domingo, 30 de junho de 2013

Sobre seu direito de se manifestar e meu direito de te ignorar


Desculpe a antipatia, mas, não, eu não desculpo o transtorno, moça! Para deixar claro desde o início, acredito no direito irrestrito à manifestação de ideias, sentimentos e afins. Para dizer a verdade, você pode estar certo de que eu defenderia manifestações públicas que você mesmo gostaria de ver proibidas. No entanto, como sempre em se tratando de direitos, é preciso esclarecer algumas confusões conceituais bem comuns. 

Por exemplo, o direito de ir e vir é um direito sobre o qual muitos de nós estaremos de acordo. Porém, dele não decorre logicamente um suposto direito a sermos transportados. Uma coisa é o direito negativo que podemos reivindicar para que ninguém obstrua nosso caminho, supondo que não estejamos, por exemplo, invadindo propriedade privada. Agora, certamente, esse direito de não termos nosso caminho bloqueado não equivale a um direito de sermos guiados ou transportados através de qualquer caminho por quem quer que seja. Isso é outra coisa! Este último é um direito positivo, que, a meu ver, é o tipo de direito a ser adquirido apenas por meio de contrato efetivo. Em suma, se você pagou para que alguém o transporte em uma carroça do ponto A ao ponto B, você tem o direito de requerer esse serviço por parte do contratado, que passa a ter esse dever diante de você. Antes de (ou sem) tal contrato, não existe tal direito, fato que em nada afeta o direito de ir e vir.

Explicado esse ponto, posso esclarecer minha posição quanto ao direito de manifestação. Para mim, qualquer um tem o direito negativo de manifestar a opinião que quiser a respeito de quem quer que seja, mas ninguém tem o direito de me obrigar a parar e prestar atenção em seu manifesto, porque esse seu direito negativo à livre manifestação não implica em um direito positivo de ser ouvido por alguém. Em outras palavras, ao me negar a atentar para seu manifesto, eu não o impeço de acontecer, assim como não o impeço de ir e vir se me recuso a transportá-lo, portanto, eu não lhe causo violência alguma, não violo qualquer direito seu. Você, sim, ao, por exemplo, bloquear meu caminho para que eu não possa passar por você indiferente ao seu manifesto, pratica uma violência contra mim. 

Agora, se manifestantes me coagem a parar em meu caminho, impedindo-me de ignorar sua manifestação, é dever do poder público me defender e remover esse obstáculo à minha passagem. Claro que você vai responder que seria absurdo que eu chamasse a polícia para te tirar do meu caminho com seu maniefesto, pois você está lutando também pela alienada aqui que, em caso de vitória sua, viverá, afinal, em um mundo melhor. Bom, guess what, eu não lhe dei nenhuma procuração para que você lutasse em meu nome. Eu simplesmente não reconheço seu direito de falar por mim! 

Ao fim e ao cabo, esse parece ser o problema de todo manifestante: a dificuldade de admitir que representam apenas a si mesmos. Acredite, se você bloqueia meu caminho, não se trata de você agindo por mim, trata-se de você agindo contra mim. Repito então que, como minha indiferença não representaria violência alguma contra você e seu manifesto (exceto pelos significados metafóricos de violência que vocês adoram e com os quais apenas tumultuam o debate), eu tenho o direito de exigir que você seja removido do meu caminho.

Taí, talvez, seja essa a única bandeira que eu carregaria em uma manifestação, afinal, é o único direito que eu realmente reconheço: o de que ninguém se ponha em meu caminho enquanto eu também não obstruir o de ninguém mais.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Por que o Neymar vale mais do que eu

Como eu não tenho nenhum problema em valer menos do que o Neymar (ou quem quer que seja), vou expor alguns argumentos, de um ponto de vista libertário kantiano (ou kantiano libertário, como queira), contra esse lugar comum de que haveria alguma injustiça no fato de nós, professores, não sermos tão bem remunerados quanto grandes jogadores de futebol.

