domingo, 30 de setembro de 2012

De onde vem o dinheiro? Ou por que "Big States" são reféns de banqueiros




Via de regra, interessa-me a questão moral subjacente à defesa de "Big States", entendidos aqui como Estados intervencionistas, que procuram tanto prover cidadãos com benefícios sociais quanto estimular o crescimento econômico por meio de gastos públicos. Por questão moral, aliás, entendo a questão normativa relativa ao direito ou mesmo ao suposto dever do Estado de praticar tais intervenções. Diferentemente, porém, neste post, quero refletir sobre a exequibilidade de um tal Estado.

Sobretudo no cenário do Velho Continente, temos assistido a um confronto entre duas posições básicas: uma delas sustenta que benefícios não sejam cortados, até por se constituírem, assim alegam, em direitos, e também que o Estado, em vez de cortar gastos, estimule a economia com investimentos que possam gerar novos empregos; a outra posição, naturalmente, é aquela que se coloca em defesa da austeridade, o que implica não apenas em cortes de benefícios mas na contenção de gastos públicos em geral. Como todos sabem, Angela Merkel, a chanceler alemã, vem sendo apresentada como a grande defensora da última posição. Obviamente, Merkel ainda é descrita por seus críticos como um fantoche dos grandes órgãos do sistema financeiro. Como dizem as cartilhas dos CAs dos centros de humanidades, o FMI, o Banco Mundial (poderíamos acrescentar, no caso, o Banco Central Europeu) seriam os grandes culpados por todas as privações enfrentadas pelos povos, porque sempre fariam a imposição dessa tal "austeridade". Mas aqui eu pergunto: por que os Estados se tornam reféns de instituições financeiras?

A resposta parece simples: porque eles possuem débitos. O credor, afinal, dita as regras do jogo. Agora, por que os Estados chegam a essa condição de devedores, em que instituições podem lhes ditar cortes de toda ordem em gastos públicos, dentre outras medidas que julgarem cabíveis para que eles sejam solventes? Ora, parece-me que a resposta também seja simples: porque eles gastam demais. E eles gastam demais, exatamente porque vão além do Estado mínimo, assumindo para si deveres sociais e de fomento econômico. Agora, será que haveria alguma maneira de rompermos o círculo em que "Big States" devem abraçar uma austeridade ditada a partir de fora graças às pretensões não-austeras assumidas por eles a partir de dentro? Um Estado investidor poderia escapar ao destino de Estado devedor? Vejamos.

Quanta riqueza produz um Estado? Resposta: zero. O Estado não é produtor, como podemos afirmar trivialmente. Poderia então o Estado, como detentor da Casa da Moeda, imprimir moeda sem lastro para efetuar os investimentos por ele desejados? Ora, é claro que, por mais que se lance mão desse estratagema na realidade, menciono a hipótese apenas para descartá-la sem maiores considerações, pois quem em sã consciência a defenderia como uma estratégia viável? Resta então ao Estado o caminho natural da tributação: o peso dos tributos sobre a sociedade será sempre proporcional ao investimento desejado pelo Estado.

Com isso, chega o momento de uma nova pergunta: faz sentido, tanto do ponto de vista do bem-estar social quanto do ponto de vista do crescimento econômico, recolher na forma de impostos recursos que seriam usados para investimentos privados no setor produtivo, consequentemente, gerando empregos diretos ou indiretos pela movimentação da economia? Claro que a pergunta é apenas retórica! É por isso que, no Novo Mundo, há quem defenda (e, de fato, acontece) a isenção de impostos para os chamados "Job Creators". Resta então que o Estado, a menos que queira asfixiar a economia gerando resultados opostos aos pretendidos, volte-se aos empréstimos? Olá, FMI, Banco Mundial, Banco Central Europeu!? Ok, não tão rápido! Meus amigos intervencionistas parecem ter algo mais em vista. Vamos lá.

E se o Estado taxasse as tais "grandes fortunas" justamente quando elas não geram riquezas, ou seja, não se convertem, ao menos diretamente, em investimentos no setor produtivo? A ideia parece sedutora. Haveria lá um sujeito com o cofre do tio Patinhas que ele utilizaria, senão para se banhar em moedas, apenas para especular no mercado financeiro mundial, como quem brinca em um grande cassino. Ora, se essa riqueza não produz propriamente mais riqueza, ao não se converter em investimentos no setor produtivo, mas apenas torna ainda mais rico o seu próprio detentor, aqui estaria a fonte ideal de recursos para o "Big State". O Leviatã arromba o cofre do tio Patinhas e acaba com a festa para empregar aqueles recursos em seus propósitos, digamos, mais edificantes. Fácil assim?

