sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Estado ou justiceiros?

O noticiário recente colocou em pauta a questão mais central do Estado, sua própria essência: o alegado direito ao monopólio da aplicação da justiça. Passando pela sala, peguei rapidamente alguns trechos de uma conversa a respeito do assunto na Globo News: "justiça pelas próprias mãos é uma contradição nos próprios termos", concordavam os participantes. Como estavam condenando quaisquer agentes que apliquem a justiça em concorrência com o Estado, e não apenas os que o façam em causa própria, suponho que fique implícita aqui uma definição de ação justa que coloca como sua condição necessária que um certo tipo de agente pratique a ação. Em outras palavras, se outro agente fizer exatamente o que o Estado faria em uma situação similar sob todos os aspectos relevantes, essa ação não será justa pelo simples fato de não ter sido praticada pelo Estado.

Não é curioso que a mídia mainstream não esteja disposta a incluir no debate vozes dissonantes no que diz respeito à aceitação dessa definição de justiça. O Estado - já disse antes e muitos outros ainda disseram antes de mim - se sustenta pela vitória nessa batalha ideológica, não por suas forças armadas. De minha parte, neste post, não me importa tanto questionar a legitimidade da dependência necessária que se estabelece entre justiça e Estado, mas sim refletir um pouco sobre o que deve nos horrorizar nas ações praticadas pelos justiceiros. É mesmo o fato de quem as pratica?

Note, em primeiro lugar, que o Estado faz muito pior do que amarrar pessoas em postes. Todo cárcere oficial do Brasil é um retrato da mais pura degradação humana. Porém, como o leitor atento percebeu, estou sendo caridosa com os estatistas, formulando sua definição de justiça como uma que inclua a sua execução pelo Estado como condição necessária, e não como condição suficiente. Quer dizer, parece-me que os apologistas do Estado podem conceder que o Estado cometa injustiças, embora não possam conceder que outros agentes pratiquem a justiça. Isso facilita a defesa do ponto deles. Seja lá como for, não me furto a observar que a barbárie não é privilégio desta ou daquela situação.

Mas vamos ao que interessa: sem o Estado, a única alternativa para a aplicação da justiça são as práticas grotescas relatadas nos noticiários? Não me parece que seja o caso! Do mesmo jeito que, à parte do Estado, indivíduos podem reconhecer direitos de propriedade a ponto de aplicarem penas a quem os viola, eles também podem reconhecer direitos processuais. Isso mesmo, como Nozick, eu acredito que o direito natural (racional ou a priori) contenha direitos processuais. Isso significa que, do mesmo jeito que qualquer pessoa teria o direito de punir quem comete um furto, qualquer pessoa também teria o direito de punir, por exemplo, quem pune alguém sem se certificar de todas as formas possíveis de seu envolvimento e seu grau de responsabilidade pelo ato. Em suma, aplicar uma punição a alguém, sem a devida certeza de que a punição é devida e proporcional ao ato, é cometer uma agressão como outra qualquer.

Agora, note que o reconhecimento de direitos processuais pode muito bem valer contra o Estado. Quantos Estados não condenam indivíduos sem reconhecer-lhes o amplo direito à defesa? Quando excluímos da definição da justiça que ela deva ser praticada por um agente em específico, o próprio estadista pode ser condenado por seus atos tirânicos de condenação e execução sumária. O problema, afinal, não é que um João qualquer espanque um suspeito. O problema é que o suspeito seja espancado, por mais que ela possa muito bem ser culpado!