A primeira questão que devemos abordar diz respeito àquilo em que consiste o valor de uma pessoa. Ora, como kantiana, só posso dizer que nosso valor como seres humanos reside na boa vontade, ou seja, na vontade moral, entendida como uma vontade que submete interesses egoístas a normas universalmente válidas. Não fôssemos dotados dessa capacidade moral, pelo simples fato de termos uma razão instrumental, isto é, uma razão capaz de calcular os meios para a realização de nossos fins egoístas, valeríamos tanto quanto um animal qualquer, que faça uso, por exemplo, de suas garras para defender seu lugar ao sol.

Por sinal, seguindo ainda o velho Kant, podemos dizer que, se não tivermos como guia a boa vontade, nada mais possui valor em nós. Nossas maiores competências e habilidades, desacompanhadas da boa vontade, perdem completamente qualquer valor que possam ter, podendo mesmo consistir em um mal, como o é a inteligência aguda do sociopata.

Agora, darei ainda um terceiro passo à sombra de Kant, alegando que a vontade moral não determina a escolha positiva de fins particulares que moldam a vida de um sujeito, oferecendo apenas um limite negativo a que tal escolha deve estar submetida. Concretamente, isso significa que não posso escolher tornar-me um assassino em série, visto que meus fins particulares seriam reprovados pelo teste de universalidade com o qual a vontade moral se compromete, porém, posso escolher ser um médico, um gari, um professor... um jogador de futebol. Em suma, para Kant, há uma imensa gama de vidas que podem ser vividas moralmente, portanto, que possuem o mesmo valor moral formal.

Dou mais um passo seguindo meu mestre: a efetivação da boa vontade no íntimo de cada um é um acontecimento insondável. Pense nos mais diversos exemplos de formas de vida e condutas externas plenamente compatíveis com os mandamentos de uma boa vontade. Seria impossível provar que uma ação externamente compatível com uma boa vontade tenha sido ainda oriunda de uma boa vontade. Não tenha em mente apenas o teatro moral que Glauco descreve na República de Platão, onde cada um de nós encenaria o papel da justiça apenas para não sofrermos nós mesmos as injustiças. Kant leva a hipótese da encenação para o interior de nossa própria alma. Quando acreditamos que agimos com uma boa vontade, nada prova que não estejamos nos auto-enganando, escondendo nossos interesses mais mesquinhos de nós mesmos sob a máscara de alguém de quem poderíamos nos orgulhar. Decorre, portanto, que é impossível afirmarmos que o ser humano x teria mais valor que o ser humano y.

Outra premissa que extraio de Kant: valor moral não é preço! É impossível quantificar o valor da boa vontade, simplesmente porque seu valor é absoluto. Logo, mesmo que houvesse um meio de nos certificarmos de que um dado ser humano age segundo uma boa vontade, nem por isso ele teria esse ou aquele preço.

Decorre de tudo que foi dito acima que devemos distinguir radicalmente o valor moral de uma pessoa do preço de sua força de trabalho. Simplesmente, uma coisa nada tem a ver com a outra! Mas, então, como determinamos o preço do trabalho de alguém?

Neste ponto, devemos deixar de lado o imperativo da moralidade e nos voltar para os imperativos de destreza e prudência. Os primeiros dizem que, dados fins arbitrários, devemos escolher os meios apropriados, por exemplo, se quero me tornar uma pessoa mais magra, devo fazer dieta e exercícios físicos. É aqui que posso acabar querendo consultar uma nutricionista e contratar um personal trainer. Note que você não precisa querer emagrecer. O comando apenas ajusta o meio ao fim que você escolher a seu gosto.

Já os segundos, os imperativos de prudência, não partem de um fim arbitrário, mas do fim natural de todo ser racional sensível: a felicidade. Ah, aqui, em especial, está Kant, de novo, jogando água em meu moinho libertário. Os imperativos de prudência são meros conselhos, jamais leis!, porque não se pode definir objetivamente a felicidade, e nem sequer o próprio sujeito pode estar certo do que o faria feliz. Para desespero de alguns, Kant afirma que nem mesmo o conhecimento pode ser uma garantia de felicidade. Ouch! Em outras palavras, felicidade, para Kant, é um conceito meramente subjetivo e contingente (varia de indivíduo para indivíduo, podendo variar até para um mesmo indivíduo), de tal forma que não se pode determinar objetivamente por quais meios seríamos felizes.

