terça-feira, 26 de novembro de 2013

Teria Nozick sido o maior dos anarco-capitalistas?


Sabe quando você lê uma obra de ficção até o final e o desfecho o surpreende de tal maneira que você precisa atribuir um novo sentido a tudo que leu até ali para encaixar aquela conclusão em um todo coerente? Foi assim que eu me senti finalizando a leitura mais rigorosa que fui capaz de fazer da primeira parte de Anarquia, Estado e Utopia

Logo no prefácio dessa obra, Nozick havia declarado sua posição no debate político: ele defenderia o Estado mínimo, entendido como um Estado limitado às funções de proteção contra violência e fraude. Foi por essa razão que, aqui mesmo, eu o classifiquei como um liberal clássico, reservando o termo libertário aos anarco-capitalistas, para maior organização de minha leitura pessoal do debate. 

Também a segunda parte da obra de Nozick, devotada à crítica da teoria da justiça de John Rawls e outras igualmente proponentes de maior intervenção estatal, apresenta a posição do autor como aquela segundo a qual o Estado não deve ir além do mínimo, o que, em termos de configuração final da sociedade na prática, não nos diz muito quanto a diferenças essenciais entre a concepção de Estado de Nozick e aquela de qualquer liberal clássico.

Neste post, pretendo explicar por que não acho mais que seja simples assim, ou seja, por que passei a considerar indevida a classificação de Nozick como um combatente das fileiras do liberalismo clássico ou um mini-arquista em sentido próprio.

Confesso que, desde o início de minha leitura da primeira parte de Anarquia, Estado e Utopia, eu me preparei para presenciar um fracasso filosófico retumbante. Explico. Nozick se comprometeu com a premissa tipicamente libertária, de acordo com a qual a associação entre os indivíduos não produz novos direitos. Em outras palavras, conforme essa tese, um grupo de indivíduos não possui qualquer direito que não possa ser reduzido à soma dos direitos individuais de seus membros. Assim, os direitos civis já seriam todos direitos naturais. 

Ora, por outro lado, via de regra, entendemos a autoridade política constitutiva do Estado como a alegação de um direito especial por parte de um grupo de indivíduos: apenas os agentes do Estado teriam o direito de executar a justiça dentro de um dado território. Dentro da tradição weberiana, isso pode ser explicado como a alegação de um direito ao monopólio do uso da força dentro de um território. Com isso, para que uma instituição cumprisse ao menos com o requisito mínimo para ser chamada de Estado, constituindo-se, portanto, como Estado mínimo, ela já teria que violar a premissa libertária da inexistência de quaisquer direitos especiais na condição civil. 

Agora, você entende por que eu estava incrédula quanto à capacidade de Nozick de justificar o Estado mínimo sem contradizer a premissa libertária de seu argumento: seria impossível justificar o Estado sem fazer com que, da associação dos indivíduos em sociedade civil, surgisse esse novo direito à exclusividade da execução da justiça.

Verdade seja dita, embora, no início da obra, Nozick tenha explicado o problema do Estado nos termos da tradição weberiana, a menos que algo tenha me escapado, ele não assumiu conosco o compromisso de justificar o Estado entendido nesses termos. Na passagem mais significativa para o ponto, ele diz apenas que:
uma condição necessária para a existência de um Estado é que ele (alguma pessoa ou organização) anuncie que [...] punirá a todos que ele descobrir terem usado a força sem sua permissão expressa. (p. 24)
A partir de então, Nozick pretende mostrar que, para fazerem tal anúncio, os agentes do Estado prescindem de qualquer direito especial. Acontece que o custo desse reconhecimento de que ninguém teria um direito especial de fazer tal anúncio é justamente a perda do direito ao monopólio do uso da força. O que Nozick, de fato, mostrará é apenas que, para que a justiça seja devidamente executada, não basta que o punido seja culpado, mas que saibamos que ele é culpado. A introdução desse princípio epistêmico servirá para demonstrar que qualquer um teria o direito de proibir a execução de uma pena se a culpa do réu não é devidamente comprovada aos olhos do público. É com base nesse direito que, após ter tornado público todos os procedimentos que ela considera especialmente capazes de condenar inocentes, uma organização teria legitimidade moral para punir quem usasse um procedimento diferente dos listados para punir um de seus membros por um crime alegado. 

Acontece que, e isso é fundamental, 1) ninguém fica obrigado a se tornar membro de tal organização; 2) ninguém fica obrigado a permanecer indefinidamente como membro da organização; 3) ninguém fica impedido de fundar outra organização; 4) outros indivíduos e organizações conservam exatamente o mesmo direito de anunciar que punirão quem punir indivíduos com base em procedimentos penais que consideram pouco confiáveis para averiguar a culpa; 5) os agentes de quaisquer organizações podem ser punidos por violações de direitos como quaisquer outros indivíduos. Nozick apenas supõe - e com bons argumentos, creio eu - que a maioria das pessoas faria parte de uma mesma organização ou federação de organizações, que teria mais força para exercer o direito de punir quem executa o direito sem averiguar devidamente a culpa do réu. Assim, haveria um monopólio de fato do direito de executar processos penais contra membros da organização majoritária. Só. Nada mais. 

