terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Podcast: Esse tal de libertarianismo

Livre Intercâmbio Podcast - Episódio 02: Esse tal de libertarianismo

Prezados amigos leitores, compartilho com vocês o podcast gravado com meu amigo Alexandre Costa, também libertário. Espero que gostem! Achei muito bacana gravar essa conversa, apesar de preferir bem mais escrever, para não deixar tantas pontas soltas na argumentação.

Falando nisso, agradeço a todos por terem dedicado um pouco do tempo de vocês para a leitura de textos meus em 2013 e desejo um excelente 2014! Continuemos divulgando a ideia de um mundo mais livre, portanto, mais justo!

domingo, 29 de dezembro de 2013

Anarco-capitalismo posto em prática



Escrevo este post farta com o mesmo tipo de objeção que motivou um famoso opúsculo de Kant: aquelas baseadas no dito popular segundo o qual algo pode funcionar em teoria, mas não na prática. Ocorre que, via de regra, se alguém se diz anarquista, parece estar mais suscetível do que qualquer outro a essa linha de crítica. Isso acontece, em grande parte, dada a ignorância generalizada sobre as tantas variações possíveis de anarquismo. Mais especificamente, costumam assimilar todo e qualquer anarquismo àquele defendido por Godwin, baseado na promessa de um aperfeiçoamento da natureza humana. Em poucas palavras, pensam o anarquismo como a ausência de leis e a negação de qualquer instituição hierárquica, de tal forma que apenas a virtude moral poderia sustentar uma sociedade anarquista. Certamente, não é nada disso que está em jogo para o anarco-capitalista. 

O anarco-capitalismo, diferentemente das vertentes coletivistas do anarquismo, não considera que estruturas hierárquicas baseadas na propriedade privada sejam estruturas coercivas, ou "de dominação", como os coletivistas gostam de dizer. Para o anarco-capitalismo, se outro não usou a violência ou a ameaça de violência para obter seu consentimento para sua adesão a uma determinada forma de cooperação, isso basta para que essa forma de cooperação seja vista como voluntária e, portanto, como legítima. Assim, é perfeitamente possível no anarco-capitalismo que uma empresa cresça exponencialmente, com executivos assumindo o comando de empregados em posição hierárquica inferior. Inclusive, isso é o bastante para que anarquistas coletivistas denunciem o anarco-capitalismo como uma forma inautêntica de anarquismo (talvez, porque eles acreditem ter a propriedade privada do termo "anarquismo").

A observação acima, aliás, me faz lembrar de uma situação que me foi relatada certa vez. Em uma universidade pública, um professor que se dizia anarquista lecionava para um aluno que se dizia adepto da mesma posição política. Assim, no dia em que o professor devolveu ao aluno um trabalho devidamente avaliado, o último fez questão de rasgá-lo acintosamente, perante todos os demais colegas da classe. Com o gesto, o aluno quis dizer que anarquistas não poderiam aceitar qualquer forma de autoridade. 

Ora, nada seria mais incorreto do ponto de vista do anarco-capitalismo. Tanto aluno quanto professor assinaram um contrato com a universidade por livre e espontânea vontade. Por meio desse contrato, ambos aceitaram as regras da instituição. Por isso, seria perfeitamente legítimo que qualquer uma das partes sofresse sanções por não cumprir o contrato assinado. Em suma, ao rasgar o trabalho, o aluno rasgou o contrato que ele próprio assinou.

No anarco-capitalismo, assume-se que, eventualmente, as pessoas, de fato, rasgarão contratos. Além disso, pessoas também podem tiranizar outras pessoas, ou seja, colocá-las sob um poder com o qual elas não consentiram em contrato algum. Nesses casos, o anarco-capitalismo assume que há um uso legítimo a ser feito da força. Dessa maneira, nota-se que o anarco-capitalismo não é: 1) uma teoria baseada em um otimismo excessivo quanto à natureza humana, 2) uma teoria baseada na ausência de órgãos de execução do direito. O anarco-capitalismo é, sim, uma teoria que nega que o direito à execução do próprio direito possa ser monopolizado por uma pessoa ou por um grupo de pessoas. Assim, há leis, há tribunais, mas não há Estado em sentido weberiano, porque a própria execução da justiça é vista como um serviço prestado em uma concorrência efetiva ou sempre, ao menos, possível.