Assim, amigos, ao fim e ao cabo, quando se fala de valor enquanto preço, estamos diante de uma teoria subjetiva de acordo com a qual a força de trabalho de um homem me valerá como meio conforme (eu perceba que) sejam os meus fins. Talvez, eu seja de algum valor para quem queira estudar filosofia com auxílio profissional. Mas, certamente, não serei de valor algum a quem goste de se entreter com futebol. Na verdade, ainda que eu possa servir aos fins de quem queira ajuda para estudar filosofia, eu ainda posso ser preterida por outro professor. Por conseguinte, o preço da minha força de trabalho dependerá não apenas da existência contingente de indivíduos cujos fins requeiram meu tipo de destreza como meio, mas também da existência de outros indivíduos capazes de oferecer os mesmos meios.

Conclusão. Por que Neymar vale mais do que eu? 1) Porque mais gente se interessa por futebol do que por filosofia. 2) Porque pouca gente joga futebol como Neymar e muita gente ensina filosofia como eu. "Ah, mas as pessoas deveriam se interessar mais por filosofia e menos por futebol?" Ok, mas seja coerente! Vá em frente e abrace uma teoria objetiva da felicidade humana, ou me mostre que a vida moral só pode ser vivida de uma maneira. De minha parte, prefiro viver em um mundo onde ganho um salário muito menor do que o do Neymar a viver sob a égide do seu totalitarismo!

 

terça-feira, 18 de junho de 2013

A voz contraditória das ruas


Volto ao teclado, enquanto vocês voltam às ruas, porque fiquei intrigada com algumas postagens que li em uma página dedicada aos protestos em Londrina. O primeiro post que me chamou a atenção, felizmente, não havia sido premiado com nenhum "curtir" e estava caindo no esquecimento ao fim da página. Era de um esquerdopata raivoso, expulsando os "reaças" da "sua" marcha particular! Segundo esse hábil político, quem acordou só agora, ou seja, quem nunca participou de movimentos sociais, não pode se juntar a eles tão tardiamente em protesto algum. Engraçado, então, até agora, ele gritava para não ser ouvido, visto que não aceita adesões?

Bom, fazendo uma leitura caritativa da mensagem dele, pode-se dizer que seu temor é que os novatos tragam causas que não são as dele para a vitrine do protesto. No caso, ele se mostrava especificamente furioso com protestos contra a corrupção. Veja só, você que, até hoje, imaginava que fosse consensual a valoração da corrupção como um mal a ser combatido, saiba que os socialistas, aparentemente, não vêem qualquer problema com ela. Não gostar de corrupção, pasmem, é só um preconceito neoliberal!

Tá bom, vai, estou sendo maldosa de novo. Voltarei a ser caridosa. Não é que socialistas não enxerguem a corrupção como um mal. O fato é que eles sabem que a corrupção é um mal inerente ao Estado intervencionista onipotente, portanto, eles sabem que, concedendo a necessidade do combate à corrupção, entram na nossa agenda liberal de redução do Estado. Sacou?

Muito bem, deixando de lado nosso amigo vermelhinho de raiva dos reaças, quero comentar outro post. Este último foi escrito por um típico rapaz da classe média alta brasileira. Nada de radicalismo em sua mensagem, mas também nem uma única novidade. Qual era seu ponto? Talvez, ele até fosse o reaça que tanto incomodou o esquerdopata, afinal, ele estava preocupado com os poderes investigativos do Ministério Público, portanto, com o combate à corrupção.

Mas o que me chamou a atenção no discurso dele foi aquele velho clichê brasileiro: não há o menor problema com o tamanho da carga tributária brasileira, mas apenas com a destinação desses recursos. Ora, a utopia política brasileira, todos sabemos, é a falida social-democracia européia (aliás, xiiiii, falemos baixo, eles não sabem ainda que o Estado de Bem-Estar Social faliu e afundou a Europa, e não queremos perturbar a fantasia de um gigante que agora sonha acordado, não é mesmo?)

