quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

A filosofia do Ad Hominem


A falácia Ad Hominem é bem conhecida em qualquer círculo razoavelmente culto. Grosso modo, trata-se de uma tentativa de invalidar um argumento através do ataque à pessoa de seu proponente. Ora, como a validade de um argumento, classicamente, não depende nem sequer da verdade de suas premissas, mas apenas da correção formal de acordo com a qual a suposta verdade das premissas seria transmitida para a conclusão, o erro é claro: uma vez que o proponente é um elemento completamente externo ao argumento, a sua pessoa é um fator completamente indiferente para a validade do argumento. Em suma, um ataque Ad Hominem equivaleria ao erro de assumirmos o pressuposto de que 04 será ou não o resultado da soma de 02 e 02, conforme a soma seja realizada por José ou por João.

Suponha, por exemplo, que José e João estejam disputando sobre uma diferença no caixa da padaria onde ambos trabalham. João, um desafeto confesso, acusa José de ter roubado dinheiro do caixa. Assim, José deseja que a soma dos valores que se encontram no caixa seja igual a "x", enquanto João deseja que a soma seja igual a "x - y". Ora, lápis e papel em mãos, soma realizada corretamente, nem o desejo de José e nem o de João tem o poder de alterar a validade de seu resultado. Portanto, se o resultado favorece João, não basta a José dizer que João ficou feliz com o resultado e, por isso, ele não é válido. Isso é irrelevante! José precisa mostrar que a soma não confere, por meio de uma análise interna do cálculo que exponha em qual passo ele foi falho.

Creio que a grande maioria de meus colegas concordem com a exposição rudimentar que fiz acima. Quando eles explicitamente defendem o "Ad Hominem", eles o fazem circunscrevendo a validade do ataque à figura do proponente às questões relativas às ciências humanas. O ponto, se entendo bem, é que, enquanto os objetos lógico-matemáticos, assim como as leis da natureza, não seriam afetados pelos interesses materiais humanos, os objetos das ciências humanas (da economia, da política, etc...) seriam alterados conforme as previsões feitas a seu respeito, de tal forma que o interesse, por meio da previsão, criaria seu próprio objeto. Ou seja, nessa área do conhecimento humano, não havendo independência entre sujeito e objeto, os interesses do proponente seriam um fator legítimo a ser considerado na análise da validade das teses sobre o objeto.

Em prol do argumento, concedamos que seja mesmo o caso que a economia, por exemplo, não possua leis objetivas tão fixas e independentes dos interesses privados (interesses econômicos, sociais, culturais, políticos...) do observador quanto em qualquer domínio da natureza, o que, por si, já é uma tese disputável. Note-se que estou me referindo à independência entre objeto e interesses privados ou materiais do sujeito propositadamente, pois sei que, na mecânica quântica, por exemplo, não vigora a distinção clássica entre sujeito e objeto, mas, nem por isso, alguém (sensato) diria que a validade dos resultados obtidos nessa área dependem dos interesses privados/materiais dos cientistas. Em outras palavras, o que sugerem para as ciências humanas é bem diferente da dependência quântica entre sujeito e objeto. Cada teoria/tese política, econômica ou social seria apenas uma tentativa de realizar os interesses políticos, econômicos e sociais de seus proponentes. Como tal, essas teorias/teses deveriam ser avaliadas conforme a legitimidade desses interesses.

Nesse sentido, observem como é comum que certos analistas, ao se debruçarem sobre questões políticas, econômicas ou sociais, não tenham jamais em vista propriamente os textos de seus adversários, mas apenas a biografia dos autores desses textos. Com ares de quem faz grandes revelações, desmascarando um inimigo, esse tipo de analista, invariavelmente, se atém a expor os vínculos familiares e, sobretudo, eventuais parcerias estabelecidas pelos autores da tese/teoria a ser combatida. Temos sempre José, provando com ar triunfante, que João tem interesse em vê-lo em apuros. Mas, se é assim, isto é, se apenas se trata de mostrarmos qual resultado interessa a João, onde foi parar mesmo a questão da validade? Naturalmente, João pode confessar seu interesse e nos lembrar que José, por sua vez, também tem os dele. Mas, nesse caso, qual papel fica reservado ao argumento na disputa? Para que argumentar se o que é decisivo para a disputa é a descrição dos interesses de proponentes e oponentes? Mais do que isso: como não supor que todas as teses se equivalem de um ponto de vista normativo?