E quando a culpa é provada, o condenado deve ser espancado? O que é pior: ser espancado ou viver uma semana em um presídio brasileiro? Honestamente, eu escolheria a primeira pena sem pensar duas vezes! Mas não se trata de preferência pessoal, claro. Trata-se de sabermos qual pena é justa, uma vez que definamos 1) que a ação foi praticada pelo réu; 2) que não foi uma ação justa. Parece-me, por sinal, bem mais fácil chegarmos a um princípio que nos permita separar objetivamente as ações conforme ao direito daquelas que não o são do que chegamos a um princípio igualmente objetivo que nos permita ajustar penas a violações do direito. O que restabelece minha tranquilidade diante dessa dificuldade é o fato de que ela se coloca absolutamente da mesma forma para os estatistas. A mera existência do Estado em nada resolve o problema da pena. Pelo contrário, torna muito mais difícil que alguém possa resistir a uma injustiça cometida neste aspecto.

Outro problema interessante - agora sim apenas para os opositores do monopólio do direito à aplicação da justiça - é como evitar que o mesmo sujeito seja punido diversas vezes por uma mesma violação do direito e, portanto, que ele seja punido em excesso, dado que qualquer um tem o direito de puni-lo, desde que respeite seus direitos processuais. Parece-me que, do ponto de vista do direito natural, é um dever que todo aquele que queira aplicar uma punição coordene sua ação com a de qualquer outro que poderia vir a alegar o mesmo direito. Assim, o reconhecimento da ilegitimidade do monopólio da aplicação da justiça não implica em um reconhecimento da legitimidade de ações isoladas para a aplicação da justiça.

Para entender meu ponto, imagine que 1) João tenha todas as provas necessárias para responsabilizar Pedro por uma autêntica violação do direito natural e 2) que a pena X seja proporcional à violação do direito cometida por Pedro. Nem por isso João tem o direito de aplicar a pena a Pedro sem procurar saber se 1) uma pena já não lhe teria sido aplicada e 2) se outros não estariam planejando aplicar-lhe também uma pena. Admitiríamos que, se João punir Pedro por um crime pelo qual Pedro já foi devidamente punido, João estará sendo injusto com Pedro, certo?

Bom, essas questões são bem complicadas... Este post era só para dizer que existe muita diferença entre negar o monopólio de direito do Estado e aceitar que qualquer um aplique a pena que bem entender a quem desejar pelo ato que quiser. Direitos processuais são direitos como outros quaisquer, que podem tanto ser violados pelo Estado como por João. Infelizmente, serão sempre violados por ambos.

 

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Inimigo íntimo, ou anarquismo kantiano contra Kant


Eu fiz o programa do evento, mas juro que foi uma mera coincidência que me fez estar sentada ao lado do Aguinaldo quando ele, pela primeira vez, apresentou sua exótica tese sobre o fracasso do argumento kantiano pela justificativa do Estado. Aquele momento foi histórico, porque, até onde se sabe, ao menos em solo brasileiro, Aguinaldo foi o primeiro a defender o anarquismo a partir de premissas kantianas. Internacionalmente, eu acho que Robert Paul Wolff (e apenas ele) já havia feito isso antes, mas creio que ele tenha feito de um modo diferente (faz tempo que estou para ler o texto dele e vou adiando em nome de outras prioridades). Com Aguinaldo, ao menos, não se tratava meramente de dizer que uma forma de anarquismo poderia ser construída a partir de Kant. Aguinaldo teve a coragem de dizer que, dadas as premissas expressamente aceitas, Kant precisaria ter chegado a uma determinada conclusão, ao passo que ele errou e derivou exatamente a conclusão oposta. Imaginem a explosão!

Eu me diverti muito estando presente. Tenho a maior admiração pelos meus queridos colegas da comunidade kantiana, porque se trata de uma comunidade extremamente argumentativa. As oposições não ficam veladas. Nós colocamos nossas cartas sobre a mesa sem receio de fazermos inimigos por defendermos teses opostas. E, modéstia à parte, fazemos isso com muita competência. A comunidade kantiana, até por razões históricas que não vêm ao caso, é um paradigma de rigor na filosofia acadêmica do Brasil. Então, imaginem como aquela sala de conferências em Campinas pegou fogo, no bom sentido, naquela tarde!