Muito bem. Acontece que esse capital é volátil. Se um país pretende taxá-lo, ele simplesmente se muda para outro lugar. É como acontece com as fortunas pessoais de milionários. Elas simplesmente migram para paraísos fiscais. Se uma fábrica pode se mudar para uma cidade, estado ou país que lhe imponha menos taxas, uma fortuna pessoal também pode. Michael Schumacher, só para citar um exemplo banal que me ocorre agora, residia fora da Alemanha para pagar menos impostos. Agora, como reagir a essas circunstâncias? Os países ricos vão criar vistos de saída, como existem em Cuba, por exemplo, para evitar que seus milionários migrem? Um governo mundial vai impedir um país de taxar menos que outro para que ele não seja atrativo aos milionários? Ou seja, a Alemanha vai simplesmente proibir o Schumacher de se mudar do país ou os organismos internacionais vão impedir a Áustria, onde ele mora ou ao menos morava, de instituir impostos menores do que os da Alemanha? Preciso dizer que todas essas perguntas são retóricas? E se todos soubéssemos da impossibilidade de gozarmos de grandes fortunas seja lá onde fossemos sobre a Terra, alguém ainda acumularia grandes fortunas? O tio Patinhas iria encher o cofre apenas para ver o Leviatã esvaziá-lo?

O que me parece, ao fim e ao cabo, é que os Estados, de fato, não podem evitar o recurso ao sistema financeiro quando pretendem ser algo mais do que um "night watcher" para seus cidadãos. Em um Estado ultra-mínimo, por outro lado, até os presídios podem ser privatizados. Só o sistema judiciário e as forças policiais/militares ficam a cargo do Estado. Além disso, considerando que apenas se reconheça como crime requerendo ação estatal a fraude e a violência contra seres humanos que sejam cidadãos do próprio Estado, mesmo essas forças têm um escopo mais limitado do que podem vir a ter em um "Big State". Esse Estado ultra-mínimo não quer, por exemplo, ser a polícia do mundo. Pelo contrário, só quer que seus cidadãos possam estabelecer relações comerciais com cidadãos de quaisquer outras partes do mundo. Portanto, ele não vai enterrar bilhões de dólares em recursos públicos em nenhum Iraque ou Afeganistão, por exemplo. Consequentemente, esse Estado não precisa comemorar recordes de arrecadação. Na verdade, há mesmo quem defenda que ele poderia ser financiado sem impostos, mediante, por exemplo, a instituição de loterias públicas, como as da Caixa Econômica Federal no Brasil. Seja lá como for, esse Estado, certamente, seria um Estado que nunca precisaria berrar: "Fora, FMI!" Seria, em suma, o único Estado verdadeiramente soberano, um Estado cujos cidadãos seriam verdadeiramente livres.



segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Rotular para entender ou para confundir?


Se te acusam de ter "rotulado" alguém, deveriam querer dizer apenas que você reduziu a pessoa a uma definição que não expressa adequadamente o que ela representa. No entanto, quem reprova os tais "rótulos", via de regra, reclama da própria ação de categorizar, que não trataria o outro como indivíduo. Ora, e como pensar sem rotular no sentido de aplicar conceitos? Se nós fossemos tratar os indivíduos meramente como indivíduos, sem tipificá-los de alguma maneira, então nós teríamos que nos limitar a apontar para eles, usando indexicais como "aquele lá". Se você disser que "aquele lá" é seu amigo, pronto, você já o rotulou, meu bem. Então, deixemos de bobagens, amiguinhos: todos rotulamos a todos o tempo todo, porque aplicar conceitos é uma necessidade do nosso pensamento.

Agora, e esses rótulos políticos que vimos usando? Será que são devidamente esclarecedores ao pensamento? "Direita" e "esquerda" parecem ter se tornado rótulos inúteis, visto que não se encontra uma característica comum a todos aqueles que os esquerdistas rotulam de direitistas, exceto pelo próprio fato da oposição à esquerda, que bem pode se dar a partir de princípios que também sejam opostos entre si. Por exemplo, o nazismo costuma ser classificado na extrema direita, porém, trata-se de uma forma de coletivismo, e não de uma filosofia do individualismo, como é o liberalismo clássico. Portanto, liberais e nazistas se opõem ao socialismo marxista, mas também se opõem entre si.