Agora, façamos um paralelo entre a utopia socialista do radical mal-educado e a utopia de classe média do bom moço. O que ambas têm em comum? Simples, ambos não querem cuidar da própria vida com o dinheiro que ganham. Eles preferem que o Estado confisque a renda deles - e você vai se lembrar que mesmo o moço de discurso moderado disse que o tamanho da carga tributária não importa, podendo, portanto, chegar a 100% - e adquira bens para eles em nome deles. Basicamente, você trabalha e, no fim do mês, em vez de pegar seu salário e decidir se poupa, compra roupas ou viaja, você entrega o dinheiro para o seu pai e deixa que ele decida o que fazer por você com seu dinheiro.

Ah, você vai dizer que, de novo, estou sendo maldosa, pois estou omitindo a ideia de que, na verdade, todos nós juntaremos nossa renda e decidiremos juntos como gastar o total. Olha que bonito isso, gente! Só que, deixando de lado qualquer questão sobre a justiça de obrigarmos alguém a participar da nossa cooperativa, ainda temos um probleminha. E quando houver divergências sobre o uso dos recursos? Você há de admitir que um corinthiano roxo bem poderia optar pela construção do seu Itaquerão, em vez da construção de um pronto-socorro, não é mesmo? Como vamos resolver o conflito se você, por sua vez, quiser o pronto-socorro? Ou melhor, quem vai resolver: o comitê central do partido ou a simples maioria da população? Acho que você dirá "a maioria" (eu sei que a democracia é seu dogma favorito). Agora, e se fizermos um plebiscito e a maioria decidir que topa, sim, os gastos com a Copa? Pense bem, o Brasil tem mais de 150 milhões de habitantes e muitos deles nem têm Facebook. Talvez, muitos ainda ouçam o futebol no radinho de pilha! Talvez, eles tenham valores bem diferentes dos seus, viu? Ou, ao menos em tese, eles podem ter (e isso basta para meu ponto - ha ha).

Olha, agora, eu já tenho tudo que eu queria para minha conclusão: quem quer mais Estado (não menos!), quem não se importa com o tamanho da carga tributária, necessariamente, delega a outros o direito de decidir o que fazer com seu próprio dinheiro, no máximo, ficando com o direito a um votinho em meio a dezenas de milhões. Então, amiguinho, se você pensa assim, não venha chorar depois se o seu dinheiro não for gasto com aquilo em que você o gastaria. Aquele que abre mão da condição incondicionada de todos os direitos, a própria liberdade, perde com ela todos os demais direitos! Portanto, ao fim e ao cabo, só liberais/libertários conservam o direito de protestar com coerência. O resto, que se entregou à tutela do Estado, que vá chorar na cama que é lugar quente, eu é que não me comoverei com seus protestos!

segunda-feira, 17 de junho de 2013

A voz confusa das ruas

Histórica a imagem recente de manifestantes sobre o Congresso Nacional. Confesso que me emocionei com o cartaz que dizia que "o gigante acordou". Confesso ainda que meus sentimentos são conflitantes neste momento. Por um lado, sempre esperei por mais indignação política por parte de meus conterrâneos. Por outro lado, quando essa indignação se traduz em reivindicações palpáveis, vejo que a minha pauta seria muito diferente, até mesmo oposta a de muitos deles. A bem da verdade, é claro, mesmo entre eles, não se vê uma pauta unificada. O que parece é que, quanto mais distante o fim, maior o acordo. Por exemplo, todos eles querem mais qualidade nos serviços públicos. É nesse ponto que quero me deter nestas breves notas.

Eu, como libertária, não quero melhores serviços públicos. Quero, sim, seu fim! Por isso, minha agenda jamais será a deles. Todavia, eu penso que uma carga tributária de quase 40% do PIB - que já considero como um mal por si só, independentemente de qual for a destinação dos recursos - torna-se especialmente inaceitável quando esse dinheiro se perde nas engrenagens da própria máquina pública, seja por incompetência administrativa ou pura e simples corrupção. E é aqui que eu poderia me unir aos manifestantes e quem sabe até esperar uma verdadeira mudança neste país se o movimento persistir.

