, não cabe o conceito de "coerção moral" cunhado por Mill. De acordo com Mill, interferências na liberdade também podem ser morais, e não apenas físicas, no sentido em que alguém pode sofrer como sanção uma reprovação. Ora, isso não cabe em Kant. É verdade que posso ser moralmente punida pela reprovação do juízo alheio. Mas o seu mero juízo não restringe meu arbítrio. Eu posso continuar fazendo as mesmas coisas que você reprova, enquanto você meramente expressa sua reprovação. Assim, pode ser anti-ético que você me censure sem boas razões, mas não é uma violação de direitos meus, porque eu não tenho um direito à sua aprovação. Esse é mais um benefício do modo preciso como Kant distingue ética e direito, coisa que Mill não fez.
Voltando ao exemplo do usuário de drogas, eu posso sofrer se escolho não ajudar meu ente querido em sua decadência. Mas nem todo sofrimento é uma violação de um direito meu, ou seja, uma restrição de minha liberdade. Eu não tenho o direito de não ser emocionalmente magoada ou de não ser contrariada. Uma ameaça qualquer de sofrimento, por si só, não restringe minha liberdade.
Por exemplo, uma coisa é dizermos: "se você bater em João, não falo mais com você". Aqui, o indivíduo fica perante uma simples escolha: ou bate no João, ou continua falando comigo, sendo que ele não pode reivindicar um direito a uma coisa ou a outra. Ele não tem direito à minha ação de conversar com ele. Eu não tenho a obrigação de falar com ele, ou eu seria uma escrava dele, em vez de um ser livre. Da mesma forma, ele não tem o direito de usar o corpo de João como saco de pancadas, ou João seria um escravo dele, em vez de um ser livre. Assim, a liberdade do sujeito fica preservada na encruzilhada em que eu o coloco. Ele escolhe. Não poder ter as duas coisas não é sinal de falta de liberdade.
Agora, se eu digo: "se você bater no João, eu mato você, ou prendo você, ou tomo sua propriedade", a coisa muda de figura. Você tem o direito de não ser morto, não ter seu corpo aprisionado e não ter sua propriedade levada, porque a sua liberdade é restringida em qualquer um desses casos. Adotar esse tipo de ação contra você claramente restringe sua liberdade. Por que eu teria o direito de restringir sua liberdade? Na verdade, eu não tenho. Só passo a ter se você bater em João, ou seja, restringir a liberdade dele primeiro. A minha ameaça só é legítima, porque ela visa obstruir uma escolha ilegítima.
Tudo mudaria se eu dissesse: "se você não falar mais comigo, eu mato você". Aqui, ao não falar com você, eu não restrinjo sua liberdade. Eu apenas deixo de prover você com o que você considera um bem: minha companhia. Ao me matar, porém, você restringe minha liberdade terminantemente.
Já fica implícito aqui que o princípio de Kant ainda tem a vantagem de excluir explicitamente as ações de benevolência do âmbito do direito, reservando-as para a ética, ao afirmar que o direito não trata da relação do meu arbítrio com seus fins (necessidades ou desejos), mas sim de uma relação externa e formal entre nossos arbítrios, em que se analisa apenas se um arbítrio impediu o outro.
Enfim, por essas e outras, acredito que libertários devamos "perdoar" a filosofia política de Kant e abraçarmos como PNA o princípio universal do direito que diz que a minha ação é conforme ao direito (portanto, não pode ser impedida), quando pode coexistir com a liberdade de todos os outros conforme uma lei universal. Se você acredita que o papel do direito é ser um garantidor da liberdade individual, pronto, o princípio é esse. Se o próprio Kant foi sempre fiel a ele, é outra história. Podemos nos apropriar do que nos interessa em um autor, deixando o resto lá.