Pela razão apontada acima ou por alguma outra, a terminologia "esquerda x direita" começa a cair do uso nos meios mais cultos (ou mais pretensiosos). Agora, fala-se mais em progressistas versus conservadores, o que me parece ser uma transposição da distinção vigente no cenário político norte-americano entre liberais e conservadores. Mas o que é, afinal, ser um progressista? É ser alguém que defende o abandono de velhos valores e a implementação de novas políticas? Bom, então, são progressistas os que defendem, por exemplo, a flexibilização das leis trabalhistas em nome dos novos tempos e conservadores os que pensam que nelas estão contidos direitos que devem ser preservados apesar das mudanças econômicas mundiais, correto?

Pois é, parece que não é bem assim que esses rótulos funcionam. Na verdade, parece que eles não funcionam, não é mesmo? Nos EUA, eles fazem algum sentido, porque, lá, se trata de conservar ou de ser transigente com uma certa interpretação das leis fundamentais que deram origem à federação norte-americana. Os conservadores acusam os liberais de violarem a constituição. Não é à toa que os partidários de Ron Paul bradavam: "Paul revolution, back to constitution". Quer dizer, para os conservadores de lá, é preciso simplesmente aplicar a constituição, que já conteria a previsão de um Estado mínimo preservando as liberdades individuais. Assim, curiosamente, os mais conservadores (os que consideram a si mesmos os verdadeiros conservadores) são liberais no sentido de serem eles os defensores da liberdade individual em todos os seus aspectos. Os ditos liberais, por sua vez, são os que transigem relativamente ao espírito da letra daquelas leis americanas fundamentais. Lá, são então os liberais que, pasmem, restringem a liberdade econômica, que é uma forma de liberdade individual.

Mas, veja, o que importa é que, seja você liberal ou conservador com relação a ela, existe uma velha América, boa ou má, a ser conservada ou transformada. Existe uma identidade nacional, um conjunto de princípios que define o país. E quanto ao Brasil? Ser conservador, no Brasil, com algum sentido, no máximo, pode significar ser um conservador dos valores cristãos, um sentido que também se vê nos EUA, é claro. Mas então é isto: aqui, os progressistas são os socialistas e os conservadores são os cristãos? E eu, que acho que socialismo é apenas cristianismo laico, sou o quê?

Note, o problema não são os rótulos. O problema é que está difícil entender o mundo mesmo. Talvez, porque estejamos mais preocupados em transformá-lo à nossa maneira, do que em interpretá-lo corretamente. São muitos marxistas para poucos analíticos...

domingo, 23 de setembro de 2012

Filósofos com certezas demais

Quando adolescente, busquei a filosofia por viver atormentada por dúvidas. Na minha primeira aula do curso de graduação em filosofia, fui logo perguntando pelos fundamentos racionais dos deveres éticos. Quase três anos depois, eu publicava meu primeiro artigo, sobre os problemas inerentes a tentativas de fundamentação última de sistemas de valores.

Àquela época, eu ainda via o cético como o adversário a ser vencido. Era preciso provar que, ao menos em princípio, sempre haveria boas razões para adotarmos uma posição em vez de outra. Eu temia o cético, porque, se todas as posições fossem equivalentes, tudo seria permitido, incluindo as maiores atrocidades.

Então, eu cresci. Em pouco tempo, olhando ao meu redor, eu fiquei perplexa ao ver que outros conseguiam trilhar os caminhos da filosofia tão cheios de certezas. Mais do que isso, eu vi como eles criticam o mundo com base em suas certezas, em vez de criticarem essas próprias certezas. Eu percebi, enfim, que o ceticismo caiu de moda. Nem é que achem que responderam ao cético. É algo muito pior. Eles acham que o cético não precisa de resposta por ser mesmo impossível respondê-lo.

Qual o meu lugar neste mundo? Para o meu espanto, eu percebi que não está reservado a mim o papel de combatente do cético. Eu me tornei a cética. Descobri que não é o ceticismo que leva a atrocidades, mas sim o seu oposto. É preciso, então, que ainda haja quem faça as perguntas para abalar as certezas, antes que elas nos sejam simplesmente impostas à força. A filosofia que sempre viveu dentro de mim, no final das contas, é muito mais Sócrates e muito menos Platão, muito mais filosofia e muito menos religião.

Kirchner e a "democratização" dos meios de comunicação


Kirchner quer (e, pelo visto, vai) limitar o número de licenças concedidas para um mesmo grupo empresarial de mídia para diminuir o poder do Clarin, seu opositor. Seus partidários tratam a "Lei dos Meios" como "democratização" dos meios de comunicação e instituição da "liberdade de expressão" naquele país. Eu, que não confundo democracia popular com regime de liberdade, pergunto: desde quando limitar os meios de livre expressão amplia a liberdade de expressão de alguém? Acaso, atualmente, seria o Clarin a impedir alguém de falar o que pensa na Argentina? Seria o Clarin a verdadeira ameaça à liberdade de expressão na Argentina?