É isso mesmo que você entendeu: o "Estado" de Nozick opera dentro de uma sociedade da qual fazem parte independentes ou, ao menos, qualquer um pode se tornar independente no momento em que quiser. E, sim, para ser moralmente legítimo, esse "Estado" teria que aceitar a concorrência pelo mercado da justiça dentro do seu próprio território. É por isso que quem leu a Parte I de Anarquia, Estado e Utopia até o fim viu Nozick dizer que, por vezes, em vez de falar em "Estado", para lembrar que ele havia enfraquecido a definição weberiana do conceito, ele falaria em uma "entidade semelhante ao Estado [statelike entity]" (p. 118).

Agora, você deve estar se perguntando: "Ok, parece que Nozick, no final das contas, defendeu uma instituição compatível com o anarco-capitalismo, mas por que isso o tornaria o maior dos anarco-capitalistas?" Muito bem. Era a isso que eu me referia quando disse que, ao chegar ao final do argumento e constatar que Nozick não justifica o que usualmente entendemos por autoridade política, tive que re-significar minha leitura das passagens anteriores. Lembrei-me então que sempre que Nozick havia apresentado problemas inerentes à execução do direito em uma sociedade sem Estado (entendido em sentido weberiano), ele observou, às vezes como quem não queria nada, que o Estado tampouco resolveria aqueles problemas. Por exemplo, você pode dizer que, sem o Estado, não existe consenso quanto ao que seria justo ou injusto para podermos aplicar a justiça. Porém, o Estado tampouco cria esse consenso. Ele apenas impõe um dos conceitos para todos. Ao mostrar como o direito pode ser executado por uma agência privada que, na busca da maximização de seus lucros, acaba agindo com transparência pública e imparcialidade, evitando a guerra, Nozick mostra que, no mínimo, a execução do direito na sociedade anarco-capitalista é tão factível quanto no Estado weberiano. 

Em suma, eu aprendi com Nozick que o executor público do direito não deve ser o Estado weberiano, exatamente porque ninguém tem uma prerrogativa natural sobre os demais para decidir o certo e o errado. É essa a distinção que Nozick faz no capítulo 6, na seção que versa justamente sobre legitimidade, entre uma organização que tem certos poderes apenas porque alguns indivíduos consentiram em transferir seus direitos a ela e uma organização que se julga no direito de que indivíduos transfiram seus poderes a ela. Mais ainda, eu aprendi que o reconhecimento da violência inerente ao Estado weberiano não nos condenaria a nenhum caos social, já que Nozick descreve cenários perfeitamente plausíveis de execução da justiça sem um Leviatã.

Para terminar, eu gostaria de mostrar uma passagem em que Nozick cita Locke e parece confessar seu plano de nos seduzir ao anarco-capitalismo disfarçando-o com o seguro manto da palavra "Estado":
Nós devemos dizer que um Estado que surgiu do estado de natureza pelo processo descrito substituiu o estado de natureza que, portanto, não existe mais, ou nós devemos dizer que ele existe dentro de um estado de natureza e, portanto, é compatível com ele? Sem dúvida, a primeira alternativa se encaixa melhor na tradição lockeana; mas o Estado surge tão gradualmente e imperceptivelmente do estado de natureza de Locke, sem qualquer quebra de continuidade grande ou fundamental, que somos tentados a escolher a segunda opção, a despeito da incredulidade de Locke: "a menos que alguém vá dizer que o estado de natureza e a sociedade civil são uma e a mesma coisa, coisa que eu nunca encontrei alguém que fosse um defensor tão grande do anarquismo para afirmar (§ 94)." (p. 133)
 Parece que Nozick quis ser esse cara...

sábado, 23 de novembro de 2013

Respondendo as questões do NYT


No dia 20 de outubro, o jornal democrata The New York Times publicou uma coluna de opinião em que Amia Srinivasan, basicamente, retrata Nozick como o ideólogo por trás das tentativas mais canalhas de justificativa do status quo. Eu ia parando de ler o artigo no ponto em que a autora chega ao cúmulo de associar o libertarianismo de Nozick a uma "crescente proteção a corporações". Fui mais um pouquinho adiante para ter a infelicidade de ver Nozick sendo culpado até pela "corrente crise econômica". Daí parei.

Resolvi voltar a ler, porque lembrei que os amigos que me mostraram o artigo haviam mencionado algumas questões. Fiquei curiosa para ver quais eram. Pois bem, já que li as questões, vou me dar também ao trabalho de respondê-las.