Feitos esses esclarecimentos iniciais, passemos, finalmente, à nossa questão: como o anarco-capitalismo poderia ser posto em prática? Ao contrário de alguns, eu não penso que o Estado poderia ou deveria ser pura e simplesmente dissolvido, com todo seu patrimônio sendo revertido à condição de coisa a ser apropriada. Parece-me mais sensato que a elite governante simplesmente enviasse uma carta de alforria a cada cidadão. 

Nessa carta, o não mais Estado nos informaria que não cobraria mais impostos, daí a alforria, pois ninguém mais o serviria de forma compulsória. Na mesma carta, porém, a nova instituição nascida do Estado informaria estar vendendo seus serviços. Ela poderia fazer isso em um pacote único, incluindo, saúde, educação, segurança, etc... Ou poderia vender pacotes diferentes por preços diferentes. O importante é que ela daria a oportunidade das pessoas escolherem se quereriam ou não continuar como seus membros. A carta ainda deveria deixar claro que, em caso da opção pela ruptura completa com a instituição, o ex-membro não mais gozaria de quaisquer serviços estatais, incluindo a proteção à sua vida. Porém, aqui temos um ponto delicado: O ex-membro ajudou a financiar a estrutura da qual ele não mais usufruirá. 

Em nossa cultura, todos nos revoltamos ao pensarmos nos escravos negros libertos com uma mão na frente e outra atrás. É uma clara injustiça que um ex-escravo não receba uma compensação para dar início à sua nova vida, dada a riqueza que ele ajudou a gerar e deixará para trás. Agora, é o momento em que você diz: muito bem, o Estado não tem como compensar a todos os membros que queiram partir, e nem teria como averiguar o valor exato de cada compensação. Bom, infelizmente para você, também é o momento em que eu respondo que seu argumento valeria igualmente contra a libertação histórica dos escravos negros. 

O argumento moral sempre se sobrepõe a qualquer consideração consequencialista e o caso da libertação dos escravos negros é prova de que todos concordamos com isso. Você pode até ser um liberal que argumentará que a libertação dos negros, de fato, trouxe benefícios econômicos, e só por isso ocorreu. Porém, dificilmente, você argumentaria que os negros não deveriam ter sido libertados caso isso não fosse o caso. Portanto, Mises é irrelevante para o debate acerca da justiça. Por sinal, não devemos misturar economia com justiça, como muitos de vocês, liberais e marxistas, estão tão acostumados a fazer. 

Mas, voltando ao ponto do pagamento das compensações, e assumindo que a impossibilidade de pagá-las jamais poderia ser um motivo para defendermos a manutenção da escravidão, na verdade, há uma forma razoável do ex-Estado proceder. Ele poderia estabelecer um período de tempo dentro do qual aqueles que decidissem se dissociar ainda poderiam gozar de algum benefício, mesmo sem contribuir. Talvez, aquele que resolvesse partir devesse receber o direito de escolher o serviço do qual gostaria de gozar gratuitamente dentro daquele período.

Que fique claro que tenho em vista, não uma indenização pelos anos de privação da liberdade (que também poderia vir a ser o caso), mas uma mera compensação pela riqueza que ficará em poder da associação quando o membro partir. Assim, o ex-Estado teria que ser competente o bastante para financiar a oferta temporária do serviço gratuito com a venda dos demais serviços. 

Agora, você pode pensar que os que decidem ficar estarão sendo escravizados para a oferta desse serviço "gratuito". Todavia, não é o caso, primeiramente, porque caberá a eles decidir se ficam ou partem, e, em segundo lugar, porque, se decidirem ficar, saberão que herdarão um patrimônio que não construíram sozinhos, daí a compensação aos dissidentes.

Agora, suponha que seu temor se realize e que o ex-Estado comece a ter que se desfazer desse patrimônio para as contas fecharem. Suponha ainda que os serviços, cada vez mais precários, levem a uma perda cada vez maior de clientes, portanto, a necessidades crescentes de pagamento de compensações. Ora, isso não é problema algum para o anarco-capitalista, porque é aqui que entra a concorrência. 

O ex-Estado, marcado pela necessidade de pagar por seu passado, pode ou não ter competência suficiente para se valer da condição de partida, por outro lado, privilegiada de primeira associação do mercado. É certo, afinal, que muitos - por exemplo, todos aqueles que tremem ao ouvirem a expressão "anarco-capitalismo" - escolherão ficar! Isso será o bastante para manter a associação? Só o mercado responderá, ou seja, só a satisfação dos clientes. 