Ora, só o governo tem o poder de limitar a liberdade de expressão de alguém. Ele exerce esse poder justamente quando faz com que quem quer que seja tenha que pedir licença ao todo poderoso Estado para oferecer ao público uma rede de TV ou uma emissora de rádio, por exemplo. Querem mesmo mais liberdade de expressão? Acabem com a necessidade de licenças, de concessões públicas, etc. Tirem as mãos dos governos da mídia!

Ao menos, é o que penso, por mais que muitos preferissem que eu não expressasse ;)

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Direito de ofender 02: a missão


Já escrevi neste blog em defesa da liberdade irrestrita de expressão e não mudei de opinião. Observem a imagem acima. Agora, eu os convido a compararem os danos potenciais provocados pelo ato de atirar uma pedra, como a que o jovem fanático tem em mãos, aos danos provocados pelos autores do vídeo que desencadeou os mesmos protestos. Onde estão, afinal, os danos sofridos pelos seguidores de Maomé?

sábado, 1 de setembro de 2012

Por que debater? Com quem debater?


Acho que o que mais mudou em mim com a passagem para a idade adulta, ou com o envelhecimento, se quisermos evitar eufemismos, foi a perda do ímpeto para o debate. Quando eu era adolescente, a minha diversão favorita era polemizar um tema qualquer com quem quer que fosse. Meus professores sofriam! Hoje em dia, para espanto de quem me conheceu naquela época, eu nem sequer divulgo este humilde blog no meu Facebook para evitar entrar em polêmicas gratuitas. Claro, o próprio blog tem um espaço para comentários, mas, felizmente, ele não atrai exibicionistas e patrulheiros como o Facebook.

Eu fico então me perguntando o que mudou daquela Andrea adolescente, que discutia tudo com todos, para esta Andrea adulta (ou velha), que quer discutir tão pouco com tão poucos. Acima de tudo, eu percebo que não existe mais em mim uma preocupação acentuada com a opinião alheia. Não é só o fato de eu ter entendido que o debate, apenas raramente, tem o poder de mudar o que o outro pensa. É, acima de tudo, o fato de eu não ter mais a mínima vontade de mudar o que o outro pensa. Aliás, deve ser por isso que muitos acusam os libertários de irracionalistas ou subjetivistas. Não me parece próprio de um libertário fazer proselitismo e buscar a uniformização dos pontos de vista. De fato, quanto mais eu envelheço, mais libertária me torno e, na mesma medida, menos me importa o que vai pela cabeça do outro, desde que (e aqui está uma imensa restrição) ele me permita viver em paz e externar em paz minhas próprias opiniões diferentes das dele. Em suma, eu não sinto mais aquela necessidade de fazer com que o outro admita estar errado, e muito menos de fazê-lo diante de alguma plateia.

Todavia, por outro lado, é claro que, para além do confronto de egos e mesmo de alguma crença edificante na possibilidade de transformação política por meio do debate, o confronto de ideias tem uma função inerente à produção do conhecimento. Isso, se não nos tornarmos completos relativistas, posição que não me parece decorrer do "live and let live" libertário. Quer dizer, se existe validade objetiva, como validade universal para todos, ainda que não nos importe que o outro viva enganado, contanto que seu engano não seja imposto a nós pela força, nós ainda procuraremos o debate como um meio de testarmos nossas posições, para vermos se, afinal, não somos nós os enganados. O problema é que, com o tempo, você percebe que não é qualquer um que pode ser seu interlocutor em um debate no qual você procura testar a validade de suas posições.

Primeiramente, seu interlocutor tem que ser alguém que ao menos saiba aparentar um sincero interesse pela validade das teses em jogo, admitindo a possibilidade de sua própria falibilidade a respeito delas, e, portanto, estando aberto à perspectiva do outro. Esse alguém estará disposto a se engajar com você pela solução de um problema, em vez de simplesmente estar inclinado a lutar contra suas teses. Lembro-me de uma vez em que uma colega, a quem muito respeito, se desculpou por ser muito enfática na defesa de suas posições, dizendo que, na verdade, ela estava tentando convencer a si própria, e não a mim, por não estar tão certa do que estava dizendo. Gosto dela até hoje por conta dessa declaração. Sempre cito também o exemplo de outra colega, por quem nutro o mesmo respeito, que, certa vez, ao final de um debate muito caloroso, nem se lembrava mais de qual tinha sido sua posição inicial. Em suma, como essa colega, temos que nos desapegar do conteúdo de nossas teses e nos apegarmos apenas à verdade. Veja bem, "verdade", aquela ideia regulativa, digamos assim, que orienta todo debate sem ser propriedade de nenhum dos debatedores. Afinal, por que debateríamos se houvesse apenas o ponto de vista privado de cada um?