1. Na ausência de compulsão física direta de uma parte contra outra (ou ameaça disso), qualquer troca entre duas pessoas é necessariamente livre?

Em sua própria resposta, a autora denuncia um equívoco por parte de quem responde positivamente à pergunta, porque essa pessoa estaria negligenciando um tipo de coerção que não é exercido por um agente sobre outro agente, mas sim por parte de circunstâncias, como o fato de um agente ter filhos que passam fome. Bom, Deus dai-me paciência com quem não lê Kant e vamos lá!

É claro que, primeiramente, temos que esclarecer o que entendemos por liberdade aqui. Do ponto de vista interno, podemos nos perguntar se quem passa fome ou, mais ainda, sente a dor de ver seus filhos passando fome, ainda é livre para tomar decisões, ou tem seu arbítrio necessariamente determinado por tais inclinações. Não sou especialista no assunto, mas imagino que a fome, em grau extremo, pode muito bem transtornar as faculdades do sujeito a ponto dele não ter mais condições de ser considerado um agente livre e racional. Agora, se o agente ainda é capaz de deliberação, supondo a validade de uma tese metafísica de acordo com a qual seres humanos teríamos um livre-arbítrio, então o fato do agente ter apenas duas opções diante de si (no exemplo da autora, se prostituir ou deixar os filhos passando fome) não o tornaria menos livre.

A liberdade, como bem lembrou o Aguinaldo em uma de nossas reuniões, não é ampliada ou diminuída conforme o número de opções disponíveis para a escolha. Você não é mais livre para escolher em um restaurante com um cardápio mais variado do que o de outro (para roubar também o exemplo do Aguinaldo). Então, OK, reconheçamos que a situação de um agente que precisa escolher entre X e a morte é uma situação indesejável e desfavorável, mas não digamos que, só por isso, isto é, pela escassez de alternativas, o agente não seria livre para escolher entre elas. Não estupremos os conceitos para conseguirmos chegar às conclusões que desejamos!

Agora, em prol do argumento, suponhamos que o agente pressionado por circunstâncias não seja livre. A questão então seria: o que um agente A teria a ver com a escassez de opções que, independentemente dele, se colocam diante do arbítrio de um agente B? É fácil ver por que Kant disse que o nosso único direito inato é um direito à independência da coerção do arbítrio de outro (não da coerção de circunstâncias), desde que a nossa liberdade não seja ela mesma usada de maneira coercitiva primeiramente. Nesse caso determinado por Kant, eu tenho como exigir daquele que me aprisiona que ele me liberte, quer dizer, o meu direito, se existe mesmo, é obviamente correspondido por uma obrigação por parte de outro.

Mas notem que a autora do artigo admite francamente que, em seu exemplo, são circunstâncias que exercem coerção sobre o agente. Pois bem, cabe a ela o ônus de provar que o agente A tem a obrigação de livrar o agente B de circunstâncias adversas e, acima de tudo, deve ser punido se ele não cumprir com essa obrigação. Em outras palavras, a autora precisa demonstrar a legitimidade de uma obrigação e, mais ainda, a legitimidade de um direito ao exercício da coerção para que a obrigação seja cumprida, pois também é possível que haja obrigações meramente éticas, no sentido em que não podemos ser externamente forçados a cumpri-las. Neste debate sobre políticas de Estado, afinal, trata-se sempre de saber com que direito a coerção pode ser exercida por um agente sobre outro. Não está em questão, portanto, meramente determinarmos se não seria virtuoso ajudarmos o agente B a ampliar seu leque de escolhas, mas sim se há uma obrigação tal que A possa ser punido por não fazer isso por B.

Assim, o que a autora defende é que, estando o agente B sob a coação de "circunstâncias", o agente A, que não exerceu nenhuma coerção, deve ser, ele sim, coagido por outro agente, no caso o Estado, a libertar o agente B. Eu, realmente, não vejo como essa tese faria sentido sem toda uma teoria de acordo com a qual se provasse que B, de fato, encontra-se em tais circunstâncias por responsabilidade de A.

2. Qualquer troca livre (não compelida fisicamente) é moralmente permissível?

Li e reli a resposta que a autora considera libertária. Confesso que não entendo o que ela vê de tão chocante nela. No exemplo da autora, o dono de um latifúndio paga pouco para quem cultiva uma parte de suas terras, que, mais tarde, ele vende por muito. Honestamente, exceto pela aceitação da teoria da mais-valia, que, junto com a teoria do valor trabalho, eu recuso, eu não posso ver qual o escândalo aqui. Novamente, ressalto que está em jogo a justiça (obrigações cujo cumprimento pode ser objeto de coerção externa), e não a virtude. Talvez, o latifundiário não seja virtuoso. Mas, certamente, não acho que ele tenha sido injusto, a menos que se prove que seus pais, de quem ele herdou a terra, tenham adquirido essas terras por violência ou fraude.