Pense comigo. O governo federal já ordenou que a Casa da Moeda ligasse suas impressoras a todo vapor para arcar com os gastos com a Copa do Mundo. O manifestante, em geral, não sabe, mas o governo, sim, sabe que essa "receita" artificial gera inflação (é sua própria definição!), e sabe melhor ainda que mais inflação gerará ainda mais insatisfação popular. Portanto, nem mesmo Dilma e Mantega me pareceriam estúpidos a ponto de simplesmente mandarem que se imprima ainda mais dinheiro, desta vez, para a educação, por exemplo, para que os ânimos dos manifestantes sejam apaziguados. Por outro lado, o crescimento da nossa economia, certamente, é outro fator que preocupa muito o governo, portanto, também sabem que não é viável que simplesmente se eleve ainda mais os impostos. Bem pelo contrário, impostos estão sendo cortados para o mascararemos dos índices de inflação. Ora, meu amigo leitor, o que você faria então se estivesse no Palácio do Planalto, não como manifestante, mas como gestor?

Eu não vejo outro caminho se não o corte de gastos supérfluos para que essa verba possa ser direcionada para a melhoria de serviços públicos, bem como combate à corrupção e choques de gestão. Muito bem, no meu surto de otimismo, o governo será inteligente e competente a ponto de conduzir urgentemente as reformas necessárias à promoção da maior eficiência da máquina pública. Já nos meus piores pesadelos, o governo mantém as impressoras ligadas e segue gastando desordenadamente, sobretudo, na tentativa de manter e ampliar a cooptação das camadas mais populares frente ao que parece ser um levante de classe média, mais localizado no Distrito Federal e nos grandes centros urbanos do Sul e do Sudeste. Aguardemos as cenas dos próximos capítulos, se é que haverá algum...

 

domingo, 2 de junho de 2013

Por um libertarianismo sem meritocracia

Muitos libertários defendem a meritocracia como um dos pilares da doutrina. Alguns, mais ingênuos e arrogantes, chegam a acreditar que, na sociedade atual, a riqueza já seria dividida conforme o mérito: "eu passei em medicina na USP por mérito", diz o rapaz que sempre estudou nas melhores escolas para outro que nasceu de pais analfabetos. Os mais sensatos, porém, defendem apenas que, em uma sociedade verdadeiramente libertária, ou seja, em uma sociedade livre de intervenções políticas na economia, o resultado da competição de mercado seria justo, pois os vencedores sempre teriam mérito para tanto. Neste post, eu quero atacar a segunda parte dessa tese: o vínculo entre justiça e mérito. Argumento que "mérito" é um conceito que deve ser relegado ao discurso ético, sendo banido da esfera do direito. Em suma, defendo que a justiça libertária não é e, acima de tudo, não precisa ser um sistema meritocrático.

Na verdade, não vejo grandes dificuldades em defender meu ponto, afinal, mérito, por definição, deve ser algo que se conquista. Ninguém tem o mérito de pertencer a uma determinada raça, nascer em uma determinada nação, etc. Agora, também deve ser notado então que, embora alguém possa ter o mérito por ter cultivado um determinado talento, ninguém tem o mérito de nascer com um determinado dom a ser cultivado. Indo ainda além, sequer podemos saber ao final do processo o quanto do resultado do exercício de um talento se deve ao dom puro e simples, e o quanto se deve ao aperfeiçoamento desse dom por meio do trabalho. Por exemplo, o quanto do sucesso de um Romário se deve ao seu dom para o futebol e o quanto se deve ao seu treinamento árduo jogando futevolêi nas praias do Rio de Janeiro? Nunca poderemos precisar! Seja lá como for, o fato é que: 1) Romário deu a sorte de ter nascido com um talento valorizado pela sociedade de sua época; 2) alguém nascido sem vestígios de seu talento poderia treinar 100 vezes mais do que ele sem obter 10% de seus resultados.