sexta-feira, 14 de novembro de 2014
Religião cívica e filosofia política no Brasil
The liberals of the first half of the nineteenth century [...] pointed out that the sovereignty of the people could easily destroy that of individuals. Mill explained, patiently and unanswerably, that govern ment by the people was not, in his sense, necessarily freedom at all. For those who govern are not necessarily the same 'people' as those who are governed, and democratic self-government is not the government 'of each by himself', but, at best, 'of each by all the rest'. Mill and his disciples spoke of 'the tyranny of the majority' and of the tyranny of 'the prevailing opinion and feeling', and saw no great difference between that and any other kind of tyranny which encroaches upon men's activities beyond the sacred frontiers of private life. (Berlin, "Two Concepts of Liberty")
No mesmo texto e ainda mais enfaticamente:
Democracy may disarm a given oligarchy, a given privileged individual or set of individuals, but it can still crush individuals as mercilessly as any previous ruler. An equal right to oppress - or interfere - is not equivalent to liberty.
Se formos diretamente ao texto de Mill, On Liberty, encontramos, por exemplo, que:
A time, however, came, in the progress of human affairs, when men ceased to think it a necessity of nature that their governors should be an independent power, opposed in interest to themselves. It appeared to them much better that the various magistrates of the State should be their tenants or delegates, revocable at their pleasure. In that way alone, it seemed, could they have complete security that the powers of government would never be abused to their disadvantage.[...]As the struggle proceeded for making the ruling power emanate from the periodical choice of the ruled, some persons began to think that too much importance had been attached to the limitation of the power itself. That (it might seem) was a resource against rulers whose interests were habitually opposed to those of the people. What was now wanted was, that the rulers should be identified with the people [...]. The nation did not need to be protected against its own will. There was no fear of its tyrannising over itself.[...]The notion, that the people have no need to limit their power over themselves, might seem axiomatic, when popular government was a thing only dreamed about, or read of as having existed at some distant period of the past. [...] It was now perceived that such phrases as ‘self-government’, and ‘the power of the people over themselves’, do not express the true state of the case. The ‘people’ who exercise the power are not always the same people with those over whom it is exercised; and the ‘self-government’ spoken of is not the government of each by himself, but of each by all the rest. The will of the people, moreover, practically means the will of the most numerous or the most active part of the people; the majority, or those who succeed in making themselves accepted as the majority; the people, consequently, may desire to oppress a part of their number; and precautions are as much needed against this as against any other abuse of power. The limitation, therefore, of the power of government over individuals loses none of its importance when the holders of power are regularly accountable to the community, that is, to the strongest party therein.
The triumph of despotism is to force the slaves to declare themselves free. It may need no force; the slaves may proclaim their freedom quite sincerely: but they are none the less slaves.
segunda-feira, 10 de novembro de 2014
Regulamentação da mídia: o que o governo realmente quer?
terça-feira, 7 de outubro de 2014
Libertarianismo e federalismo
sexta-feira, 6 de junho de 2014
Contra Hobbes
Hobbes é bem conhecido por sua defesa da racionalidade da guerra preventiva. De fato, logo no início do capítulo XIII do Leviatã, ele defende a razoabilidade da antecipação do ataque como um requerimento da auto-conservação.
there is no way for any man to secure himself so reasonable as anticipation; that is, by force, or wiles, to master the persons of all men he can so long till he see no other power great enough to endanger him: and this is no more than his own conservation requireth, and is generally allowed.
A razoabilidade da antecipação do ataque está diretamente relacionada à ausência do poder estatal. Em outras palavras, tratar-se-ia do que a razão recomenda quando o único poder a ser temido é o poder singular de outro indivíduo. A ideia é que, desejosos que somos das mesmas coisas (escassas) e equivalentes que somos em poder (enquanto indivíduos), nunca podemos nos assegurar de que não seremos atacados. Assim, devemos aumentar o nosso poder sobre os demais sempre que possível:
such augmentation of dominion over men being necessary to a man's conservation, it ought to be allowed him.