3. As pessoas merecem tudo que elas podem conseguir, e somente o que elas podem conseguir, através de livre troca?

Bom, isso eu já respondi aqui. Meritocracia não tem nada a ver com meu libertarianismo (e nem com o de Nozick).

4. As pessoas não têm a obrigação de fazer nada que elas não queiram fazer livremente ou tenham se comprometido livremente a fazer?

Esta é a mais divertida. De fato, de acordo com o libertarianismo, sem um contrato prévio livremente estabelecido, eu não tenho obrigações positivas, mas apenas negativas. Quer dizer, eu tenho obrigações gerais apenas de deixar de fazer algo, mas não de fazer algo. No caso, eu tenho, para com todos, independentemente de contrato, as obrigações de não cometer fraude e violência.

Então, vejamos o exemplo da autora, que ilustraria o absurdo da posição libertária. A caminho da biblioteca, eu veria um homem se afogando. Então, eu calcularia que o prazer de salvá-lo não compensaria o transtorno de me molhar e me atrasar. Assim, como eu não assinei nenhum contrato me obrigando a resgatar esse homem, eu o deixo se afogando e sigo meu rumo.

Creio que, agora, mais do que nunca, vale a distinção que eu venho fazendo entre obrigações simpliciter e obrigações cujo cumprimento pode ser objeto de coerção (portanto, de punição em caso de falta com a obrigação). A autora quer mostrar com o exemplo que Nozick precisa estar errado, porque qualquer um discordaria da conduta desse homem que deixou o outro se afogando. Da perspectiva do senso comum, diz ela, a moral de Nozick é absurda. Pois eu digo que ela falha mais uma vez em fazer as devidas distinções.

Eu não sei quem é o porta-voz do tal "senso comum" que a autora evoca com tamanha autoridade. Eu diria, mais modestamente, apenas que muitos concordariam que o homem não fez a coisa certa, supondo que ele fosse um excelente nadador e um homem muito forte. Afinal, a autora despreza até o fato de que muitos poderiam morrer fazendo o que ela parece ver como um gesto tão simples. Por caridade, vou até arrumar o exemplo dela e dizer que a pessoa seguiu seu rumo sem chamar socorro para quem estava se afogando. Muito bem. Eu diria que a pessoa que não faz o mínimo de esforço para socorrer quem está agonizando diante dela não é virtuosa. Mas isso é diferente de dizer que ele deve ser punido por omissão de socorro em um acidente que ele não causou.

Na verdade, assumir que as pessoas podem ser coagidas a prestar socorro, quando esse socorro não representa um custo alto demais, parece ter, sim, implicações que não parecem agradar tanto ao paladar do nosso querido "senso comum". Naturalmente, a autora do artigo não deve estar prioritariamente preocupada com leis que punam a omissão de socorro em acidentes. O meu exemplo, penso eu, é que vai ilustrar melhor o ponto dela e, talvez, colocar de forma mais honesta, diante do tribunal do "senso comum", o que ela quer verdadeiramente defender.

Hoje é sábado. Possivelmente, você está se arrumando para sair com os amigos. Você não é o rei do camarote, mas vai gastar algum dinheiro em cerveja. Um dos seus amigos, porém, toma à força metade do dinheiro que você tinha guardado para a cerveja. Você se exalta diante da explicação de que não vai te fazer mal nenhum tomar metade da cerveja que você tinha planejado tomar. Mas, então, ele explica que agiu por uma boa causa. Ele gastou o valor (que ele dobrou com recursos próprios) em uma doação para um projeto que salva a vida de crianças africanas, investindo em coisas tão básicas como água potável. E o que são umas cervejas a mais diante de quem não tem água potável?

Eu termino este post de respostas libertárias com uma questão libertária para o senhor "senso comum": seu amigo tinha esse direito?

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Sobre unicórnios de dois chifres



Como se ainda precisasse, farei uma confissão franca, amigos. Não sou apenas alguém que se debruça quase que diariamente sobre a obra de Kant há 15 anos, eu sou kantiana, no sentido em que comungo dos princípios mais essenciais da filosofia de Kant. Eu me considero uma filósofa kantiana contemporânea, ou seja, alguém que mobiliza tais princípios - contra a letra de Kant, se preciso for - para lidar com questões atuais. Assim, o meu kantismo não é uma estratégia acidental e oportunista para defender preferências subjetivas por uma economia de livre mercado. Bem ao contrário, eu cheguei a minhas convicções libertárias como derivações do compromisso com uma certa leitura que faço do direito kantiano. Tanto é assim que eu fui informada de que o nome do que eu estava defendendo, a partir de Kant, era libertarianismo, bem antes de saber da existência de filósofos como Rothbard e Nozick. Qual não foi então minha alegria ao descobrir em Nozick um filósofo que defende suas teses morais libertárias usando Kant contra os utilitaristas. E qual não foi então o meu espanto ao ouvir falar de, pasmem, libertários utilitaristas, o que me soou desde o início como "unicórnios de dois chifres".