Mas que horrível essa ideia de um "Estado" ter que satisfazer clientes, não? Enfim...

Agora, quero tratar de outro ponto. Por que diabos algum Estado escreveria aquela carta que o forçaria, afinal, a ter que satisfazer aqueles a quem ele pode muito bem continuar simplesmente extorquindo? Calma, anarco-capitalistas não sairão por aí quebrando bancos, com camisetas enroladas na cabeça, para mudar o mundo. Se o anarco-capitalismo fosse difundido enquanto ideologia a ponto de se tornar o pensamento hegemônico em uma sociedade - uma ideia tão óbvia quanto a ideia de que os escravos negros precisavam ser libertados no matter what - o Estado é que teria que se manter exclusivamente pela força bruta, o que não é possível. 

As pessoas subestimam a dependência estatal da adesão voluntária. Por exemplo, vocês acham que a Coréia do Norte ainda estaria de pé se a maior parte do seu povo resolvesse marchar para a fronteira com a Coréia do Sul? Um muro foi capaz de deter os alemães? Uma sociedade que gosta de se dizer livre não pode ser uma sociedade de pessoas que, de forma hegemônica, se consideram vítimas de seus governantes. Por isso, os argumentos dos anarco-capitalistas, se difundidos, podem fazer muito mais estragos do que as marretas dos black blocs. 

É preciso deixar claro, porém, que uma coisa não levaria à outra. Alguém convencido de argumentos anarco-capitalistas jamais sairia cometendo agressões. A atitude revolucionária do anarco-capitalista, como é bem sabido, é a resistência pacífica. Por exemplo, o governo o proíbe de vender cachorro-quente em um carrinho. Você desobedece. O agente do governo vem confiscar seu carrinho. Você luta se ele o agredir, corre se puder, etc... Em uma sociedade convencida de que hierarquias devem brotar apenas do consentimento, os outros vão ajudá-lo a esconder seu carrinho ao menos sempre que isso não implicar em sofrer uma sanção. A troco de que, no final, o governo insistiria em perseguir seu carrinho? No final, enviar a carta não seria a saída até mais inteligente, do ponto de vista da sobrevivência da instituição?

Mas, Andrea, quem disse que as pessoas se convencem por argumentos? Elas apenas, por exemplo, aprenderam a acreditar que escravidão é errado, do mesmo jeito que poderiam ter se acostumado a acreditar que escravidão é certo. E o governo? Quem diz que faz o que é mais racional do ponto de vista de seus próprios interesses? Nossa presidente mal consegue articular duas sentenças! 

Agora, sim, eu aceito seu argumento. De fato, apenas uma pequenina parcela da humanidade consegue refletir sobre seus próprios princípios e fazer o mínimo de esforço para viver de forma coerente com eles. É muito provável então, você dirá, que, por isso, o anarco-capitalismo sempre triunfe nos discursos teóricos, sem jamais alcançar a prática. 

Contudo, aqui, ainda parece estar escapando um ponto àqueles que gostam de denunciar utopias. A validade de um princípio moral, Kant me ensinou, não requer que o mundo, de fato, esteja de acordo com ele. Mas, sim, que você possa agir de acordo com ele. Pois bem, meu amigo, você pode muito bem agir tomando a obediência a leis positivas por si só como um conselho prudencial, em vez de um imperativo categórico. É esse todo o ponto do anarco-capitalismo! Em outras palavras, você pode colocá-lo em prática, sem esperar que a Dilma faça isso por você. 

Por sinal, existe um imperativo em Kant que é compreendido por poucos. Diz, mais ou menos, assim: "aja como se a humanidade progredisse sempre para o melhor". Claro que o melhor, para Kant, infelizmente, não era o anarco-capitalismo, mas sim um ideal de República. Mas eu posso me apropriar exatamente do que ele tinha em mente com aquele imperativo: É seu dever viver já de acordo com seu ideal, como se a humanidade estivesse progredindo para aquele ideal. Em poucas palavras, seja o escravo que ousou saber e ainda fazer uso público de sua razão.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Deus morreu! Mas por que não o Estado?


Calma, antes de mais nada, calma. Quando eu digo que Deus morreu, refiro-me apenas ao fato de que os filósofos profissionais, via de regra, não se ocupam mais da demonstração de sua existência. Foi-se o tempo em que os grandes nomes da filosofia se debruçavam sobre estratégias lógicas das mais diversas para provar a existência de um ser absoluto diferente do mundo e seu criador. Talvez, ainda haja quem faça isso. Todavia, por mais que a filosofia seja marcada pela ausência do consenso, a imensa maioria dos filósofos acadêmicos entende que a questão da existência de Deus deva pertencer ao domínio do insolúvel. 