O que me interessa em especial neste post, porém, é um argumento similar que Hobbes desenvolve no capítulo seguinte, sobre contratos. Segundo esse argumento, não seria recomendado pela razão que fizéssemos primeiro a nossa parte em um contrato, na expectativa de que a outra parte também desempenhasse o que lhe cabe, a menos que houvesse um poder comum forte o bastante para obrigar esse desempenho.
If a covenant be made wherein neither of the parties perform presently, but trust one another, in the condition of mere nature (which is a condition of war of every man against every man) upon any reasonable suspicion, it is void: but if there be a common power set over them both, with right and force sufficient to compel performance, it is not void. For he that performeth first has no assurance the other will perform after, because the bonds of words are too weak to bridle men's ambition, avarice, anger, and other passions, without the fear of some coercive power; which in the condition of mere nature, where all men are equal, and judges of the justness of their own fears, cannot possibly be supposed. And therefore he which performeth first does but betray himself to his enemy, contrary to the right he can never abandon of defending his life and means of living.
Quero chamar sua atenção, em especial, para as últimas linhas, que refletem o caráter normativo ou prescritivo do ponto de Hobbes: na ausência do Leviatã, se um agente A beneficia outro agente B na expectativa de ser por ele também beneficiado, A trai seu próprio interesse, contraria um direito que ele não pode abandonar, a saber, o direito de defender a própria vida. Pelo que vejo, a justificativa para essa alegação é a falta de uma garantia de que B cumprirá sua parte. É claro que é possível que B cumpra sua parte. Mas, não havendo tal garantia, quando A cumpre primeiro a sua parte, ele arca com um custo para sua auto-conservação que bem pode não lhe render qualquer fruto. Daí que seja dito por Hobbes que, no estado de natureza, aquele que confia no outro trai a si mesmo.
Tendo sempre em vista que o fundamento de todas as nossas obrigações naturais, bem como o único fim de nossos atos voluntários é a auto-preservação, a prescrição da razão, no estado de natureza, é que não façamos contratos, mas sim ataquemos, sempre que tivermos uma oportunidade. Ora, como esse estado de coisas, por si mesmo, acaba contrariando nosso interesse de auto-preservação, devemos alterar essa lógica pelo único meio possível: a criação de um poder comum que puna o início de violência e obrigue o cumprimento de contratos.
Há vários pontos do argumento de Hobbes dos quais discordo. Por exemplo, Hobbes desconsidera por completo a possibilidade de que seres humanos sejam sujeitos autônomos dignos de respeito, a ponto de poder haver uma proibição moral de que sejam usados como simples meios no interesse de minha auto-preservação, ou de minha leitura do interesse deles próprios. Essa consideração poderia alterar toda a lógica que nos conduz aos braços do Leviatã, pois, por mais prudente que fosse a submissão a ele, supondo que seres humanos sejam moralmente invioláveis, eles não poderiam ser submetidos a um poder maior com base em um argumento prudencial.
Ademais, posso conceber um direito natural de auto-preservação, mas não uma obrigação. Por que eu teria o dever de viver? Por que eu não poderia escolher o estado de natureza simplesmente alegando que prefiro liberdade à segurança? Note que a pressuposição da busca por auto-preservação é o que fundamenta as prescrições racionais em Hobbes. Não vejo qual a justificativa da maior racionalidade da própria busca por segurança. Em vez disso, vejo apenas a afirmação dogmática de que tal fim seria natural.
Por fim, ainda que concedamos 1) que seres humanos não tenham valor moral e, portanto, possam ser submetidos a um Leviatã em nome de interesses de auto-preservação, e; 2) que a própria auto-preservação seja uma obrigação; ainda percebo algo que não fecha no argumento de Hobbes. Não é mesmo racional firmar um contrato na ausência do Leviatã? É claro que Hobbes tem razão quanto à possibilidade de que o outro não cumpra sua parte. Mas ele parece exagerar ao extremo essa probabilidade, minimizando demais as motivações egoístas para que alguém cumpra um contrato mesmo sem ter sanções legais a temer.