Neste post, quero então tratar dos equívocos que penso estarem subjacentes a essas aproximações entre o libertarianismo e o utilitarismo. O primeiro equívoco, para o qual darei menos atenção, diz respeito a uma crença de que argumentos utilitaristas seriam necessários, porque uma defesa deontológica do libertarianismo não seria persuasiva o bastante do ponto de vista popular. Para expor o segundo e mais grave equívoco, mostrarei que o princípio do utilitarismo (seja lá que forma específica ele tome) exige o abandono do individualismo e do subjetivismo, podendo promover então apenas, no máximo, uma caricatura do libertarianismo. Essa é a razão pela qual chamo os auto-intitulados "libertários utilitaristas" de "unicórnios de dois chifres". Por último, exponho um equívoco que está relacionado à crença de que um utilitarismo libertário teria um ônus epistemológico menor do que o do jusnaturalismo libertário. Mostrarei que o ônus é exatamente o mesmo, ou até maior.

Tenho para mim que a alegação de um suposto apelo popular do utilitarismo tome por base uma apresentação desonesta da doutrina. Certos populistas estão vendendo para o público a ideia de que, segundo o utilitarismo, algo é certo quando torna a todos mais felizes, quando, na verdade, a tese utilitarista resolve conflitos exatamente pesando o que favorece à maioria, pois se uma decisão favorecesse a todos, nem sequer haveria o dilema prático e a necessidade de uma teoria moral para lidar com ele. Em outras palavras, em vez de afirmar que uma sociedade pautada pelo livre mercado beneficiária mais a todos, sem exceção, o verdadeiro utilitarista defensor do livre mercado não teria qualquer problema em reconhecer o prejuízo de uma minoria no abandono do governo interventor. 

Como Rothbard insistia, o Estado corporativista é defendido pelos conservadores, exatamente porque ele seria o melhor para uma elite. Mega-empresários e políticos à parte, existe ainda uma sub-elite - da qual, aparentemente, eu, como servidora pública, faço parte - que também se beneficia da situação de Estado forte. Se eu pensar exclusivamente nos meus interesses privados, não tenho nenhuma razão para desejar a privatização da UEL, por exemplo. Ademais, como o Aguinaldo já observou em uma reunião do nosso grupo, os próprios miseráveis estarão mais interessados nos benefícios imediatos dos programas sociais e políticas públicas do que na perspectiva de uma sociedade futura economicamente mais próspera. Sem os programas sociais, é verdade para muitos que se morre de fome antes dos efeitos do livre mercado se fazerem sentir algum dia! Aliás, mesmo dentro do livre mercado funcionando a pleno vapor, a situação dos inaptos é mais frágil e incerta. Eles dependerão pura e simplesmente de caridade voluntária. Ora, por definição, o que é voluntário pode não acontecer, a depender da vontade do agente. 

Enfim, o defensor honesto do utilitarismo de livre mercado tem que reconhecer que o Estado atuante não é um malefício universal, o que também em nada contraria as premissas do utilitarismo, mas, ao contrário, mostra por que haveria um motivo para precisarmos do utilitarismo.

Temos até aqui, portanto, que o utilitarista honesto, ao alegar ter mais poder de persuasão, tem que convencer o público de que é lícito sacrificar um inocente pelo bem de muitos. Note uma coisa importante. Não vale introduzir sub-repticiamente o deontologismo e apresentar a minoria como se ela estivesse para sofrer um prejuízo merecido, dada alguma suposta agressão inerente ao seu benefício atual. Sem o apelo a um princípio deontológico, não podemos falar em um grupo cujos direitos são violados por outro. Trata-se apenas de calcular quantos colhem mais benefícios em cada situação. 

Ora, desculpem-me, amigos unicórnios de dois chifres, mas com isso eu posso mostrar como seu utilitarismo, uma vez desnudado, não tem popularidade nenhuma. Como eu prometi que me deteria pouco nisso e já me estendi demais, na verdade, eu vou transferir o ônus para você e pedir que você me passe sua lista de obras de ficção em que um herói, de grande apelo popular, sacrificou um inocente pelo bem de muitas pessoas, como na decisão utilitarista para o dilema do Trolley. A minha lista de obras de ficção de sucesso anti-utilitaristas seria bem longa!

Mas sabe por que o povo é... digamos, "kantiano"... e gosta de heróis deontológicos? Simples, é o contrário: foi Kant quem foi buscar seu princípio deontológico nos juízos morais da razão comum. Ao contrário de Ayn Rand, ele não quis ensinar ao povo o que é moral. Quis aprender com ele para esclarecê-lo. Mas, chega do fracasso de popularidade do utilitarismo, sempre que não usam de um deontologismo camuflado.