Eu confesso que, quando comparo essa situação atual com os debates filosóficos da Idade Média e início da Idade Moderna, fico pensando se não chegará também o dia em que o Estado morrerá, ou seja, o dia em que os filósofos profissionais entenderão que não é possível justificar racionalmente a autoridade política, entendida como um direito especial que uma pessoa ou um grupo teria para exigir a obediência de todos os demais. Inclusive, como todos bem sabemos, as duas questões - Deus e autoridade política - já apareceram conectadas na história da filosofia.

Claro que a simples existência de Deus não seria suficiente para resolver o problema desse direito especial que caracteriza a autoridade política. Explico. Ainda que Deus exista, isso não significa que ele tenha assinalado alguém para governar aos demais. Ele poderia ter criado a todos rigorosamente iguais, como queria Locke contra Filmer. Na verdade, ainda que Deus exista e que tenha assinalado alguém para nos governar, como queria Filmer, isso ainda não significa que sejamos capazes de identificar o seu escolhido. Por isso, afirmo que, mesmo que fosse possível resolvermos o problema da existência de Deus, nem por isso, já estaria resolvido o problema da autoridade política. 

Porém, a existência de Deus, se pudesse ser provada, ao menos poderia doar algum sentido à ideia de um escolhido, isto é, à ideia de um portador de direitos especiais. A autoridade política seria, ao fim e ao cabo, a autoridade do representante de Deus na Terra. Por isso, uma vez que não se podia mais aceitar que o poder absoluto dos reis era diretamente derivado do poder do ser absoluto que nos criou a todos, surgiu, para a filosofia, o problema da justificativa racional do dever de obediência ao Estado. Se não se trata de uma extensão do dever de obediência a Deus, por que diabos teríamos que obedecer a um homem exatamente igual a qualquer um de nós?

Foi aqui, para não deixar o Estado morrer com Deus, que a filosofia inventou um outro ente tão metafísico quanto: o povo. Desde a morte de Deus, não se governa mais em Seu nome, mas em nome do... povo. Na verdade, a autoridade política nem sequer se apresenta mais como um direito especial que alguém teria de governar aos demais, mas sim como o povo governando a si mesmo. Eis o mito da democracia substituindo o mito de todas as religiões.

Mas qual o referente do conceito "povo"? Só poderia ser a soma completa dos indivíduos efetivamente existentes em um dado território em um dado tempo. Mas então uma decisão só seria uma decisão do "povo" se fosse uma decisão empiricamente unânime, coisa que jamais se viu em qualquer democracia. Se um único indivíduo se mostra contrário a uma decisão, já não se trata mais de uma decisão do "povo", mas sim de uma decisão da maioria. É aqui que a filosofia não pode se furtar à tarefa de justificar o direito da maioria de submeter a minoria à sua autoridade. Sem essa justificativa, a democracia é apenas o governo da força, como qualquer tirania.

Agora, por que a união de indivíduos em uma maioria conferiria a essa maioria direitos especiais, portanto, direitos que eles não possuiriam como indivíduos separados? Certamente, a união faz a força, mas por que faria o direito? Você aceitaria que um indivíduo, considerado isoladamente, não tem o direito de lhe obrigar a deixar de ingerir uma substância tóxica nociva à sua própria saúde. Agora, se todos os outros indivíduos da sua comunidade, exceto por você, concordarem que você não deve ingerir essa substância, então eles passam a ter o direito de lhe obrigar a não ingeri-lá. Por quê? Não seria mais razoável aceitar que eles passariam apenas a ter força para lhe obrigar?

Talvez, você acredite que o direito da maioria emana do fato deles terem lhe concedido o direito a também dar seu voto. Veja só, seus vizinhos se reúnem para decidir se você pode continuar ingerindo sódio e vendo pornografia no computador, mas eles são democráticos, então eles deixam você votar também. Isso significa que a autoridade política não está mais personalizada em João ou José. Ela é pura e simplesmente concentrada na maioria numérica, seja lá quem for que a componha. 