Posso mostrar como obtemos sucesso cotidiano fazendo cálculos diferentes dos cálculos prescritos por Hobbes. Hobbes não nos pediu para que atentássemos a exemplos do cotidiano dentro do Estado ao imaginarmos como seria o estado de natureza? Pois bem, ofereço dois exemplos banais e convido meu leitor a pensar em outros tantos a partir de sua própria experiência.
Em Fortaleza, queria comprar um shorts em uma feira de artesanato. Naturalmente, a feirante não dispunha de um provador. Como ela também não aceitava cartão e eu estava sem dinheiro, ela sugeriu que eu levasse o shorts para o hotel, provasse e voltasse depois com o shorts ou o dinheiro. Quando eu voltei com o dinheiro, ela me contou que sempre age assim, sendo que, vez ou outra, as pessoas levam muitas roupas e não aparecem mais. Ela simplesmente decidiu não tomar esses casos como regra e, com isso, segundo ela mesma, tem tido mais ganhos do que perdas. Por que ela estaria traindo a si mesma ao negociar assim?
Já hoje, ocorreu o inverso. Levei uma roupinha da Mel para trocar e o Pet Shop não tinha outra peça para pronta entrega. Deixei a roupinha lá, sem nenhum comprovante, e vou esperar que me liguem quando a roupinha chegar. Se não ligarem, não tenho como registrar nenhuma queixa contra a loja perante o Leviatã. Mesmo se tivesse, não compensaria o trabalho.
Bom, o que quero dizer com isso é que o cotidiano está repleto de exemplos de contratos que cumprimos mesmo sabendo que não há possibilidade de "enforcement". Em outras palavras, depois de nos beneficiarmos do contrato, nós ainda fazemos a nossa parte, conscientes de que não sofreríamos uma punição legal se não a fizéssemos. Ou, então, quando do outro lado, nós confiamos que o outro cumprirá sua parte depois de termos feito a nossa.
E nós não agimos assim, necessariamente, por sermos bons, embora escrúpulos morais e laços afetivos possam ter seu papel aqui. Nós agimos assim, por exemplo, porque queremos seguir firmando esse tipo de contrato. É do nosso interesse egoísta que contratos assim sejam realizados e, mais ainda, que confiem que vamos fazer nossa parte neles. Infelizmente, essa é uma possibilidade que Hobbes mal contempla. Nesta passagem, é que ele me parece chegar mais perto dela:
The force of words being (as I have formerly noted) too weak to hold men to the performance of their covenants, there are in man's nature but two imaginable helps to strengthen it. And those are either a fear of the consequence of breaking their word, or a glory or pride in appearing not to need to break it. This latter is a generosity too rarely found to be presumed on, especially in the pursuers of wealth, command, or sensual pleasure, which are the greatest part of mankind. The passion to be reckoned upon is fear.
Ora, eu não falava acima de um interesse em parecer não precisar quebrar pactos por orgulho. Eu falava do interesse pragmático de querer celebrar novos pactos no futuro. É esse interesse que parece ter escapado a Hobbes justamente no capítulo que ele dedica à lógica dos contratos. A sanção para aquele que não faz sua parte após ser beneficiado pelo outro é não mais poder buscar ajuda nesse outro ou naqueles que tiveram ciência do seu comportamento.
Pelas considerações acima, penso que Hobbes está simplesmente errado ao generalizar e tratar todo e qualquer contrato de confiança como contrário ao nosso interesse racional na ausência do Leviatã. No caso, a feirante de Fortaleza me parece mais sábia do que esse grande filósofo que legou um preconceito tão arraigado na filosofia política que o sucedeu. Talvez, os filósofos devessem seguir o conselho do próprio Hobbes e observar melhor o cotidiano. Veriam que trancamos nossos bens, sim, mas também selecionamos pessoas em quem confiamos, mesmo quando a espada do Leviatã não pode alcançá-las por nós.