Passemos ao segundo ponto, que, na verdade, já foi preparado em minha abordagem do primeiro. O que devemos perguntar agora é qual o pressuposto dessa regra, segundo a qual, grosso modo, uma norma é correta se beneficia a maioria. Eu creio que Nozick tenha razão quanto a esse pressuposto e, se ele tem razão, prova-se meu ponto quanto ao utilitarismo ser oposto ao libertarianismo. Esse pressuposto, de acordo com Nozick, seria a existência de algo como um ente social.

Veja. Se um diabético corta um dedo para não perder o pé, isso só faz sentido, porque o dedo faz parte do mesmo corpo que o pé. Assim, o corpo perdeu uma parte mínima para conservar uma mais essencial ou maior. Em outras palavras, a saúde do pé, para o corpo em geral, compensou o sacrifício do dedo. Agora, como Nozick diz, não existe o equivalente a este organismo quando passamos ao plano social. Ele sustenta a tese da separabilidade de cada vida para mostrar que o sacrifício de uma vida é e sempre será apenas seu sacrifício, não sendo em nada compensado pelo benefício gerado aos demais indivíduos, que vivem suas próprias vidas.

Eu cito o argumento de Nozick apenas para mostrar a mútua exclusão entre individualismo e utilitarismo. Lembre-se sempre que, quando um utilitarista defende um direito individual, é apenas porque ele acredita no impacto positivo que o exercício desse direito terá na somatória do bem social, e não por que ele defenda o indivíduo pelo indivíduo. O enfrentamento entre Nozick e os utilitaristas traz esse fato à tona em toda sua plenitude.

Um outro ponto do argumento utilitarista pelo livre mercado também parece inaceitável para um libertário. Eu me refiro ao seguinte. Se a norma é válida quando beneficia mais à maioria, temos que ter uma teoria objetiva de bens universalmente válidos, para podermos saber no que, afinal, consiste um benefício. Por exemplo, ainda que se aceite que o livre mercado gera mais prosperidade material para a maioria, quem disse que não haverá perdas no que diz respeito a outros valores, que serão mais preciosos para muitos do que a prosperidade material? Não é à toa que, volta e meia, um defensor do livre mercado precisa se ver diante da defesa de um "estilo de vida", digamos assim. É como se fosse possível provar que, para qualquer ser humano, uma vida pautada em mais tecnologia e conforto material é mais desejável do que qualquer forma de vida que a industrialização tenha deixado para trás.

Por exemplo, dizem que o próprio Nozick, após Anarquia, Estado e Utopia, teria se tornado mais transigente em seu libertarianismo por reconhecer funções simbólicas do Estado. Inclusive, muitas monarquias são mantidas, em pleno século XXI, porque simbolizam a unidade nacional desejada pela maioria. Muitos valorizam a vida em uma sociedade paternalista muito mais do que valorizariam a vida em uma sociedade livre, exatamente porque, assim, se sentem amparados como em uma família, onde se obedece o pai, mas também se recorre a ele nas dificuldades. Na verdade, como era de se esperar, pesquisas costumam mostrar imensa aceitação de medidas paternalistas. É o paternalismo que me garante o conforto de não precisar pensar no que é melhor para mim nem quando escolho um biscoito no supermercado (papai governo vai retirar dele a gordura que faz mal!). Em suma, como dizia Kant, a saída da menoridade não é algo que fazemos de bom grado.

Bom, como kantiana, eu tenho um motivo para querer que as pessoas saiam da menoridade e rejeitem o paternalismo de Estado: a dignidade humana não é compatível com a menoridade e o paternalismo. Mas se as pessoas são felizes assim, qual seu motivo, utilitarista? Você vai dizer que a maioria das pessoas apenas pensa que o paternalismo é o melhor para elas, quando deveriam rejeitá-lo para se tornarem mais felizes? Olha, boa sorte tentando mostrar que essa posição é compatível com uma filosofia libertária! Mas acho que, no máximo, você vai conseguir mostrar que o livre mercado é compatível com mais iPhones circulando na sociedade, não com mais gente feliz.

Suponhamos que você tenha concordado comigo que o utilitarismo que mostra as caras como tal não é popular coisíssima nenhuma. Suponhamos ainda que você compreenda meu ponto sobre o antagonismo entre o libertarianismo e o utilitarismo. Resta ainda abordar um ponto da suposta vantagem da defesa utilitarista do libertarianismo: o utilitarismo seria epistemologicamente mais defensável do que o jusnaturalismo.

Eu sempre acho patético quando um libertário começa a querer se desvencilhar do jusnaturalismo, porque o assimila à famosa falácia "is-ought" denunciada por Hume, ou qualquer variável da falácia naturalista, mas nem desconfia que direitos naturais, desde Kant, podem significar apenas direitos a priori. Em outras palavras, em Kant, a doutrina é "ought-ought", não "is-ought". A questão é que o primeiro "ought" é a priori, e só por isso, natural.