Agora, talvez, alguém queira me dizer que o sujeito sem o talento do Romário, em vez de desperdiçar seu tempo treinando futebol, deveria ter cultivado seu próprio talento. Então, eu responderia, primeiro, que saber reconhecer o próprio talento e investir nele já é algo que pode muito bem exigir sua dose de talento. Afinal, tantos jovens estão aí, fazendo testes vocacionais, começando e parando cursos universitários, e isso de uma tal forma que nem me parece cabível que digamos que eles não se esforçam o bastante para descobrirem o seu dom. Em segundo lugar, posso ainda perguntar por que seria impossível acreditarmos que alguns seres humanos simplesmente nascem sem qualquer dom especialmente valorizado por sua época. Na verdade, parece-me fácil reconhecer que muitos seres humanos (a maioria?) nada têm de especial sob aspecto algum.

Mas mesmo que acreditemos na teoria edificante segundo a qual todo ser humano é um geniozinho em potencial (reprimido pelo sistema?), ainda sabemos dos casos de exceção e eles bastam para o meu ponto. Não há nada de extravagante em minha suposição de que ao menos alguns seres humanos possam nascer dotados de uma inteligência muito abaixo da média, desprovidos das características reconhecidas pelo padrão de beleza de sua sociedade, portando deficiências físicas severas, e assim por diante. Se compararmos esse individuozinho castigado pela natureza a outro que tenha nascido provido de beleza, talento, inteligência, charme, etc., supondo que cada um se empenhe da mesma maneira, parece razoável supor que, ao final da vida de cada um em um mundo libertário, o segundo terá obtido muito mais sucesso.

Eu até poderia parar por aqui, mas ainda quero acrescentar que, em um mundo libertário, naturalmente, haveria heranças, de modo que, somadas às diferenças naturais, ainda haveria diferenças sociais cumulativas que tornariam impossível averiguar o quanto da diferença de sucesso entre as pessoas se deveria verdadeiramente ao mérito. Por todas essas razões elencadas, eu proponho que reservemos o discurso sobre o mérito para nossas considerações éticas, cientes de que a precisão no tocante a elas só pode ser alcançada por um juiz tal qual o Deus cristão, não por nós. Só Deus sabe, por exemplo, a medida de esforço que cada um precisa fazer para se levantar da cama pela manhã.

Agora, eu quero concluir esse texto mostrando que nada do que eu disse acima afeta a minha concepção de libertarianismo. Para a justiça libertária, não importa se não tenho mérito por meus dons naturais ou por minha herança, portanto, não preciso propor nenhum sistema para promoção da igualdade de oportunidades. O ponto é muito simples: se não adquiri meus bens por meio de fraude e violência, é justo que eu os possua, mesmo que eu não tenha feito por merecê-los. Agora, vejamos, no que diz respeito a meus dons naturais, eles são meus de forma inata, ou seja, nem sequer houve o ato de aquisição que sempre poderia ser questionado. É por isso, por exemplo, que, em sua doutrina do direito privado, Kant se dá ao trabalho de defender apenas o meu e o teu exterior. Aquilo que é interiormente meu nem sequer é objeto de problematização filosófica*.

Já no que diz respeito à herança, ela decorre naturalmente do conceito de propriedade. Se eu tenho a legítima propriedade de um bem, eu devo ter o direito de destiná-lo a quem eu bem entender. Se acabarmos com o conceito de herança, por conseguinte, acabamos com o próprio conceito de propriedade, visto que impedimos o proprietário de fazer uso de seus bens como ele queira, de modo que esses bens não podem mais ser considerados propriamente dele. Em outras palavras, o direito não é à herança, porque ninguém deve ter o direito àquilo que é de outro, a menos que esse outro tenha concedido esse direito por contrato. O direito é, sim, do proprietário e trata-se de um direito de decidir o destino de seus bens.

Concluo então o seguinte: se eu estou certa em minhas considerações sobre o caráter absoluto dos bens internos e sobre o direito de transferência de bens externos por parte do proprietário, o libertarianismo não precisa de compromisso algum com a meritocracia para explicar a legitimidade das desigualdades.

---

*Nota para os kantianos: Na linguagem kantiana, a violação do que é interiormente meu é analiticamente reprovada pelo princípio do direito, ao passo que a violação do que é externamente meu é sinteticamente reprovada pelo direito, ainda que a priori. Enfim, se você não é kantiano, esqueça este detalhe técnico que não posso explicar aqui.