Neste ponto, eu recoloco a pergunta. A menos que você tenha dado seu consentimento ao princípio da maioria, como eu fiz pontualmente, por exemplo, ao aceitar ser membro de um departamento em uma universidade, por que uma maioria teria direitos especiais sobre você? Quem escolheu o princípio da maioria como um princípio de legitimidade? Circularmente, a maioria? Você só evita o círculo se puder explicar por que o mero fato da maioria tornaria legítima a mesma imposição que seria ilegítima caso partisse de uma minoria. Dizer que eu poderia ter sido parte da maioria, se eu tivesse votado (como me foi permitido) e se um número suficiente dos outros tivesse votado comigo, não resolve o problema. Se eu não concordei em jogar o jogo, então não basta dizer que as regras, em tese, permitiriam a minha vitória, para que você tenha o direito de me forçar a aceitar a sua vitória.

Então é isso. Até que me provem a legitimidade do princípio da maioria (sem circularidade), eu seguirei acreditando que o filósofo libertário está para a filosofia política contemporânea assim como o "insensato" estava para a filosofia medieval cristã. Talvez, um dia, vocês que aceitaram que Deus é apenas uma questão de fé, ou seja, de uma decisão subjetiva de acreditar, também aceitem que o Estado é apenas uma questão de força. A filosofia não pode acabar com o fanatismo, mas pode, ao menos, parar de lhe prestar homenagens servis.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

O que significa o direito de ser livre?


Costumo dizer a meus alunos que há duas maneiras (não excludentes) de criticarmos um argumento. Podemos aceitar as premissas do adversário, ao passo que procuramos mostrar que a inferência feita a partir delas é logicamente inválida. Nesse caso, procuramos mostrar que as premissas não bastam para justificar a alegação feita pelo nosso oponente, de modo que a conclusão ainda poderia ser falsa, mesmo que as premissas fossem verdadeiras. Mas também podemos aceitar a validade do raciocínio do nosso oponente, negando então que o ponto de partida (a premissa) seja aceitável. Tenho notado que, via de regra, os colegas com quem discuto minhas posições libertárias Brasil afora tendem mais a recusar minha premissa, no caso, a redução de todo o direito a um direito irrestrito à liberdade não agressiva, do que a tentar invalidar meus argumentos anti-estatistas construídos a partir dessa premissa.

Para que compreendam melhor o ponto, saibam que eu entendo o famoso princípio libertário de não agressão como um princípio de não coerção. Coerção, por sua vez, eu entendo como todo uso da força, ou ameaça de uso da força, pelo qual se procura evitar que um agente escolha um determinado curso de ação, a princípio, disponível para ele. Em outras palavras, coerção é uma restrição que um agente impõe pela força ao arbítrio de outro. Já o direito à liberdade, eu entendo como um direito à ausência de coerção.

É verdade que circunstâncias também podem restringir o arbítrio de um agente, mas eu argumento que esse fato é absolutamente irrelevante do ponto de vista jurídico, de tal forma que não faria sentido algum falarmos em violações de direitos no contexto de restrições impostas por circunstâncias. 

Considere o seguinte. Você está fazendo uma trilha desconhecida no meio de uma mata fechada. De repente, você sofre uma queda, fratura a perna e não consegue mais retomar a caminhada. Você está preso na mata. Agora, em outro cenário, você está fazendo a mesma trilha, mas, em vez de meramente sofrer uma queda, você cai em uma armadilha montada por um sociopata caçador de seres humanos. Ele o impede de retomar a caminhada. Nos dois casos, a restrição à sua liberdade é a mesma. Porém, você há de convir que, apenas no segundo caso, faz sentido dizer que um direito seu foi violado, não é mesmo? E por que é assim? Porque apenas no segundo caso a sua liberdade foi tolhida pela força de um outro agente, quer dizer, por outro arbítrio, e não pela natureza ou pelo contexto.

Assim, como bem definiu Kant, a liberdade que consiste em um direito moral não diz respeito à independência de constrangimento das circunstâncias, mas sim, justamente, à independência de restrições ao nosso arbítrio impostas à força pelo arbítrio de outro agente. 

Naturalmente, dado que um direito, em sentido moral, além de corresponder a um dever, deve ainda ter validade recíproca, a independência de coerção do arbítrio de outro a que temos direito não pode valer incondicionalmente. Há uma condição para o exercício de nosso direito à liberdade assim concebida. Todavia, trata-se de uma condição que brota internamente da própria ideia de um direito universal à independência de coerção por parte do arbítrio de outro. Essa condição é apenas que nossa própria ação não seja ela mesma, primeiramente, uma coerção para o arbítrio de um outro. Em suma, não podemos reclamar o direito de não sofrermos coerção apenas quando nós mesmos, primeiramente, estamos usando nossa liberdade de modo coercivo. É assim que falo em um direito irrestrito ao uso não agressivo (não coercivo) da liberdade.