Mas espera aí que a coisa fica bem estranha, viu? Eles querem evitar uma teoria jusnaturalista para não assumirem compromissos epistemológicos de tamanha monta. E então, o que eles fazem para justificar o livre mercado para além de um acidente histórico-geográfico? Isso mesmo: eles recorrem a uma teoria universal que pretende garantir que, seja lá qual for o contexto de vida em uma sociedade humana, o livre mercado, a longo prazo, sempre trará os mesmos efeitos (aqueles que eles consideram benéficos). Que tipo de teoria é essa? Pois é, pasmem, trata-se de uma teoria a priori da ação humana - eu repito: teoria... a priori... da... ação... humana - que eles chamam de "praxeologia". Sim, além de se tratar de uma teoria tão apriorística quanto o direito kantiano (ou mais?), ainda se trata de uma teoria descritiva da realidade, e não meramente normativa como o direito kantiano. Bem-vindos de volta à metafísica racionalista do séc. XVII, amigos, porque até a física newtoniana já era epistemologicamente mais modesta (muito mais)! Aliás, eu me pergunto se deveria a economia substituir a física como a mais exata das ciências naturais. Ou mesmo se deveria a economia figurar no rol das ciências formais, ao lado da matemática e da lógica.

Para terminar, apesar de eu ficar chocada com o estatuto epistemológico que certos libertários atribuem à economia, meu objetivo nem é criticar a tal "praxeologia". Só a menciono para desmascarar a pretensão dos utilitaristas libertários de terem alguma vantagem epistemológica sobre jusnaturalistas. De minha parte, fico feliz por não precisar assumir a incumbência de defender esse negócio. Qualquer um que conheça um pouco de teoria do conhecimento vê que minha tarefa como defensora do direito racional é infinitamente mais fácil do que a tarefa de defender uma... err... economia racional!


quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Esquerda e Direita: um breve exercício de lógica


Este breve post tem um objetivo pretensioso: demonstrar o quão pueril é a tentativa de dividirmos todas as posições políticas possíveis em apenas duas, direita e esquerda, abrindo margem somente para a classificação entre os mais ou menos radicais dentro de cada grupo. 

Muito bem. Digo que a prática é pueril, porque qualquer criança já se deu conta de que, dado qualquer conceito possível, de fato, é possível dividir todos os objetos possíveis entre aqueles que fazem parte da esfera desse conceito e aqueles que ficam fora dela. Por exemplo, você pode dividir o mundo entre fumantes e não-fumantes. E, então, é claro, você pode estabelecer graus de adesão ao fumo, indo desde aquele ente que nunca tocou em um cigarro (uma pedra em Marte ou minha tia-avó, por exemplo) até aquele que fumou compulsivamente por décadas. Com isso, seu pensamento funciona em uma linha reta, onde cabem todos os objetos, separados apenas conforme sua maior proximidade com cada extremo oposto.

Remontando à origem dos conceitos de direita e esquerda, podemos dividir todas as pessoas entre conservadores e não-conservadores. Mas, agora, eu vou tentar explicar por que tenho a impressão de que esse procedimento não nos ajuda em nada, ao menos em matéria de política.

Retomando a ideia de um conceito A e sua esfera, quando você divide o mundo entre os objetos A e não-A, a rigor, você não determinou em absoluto os objetos não-A. Em outras palavras, juízos do tipo "x é um não-fumante" são juízos infinitos, porque deixam em aberto infinitas maneiras de "x" ser positivamente qualificado, excluindo apenas o predicado "fumante". 

Ora, eu, por acaso, sou "não-fumante". Ao saber disso, porém, tudo que você sabe que eu tenho em comum com "x", na verdade, é a exclusão de um predicado A. Disso, não se pode concluir imediatamente que "x" e eu pertençamos à esfera de um determinado conceito B. Em suma, o fato de "x" e eu não compartilharmos um dado predicado A (não fazermos parte da esfera de um mesmo conceito A), "fumante", não implica que, por outro lado, positivamente, compartilhemos um predicado B (façamos parte da esfera do conceito B).

Parece-me, é verdade, que até teríamos que afirmar que teria que existir algum conceito geral o bastante para englobar a mim e a "x", visto que conceitos são organizados por subordinação. Mas o que importa para o meu ponto é que você não sabe qual é esse conceito na esfera do qual estou na companhia de "x", simplesmente ao saber, sim, que "x" e eu estamos igualmente fora da esfera de um outro conceito.

Você já deve ter entendido onde quero chegar com essa lógica de botequim, não é? Em geral, quem usa as etiquetas "direita" e "esquerda", está aplicando um conceito qualquer com o qual pretende separar todas as posições políticas, tomando juízos infinitos como se eles fossem semanticamente determinantes.