Ora, quem joga esse jogo da reabilitação qualificada do Ad Hominem, via de regra, supõe que existam interesses e interesses. Os interesses conflitantes não são moralmente equivalentes. Sim, aqui, estamos diante de uma moralização das ciências humanas. Há os bons e os maus interesses conforme a coletividade a qual pertença o portador do interesse. Assim, em síntese, a validade da tese depende da legitimidade do interesse do proponente, enquanto a legitimidade do interesse do proponente depende da coletividade na qual ele se insere ou com a qual possui relações. Em outras palavras, enquanto a lógica estuda as formas válidas de transferência da verdade das premissas para a conclusão, aqui, trata-se de algum tipo de mecanismo de transferência de uma condição social privilegiada do proponente para a conclusão. Que tipo de ciência estuda esse mecanismo de transmissão? Como ele poderia ser criticamente avaliado?

Conheço um caso clássico de crença em tal mecanismo. O dogma da infalibidade papal também determina que algo é verdade, porque é dito por certa pessoa. Ele se baseia na crença de que o Papa porta a voz de Deus na Terra. Deus é o proponente que só pode propor teses verdadeiras. Mas a verdade é a verdade, porque Deus a diz; ou Deus a diz, porque é a verdade? Se Deus diz a verdade, porque é a verdade, então, em princípio, há outros meios para determinarmos a verdade que não o mero fato de ser a palavra de Deus. Podemos então, primeiro, descobrir a verdade, então atribuí-la a Deus. Mas se a verdade é verdade, porque é a palavra de Deus, então basta sabermos qual é a palavra de Deus para sabermos qual é a verdade. Como sabemos qual é a palavra de Deus? No caso do dogma católico, sabemos a palavra de Deus, porque ele nos deixou o Papa para dizê-la.

Naturalmente, aqueles que reabilitam o Ad Hominem contemporaneamente não defendem nenhuma origem metafísica para a verdade, nenhum estatuto ontológico diferenciado para o proponente. Mas de onde vem então a condição privilegiada de uma classe sobre a outra? Por que os interesses da elite, em outras palavras, são menos legítimos do que os interesses do que eles chamam de "povo"? Suponho que sejam, afinal, eles apontam os interesses da elite em tom de denúncia, ao passo que falam dos interesses do "povo" como quem encontra a máxima confirmação de uma tese. De onde provém a autoridade epistêmica e moral desse coletivo que chamam de "povo", não sendo ele o povo escolhido por Deus?

Podem dizer que o povo é o todo, ao passo que a elite é uma parte, de modo que o interesse do todo é moralmente superior ao interesse da parte. Mas como um interesse material do todo poderia se opor ao interesse de uma parte sua? Se há conflito e oposição de interesses, não há mais todo. Não se trataria, em vez disso, do interesse de uma maioria versus o interesse de uma minoria? Mas se o interesse da maioria é superior apenas por ser o interesse da maioria não se trata de uma mera questão de força, e não de legitimidade? Como vamos então determinar a legitimidade de um interesse apelando meramente a seu portador, quando esse portador nem sequer é ontologicamente distinto quanto a alguma pressuposição de infalibidade epistêmica ou moral? Mesmo no caso metafísico supracitado, onde o portador último da tese é o próprio Ser absoluto, perfeito, infalível, at the end of the day,  rompe-se com qualquer estrutura argumentativa, pois, se alguém pergunta "por que o Papa, ou a Igreja, ou um livro qualquer porta a palavra de Deus entre os meros mortais", não se pode responder outra coisa senão "porque essa é a vontade de Deus" mas quem acessa a palavra de Deus senão através daqueles mesmos meios que estão em questão? Por fim, a verdade revelada é então verdade aceita à força ou pela fé. Não é uma verdade argumentada ou baseada em algum parâmetro de racionalidade.

Quer me parece que esse seja o caso em qualquer estrutura discursiva pautada pelo Ad Hominem. Ele sempre traz a mácula da completa renúncia ao domínio da razão e da argumentação. Não há mais o certo e o errado, o verdadeiro ou o falso, mas simplesmente a força de um oposta à força de outro, caso em que também não existem vítimas e algozes, opressores e oprimidos, mas apenas vencedores e perdedores, fortes e fracos. Se é isso que defendem, OK, apenas, por favor, retirem a máscara do heroísmo moral e do bom-mocismo social.