Muito bem, é claro que eu preciso justificar essa premissa, antes de extrair conclusões anti-estatistas dela. Ela mesma consiste em uma alegação considerável para a qual eu assumo o ônus da prova. Entretanto, curiosamente, meus oponentes não se interessam tanto em desafiar minhas razões para reclamar esse direito. Eles preferem, em vez disso, constatar um caráter algo anêmico nessa minha premissa. Ela simplesmente pecaria por ser fraca demais, ou reducionista demais, na medida em que eu reduziria todo o direito a um simples direito de não ser forçado a nada por outro. Falam então em um conceito maior, mais forte, mais rico... da liberdade a que teríamos direito. Isso me dá a entender que eles pensam que o conceito de liberdade deles engloba o meu e o estende. Bom, eu acredito que não seja bem assim.

Note que, juridicamente, quando falamos em um direito, estamos, automaticamente, postulando obrigações que podem ser impostas pelo uso da força. Alegar um direito é sempre alegar o direito de exigir seu respeito por parte dos demais agentes. Eu penso dispensá-los de sua obrigação de respeitar meu direito. Mas isso cabe a mim. A rigor, um Robinson Cruzoe não teria direito algum, porque ele não teria ninguém a quem opor direitos. Dito isso, fica claro que o conceito de uma coerção legítima, uma autorização para o uso da força, é, como dizia Kant, sinônimo do conceito de direito.

Decorre dos esclarecimentos do último parágrafo que só não é contraditório dizermos que temos direito à liberdade (entendida como ausência de coerção), portanto, que estamos autorizados a usar a força em nome dessa liberdade (para protegê-la como direito), quando (e somente quando) estamos exercendo coerção contra uma coerção prévia. Como Kant diz em um de seus momentos mais brilhantes, a resistência que se opõe a uma resistência à liberdade colabora com ela. Em síntese, coerção de uma coerção é um favorecimento da liberdade, do mesmo jeito que, matemática e logicamente, a negação de uma negação equivale a uma afirmação.

Quero com isso dizer que, sempre que uma coerção for praticada para além da supressão de uma coerção prévia, teremos a pura e simples coerção de um arbítrio por parte de outro, o que viola o suposto direito, alegado por mim, à liberdade como independência da coerção do arbítrio de outro. Por consequência, - é aqui onde eu queria chegar - meu oponente não pode dizer que tem um conceito de liberdade como direito que é mais amplo, rico... do que o meu. Na verdade, ele tem um conceito de direito à liberdade oposto ao meu, pois, sempre que ele fizer valer pela força o direito mais amplo que ele alega ter, ele necessariamente violará o direito minimalista que eu alego ter. 

Muito bem, o meu oponente tem um conceito de direito à liberdade, de acordo com o qual posso ser coagida a fazer x ou a deixar de fazer x, mesmo quando, ao não fazer x ou ao não deixar de fazer x, eu não coajo ninguém. Em nome de sua concepção de direito à liberdade, o meu oponente me faz fazer à força aquilo com o que eu não consinto. Será então que, realmente, faz sentido que ele se apresente como um defensor da liberdade, assim como eu, apenas tendo um conceito mais "rico" dela? Particularmente, acho muito curioso esse conceito de liberdade que permite que uma arma seja apontada para mim para que eu faça o que não quero fazer. Será que não seria mais honesto - e mais produtivo para o debate - que o meu oponente assumisse que, para ele, há valores superiores à liberdade, em nome dos quais podemos violar o direito à liberdade sempre que for preciso, como o combate à fome, por exemplo?

Sabe, há momentos na filosofia em que precisamos "morder a bala" [bite the bullet], como dizem os anglófonos. Em outras palavras, nós precisamos aceitar que, ao defendermos determinados valores, podemos estar nos comprometendo com consequências indesejáveis. No meu caso, morder a bala significa aceitar que, como defendo o direito irrestrito à liberdade não agressiva, não posso, ao mesmo tempo, defender que uma pessoa rica seja forçada a amparar um miserável. No caso do meu adversário, como ele defende que os miseráveis sejam amparados pelo Estado com recursos públicos, ele precisa aceitar que ele defende a iniciativa de violência em nome de determinados fins. Não se pode ter o melhor de dois mundos!