Agora, em segundo lugar, preciso notar que boa vontade não basta. Por mais que a pessoa esteja aberta a ouvir seus argumentos para considerar honestamente a validade deles, e não apenas para encontrar a melhor estratégia retórica para neutralizá-los, vocês já devem ter notado que, muitas vezes, um entendimento parece simplesmente impossível. Aqui, entra em cena um aspecto essencial de qualquer debate: o ponto de partida ou os valores fundamentais, assim por dizer, adotados por cada debatedor. Não adianta debater com uma pessoa incapaz de perceber, reflexivamente, em que se fundamentam as suas próprias teses. Para ser sincera, eu tenho me cansado de debates, notadamente, por este motivo. Estou um tanto farta de ter que explicar para a própria pessoa o que está pressuposto no discurso dela e, acima de tudo, estou muito farta de gente incapaz de perceber que todo discurso parte de certos pressupostos que não podem ser, de antemão, tomados como verdades absolutas.

O que quero dizer com isso é que o seu argumento pode ser muito bom e pode parecer extremamente natural, mas isso, sempre, do seu ponto de vista ou a partir de teses mais elementares que precisam ser acolhidas. Em 99% dos debates sobre política que presencio, ridiculariza-se a posição do adversário com base em premissas questionáveis que nunca chegam, de fato, a serem questionadas, sendo que, se o fossem, meu amigo, dariam o maior trabalho do mundo para serem provadas ("como se prova um primeiro princípio?", eis uma pergunta com a idade da filosofia).

Em suma, no mais das vezes, o seu argumento pressupõe toda uma carga de valores que não é compartilhada pelo seu interlocutor, mas você nem sequer se dá conta disso, porque você nem sequer parou para analisar quais são os princípios do seu próprio discurso e, muito menos, quais são aqueles que orientam o discurso do seu oponente. Na grande maioria das vezes, jamais haverá um acordo em um debate, simplesmente porque jamais haverá um acordo sobre esses pressupostos mais gerais e fundamentais.

Mas o que fazer então? Não estaríamos fadados ao relativismo, já que, no contexto que descrevo, cujo conhecimento deveria ser trivial para filósofos, cada um teria o direito de se ater aos seus princípios últimos, julgando a partir deles e, consequentemente, discordando de juízos feitos a partir de outros princípios?  Bom, são duas coisas distintas. Primeiro, é muito válido, eu diria até fundamental, debatermos com quem parte dos mesmos princípios que nós. Um dia, em um desses congressos, um "inimigo infiltrado" (brincadeirinha, gosto dele) acusou kantianos de só ficarem "acertando o reloginho". Ele quis dizer que debatemos entre nós para vermos quem é mais kantiano, ou seja, quem defende as posições que representariam com mais consistência o kantismo. Pois muito bem, fazemos muito disso mesmo. Mas é bom que se faça, porque não é nada trivial que saibamos o que de fato decorre dos princípios que aceitamos como fundamentais. A coerência interna é um dever de todo ser pensante... hmm tá bom, de todos aqueles que aceitam a validade do princípio de não-contradição... e é muito mais difícil de ser obtida do que parece. Em segundo lugar, mesmo que não possamos provar a validade de primeiros princípios exatamente por serem primeiros princípios, ao debatermos com quem não compartilha dos mesmos princípios com relação a nós, temos a melhor ocasião de fazer essa descoberta relativa a tais princípios. Eventualmente, podemos mesmo encontrar algum modo de defendê-los. Eu, por exemplo, considero o libertarianismo superior a outras doutrinas políticas, porque ele é capaz de tolerar que as pessoas se organizem politicamente como bem entenderem, até mesmo em comunas, desde que seja por adesão voluntária. O oposto não se aplica: libertários temos sempre que ser obrigados a seguir sistemas alheios.

Enfim, posso sintetizar o que venho dizendo em poucas palavras: é muito bom discutir, mas apenas com gente: 1) tolerante a ponto de realmente dar ouvidos aos outros; e 2) inteligente a ponto de 2 a) saber reconhecer seus próprios princípios e 2 b) saber admitir que eles não precisam, necessariamente, ser princípios aceitos pelo outro. Como está cada vez mais difícil encontrar gente que reuna esses atributos, mesmo na academia, discuto cada vez menos.