De minha parte, eu só fiquei assistindo de camarote, pois meus conhecimentos sobre o direito público kantiano não me permitiam tomar parte em um debate daquele nível. Bem mais recentemente, finalmente, decidi enfrentar o direito público de Kant como fizera Aguinaldo. Afinal, não basta dizer que a ética e o direito privado de Kant oferecem fundamentos sólidos para um anarquismo de cunho individualista. É preciso provar que o argumento de Kant em prol do Estado fracassa. Falar que Kant errou, afinal, é sempre fácil. Abrir o livro, explicar o argumento e mostrar onde está o erro é para poucos, pouquíssimos! Nesse sentido, vou confessar uma coisa. Houve momentos em que minhas convicções fraquejaram diante dos argumentos de Kant. Definitivamente, eu prefiro ter Kant no meu time. Jogar contra ele é um pesadelo! Mas deixem-me lhes apresentar o balanço geral das minhas impressões depois desse embate que me custou tanto esforço.

Se eu fosse explicar, do modo mais didático possível, o argumento de Kant, eu pediria para terem em conta, primeiramente, a impossibilidade física, para a maioria de nós, de que vivamos em isolamento. Essa é uma premissa de Kant que não pode nos passar despercebida. Como ele gosta de dizer, o fato da Terra ser esférica, em vez de se estender por um plano infinito, é significativo para o direito. A razão disso é que o argumento aceita como condição de sua validade que não possamos evitar que nossas ações tenham influência sobre outras pessoas. Se nós pudermos simplesmente evitar a repercussão de nossos atos na vida de outros, para tudo! Basta que nos apartemos e não há mais problema jurídico algum. Mas são poucos os que podem escolher viver como eremitas. A imensa maioria terá que viver em sociedade. Assim, partamos do fato da sociedade.

Muito bem, agora, outro aspecto. Você pode não saber, mas Kant tem uma concepção de natureza humana mais pessimista do que a de Hobbes. Em escritos não publicados, chega a ser chocante o que ele diz sobre o modo como nos comportaríamos na ausência do Estado. Você pode pensar em Kant - e em nós kantianos - como um idealista quanto à bondade humana, mas não é nada disso. Para Kant, o dever moral sempre nos revela apenas e tão somente nossa capacidade moral. Isso não significa, em absoluto, que Kant acredite que as pessoas de fato escolham viver moralmente. Pelo contrário, ele nos diz expressamente que, diante da ausência de coerção externa, a tendência é escolhermos o mal, como podemos constatar pelo conhecimento que temos de nós mesmos.

Contudo, dito isso no § 42 da Doutrina do Direito, um pouco adiante, no 44, Kant indica não precisar de uma premissa antropológica tão forte. Ele sugere que suas conclusões se seguiriam mesmo que os seres humanos fossem bem dispostos em relação uns aos outros. Daí, a importância da inevitabilidade do contato humano. Onde houver sociedade, haverá conflito jurídico. Isso ocorre, porque mesmo pessoas de boa fé podem falhar cognitivamente, embora não do ponto de vista volitivo. Explico. Você quer respeitar o direito dos outros. Todavia, você entende que está fazendo isso, enquanto a outra parte, também de boa fé, acredita que você está violando seu direito. Pense, por exemplo, em dois vizinhos que discordam sobre o limite onde deve ser colocada a cerca que separa suas propriedades. Para imaginar um conflito aqui, não precisamos pressupor que um queira roubar parte das terras do outro. Eles podem, honestamente, acreditar que suas propriedades se estendem até pontos diferentes e conflitantes.

Ora, se você concede a possibilidade acima, você deve conceder que, sem o Estado, ninguém pode garantir que meus direitos não serão violados até por pessoas que pretendem agir em conformidade com o direito. Assim, o estado de natureza é um estado de insegurança jurídica, um estado onde nenhum direito é, como gosta de dizer Kant, peremptório, isto é, nenhum direito é indisputável e nenhuma disputa pode ser definitivamente selada. 

Dada essa situação, Kant defende que seja um dever moral que adentremos a condição civil. E, se é um dever moral jurídico, posso, inclusive, usar a força para obrigar o indivíduo a cumprir com ele. É assim que Kant acredita que o contrato social dispensa a necessidade de consentimento voluntário. Você pode obrigar o outro a entrar com você em uma condição em que nós dois abandonamos o direito de obrigarmos qualquer um a fazer qualquer outra coisa. Nós dois, no caso, na condição civil, transferimos esse direito de exercer a coerção em nome do direito para um terceiro. Desse momento em diante, só por meio dessa figura, alguém pode ser obrigado ao que quer que seja. Isso significa que os direitos passarão a ser garantidos de forma peremptória, pois, uma vez que essa figura jurídica recém instituída se manifeste em definitivo, ninguém terá o direito de contestar sua decisão, exceto em meras palavras.

Agora - e isso é essencial - notem o seguinte: se apenas por meio dessa figura jurídica é que a força pode ser exercida em conformidade com o direito, então a força jamais poderá ser exercida contra essa figura. Kant admite que temos direitos com respeito a essa instituição. Ele ressalta, porém, que são direitos não coercivos. Em outras palavras, nós não podemos obrigar essa instituição a respeitar nossos direitos. Isso faz todo sentido dado que nós delegamos a essa instituição a coerção conforme ao direito. É assim que nasceria aquele monopólio do uso da força de que Weber nos falará mais tarde: todo o direito de executar o direito pertence ao Estado.

Bem, voltemos ao que Kant nos dizia sobre a natureza humana, tão propensa a violar direitos quando acha uma oportunidade para tanto. Pensemos ainda no que ele nos diz sobre a possibilidade de que mesmo pessoas bem dispostas, por erro de juízo, violem direitos. Não seria então absolutamente natural pensarmos que os representantes do Estado cometerão erros, sejam esses volitivos ou cognitivos? Na verdade, no que convém ainda mais ao ponto anarquista, Kant está bem ciente de que a maioria pode marchar contra o direito da mesma forma que qualquer indivíduo tomado isoladamente. Na verdade, ele parece acreditar que a tendência da maioria sempre será optar pelo bem-estar, em detrimento da justiça.

Neste ponto, então, eu pergunto: faz sentido acreditar em um dever moral (categórico) de assinar o contrato social, aquela passagem só de ida para a condição civil? Veja bem, você pode muito bem nem sequer estar envolvido em uma disputa. Kant deixa claro que seu argumento não pressupõe um fato empírico: uma pendenga a ser resolvida. Partamos então do princípio de que você não é um agressor, não violou direito algum. Mesmo assim, você pode ser coagido a adentrar em um tipo de associação onde você ficará absolutamente indefeso caso seus direitos sejam de fato violados? 

É verdade que, mesmo que eu nunca tenha agredido ninguém, o estado de natureza é uma condição em que eu sempre represento para o outro um risco de agressão. Mas, em nome desse mero risco, ele tem o direito de me obrigar a aceitar uma condição em que eu só poderei reclamar verbalmente quando (eu não digo "se" propositadamente, mas bastaria o "se" para meu argumento) meus direitos forem de fato violados pelo Estado?

Para mim, isso não faz sentido algum! Dadas justamente as premissas de Kant, faz mais sentido moral ficarmos no estado de natureza, onde há maior equilíbrio de forças, e ninguém será um Deus entre meros mortais. Vocês se lembram do que Gláucon, partindo de semelhante concepção da natureza humana, diz na República? O maior dos bens é praticarmos injustiças sem sermos punidos. O maior dos males é sermos vítima de injustiça sem podermos nos vingar. Assim, escolhemos o caminho da justiça, que é o caminho do meio, porque o maior dos bens não está disponível para nenhum mortal. Ora, eu digo que o que o argumento de Kant faz é apenas entregar o anel de Giges para um mortal (ou muitos deles). O que fizeram com o anel? A história mostra...