O sujeito diz, por exemplo: "existem aqueles que são socialistas e existem os não-socialistas". Com isso, ele quer dizer que os não-socialistas pertencem todos a uma mesma categoria positiva, no caso: a direita. E é assim que eu acabo lá, jogada no mesmo saco que o Olavo de Carvalho e o Marco Feliciano, como se o fato de não compartilharmos um certo predicado implicasse no fato de compartilharmos um outro predicado determinado. 

Acontece que eu posso usar o mesmo truquezinho lógico. Posso dizer: "existem aqueles que são liberais e existem os não-liberais". Pronto, assim, eu jogo socialistas e fascistas no mesmo saco, como se existisse positivamente o saco "não-liberal", do mesmo jeito que existe o saco "liberal".

Por fim, eu pergunto: o que ganhamos com esses joguinhos de criança? Não seria mais interessante se parássemos de dividir o mundo apenas entre aquilo que somos nós e aquilo que não somos nós, e começássemos a nos empenhar mais pela compreensão positiva do que são esses outros, em suas particularidades, diferenciando-os também entre si? Garanto que, com isso, você não conseguiria dividir o mundo todo em apenas duas categorias, com meras variações internas de grau. Mas por que você quer tanto isso afinal?

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Liberalismo clássico e libertarianismo: uma revisão

Como eu falei, escrevo para colocar as ideias em ordem para mim. Como sempre, conversar com Aguinaldo me ajuda muito nisso. Estava contando para ele sobre o post aí abaixo, porque eu estava insatisfeita com o fato de eu ter concluído esse post sem oferecer propriamente uma definição de libertarianismo. E o pior é que, de fato, nós dois achamos que, se você pegar o pacote de teses do Nozick e comparar com o pacote do liberalismo clássico, você não encontra diferenças essenciais. Por isso mesmo, eu tinha dito no primeiro post que a diferença estaria no problema, e não nas posições adotadas.

Mas, nesse caso, o que parece mais adequado de se dizer, ao contrário do que eu tinha dito, não é que Nozick é diferente dos liberais clássicos, porque enfrenta um problema que eles não formularam, mas sim que Nozick é um liberal enfrentando a novidade do libertarianismo, mais precisamente a novidade de um estado de natureza construído como uma sociedade anarco-capitalista.

Se o termo neoliberal não fosse o maior de todos os Frankensteins da política, poderíamos até arriscar dizermos que Nozick seria um neoliberal: uma nova formulação do liberalismo para uma nova questão. Mas Deus me livre desse termo! Eu nunca faria isso com o pobre Nozick!

Então, o negócio é que, para organizar as coisas na minha cabecinha (lembrando que você organiza a sua como bem entender), doravante, reservarei o termo "libertário" para designar o anarco-capitalista, ou seja, aquele que acredita na nessecidade da figura do executor do individualismo jusnaturalista, mas que não acredita no monopólio do direito a essa execução. Já o termo "liberal", eu vou aplicar a todo defensor do Estado mínimo, portanto, mesmo àquele que elabora sua teoria em resposta a Rothbard.

Mas, é claro, vocês podem continuar usando os termos da forma confusa como sempre usaram. Eu perguntarei do que vocês estão falando e então guardarei cada teoria diferente em uma gavetinha semântica diferente no meu armário mental. Como já devem ter notado, tenho uma espécie de TOC relativo à arrumação desse armário, talvez, por ele ser pequeno...

 

Liberalismo clássico e libertarianismo: por que dois "ismos"?


Amigos, vocês sabem que uso este blog como um espaço para construção e organização das minhas ideias. Pois bem, é bem neste espírito que escrevo este post. Vocês também não têm se sentido perdidos em meio a tantos "ismos" em filosofia política? Aliás, já pararam para pensar por que usamos os "ismos". Naturalmente, esses termos são etiquetas que colamos em conjuntos de ideias para separá-las de outras e uni-las entre si. 

Já pensou se, a cada vez que você fosse explicar sua posição política, você tivesse que oferecer uma lista de todas as teses que você defende seguida de uma lista de todas as teses a que você se opõe? É claro que é muito mais prático simplesmente usarmos um termo que já expresse aquela associação de alegações, o que, grosso modo, corresponde ao que chamamos de "teoria". Também é claro que você pode discordar de algo em cada teoria já formulada. Nesse caso, você pode ser bravo o bastante para criar a sua própria teoria, reunindo elementos de umas com elementos de outras. Seu cuidado então, primeiramente, deve ser o de evitar associar ideias incompatíveis entre si. De todo modo, criada sua teoria, você a batizará e, depois de explicar pela primeira vez o significado daquele título que você deu à sua teoria, você passará a empregá-lo nos debates em que sua teoria estiver em questão, para evitar o trabalho de ter que repetir todos os pontos da sua teoria em cada sentença em que você for se referir a ela.

Bom, o que acontece na sequência, nós todos sabemos. Como todos repetiremos o título da teoria sem fazê-lo ser acompanhado de todo o conjunto articulado de teses que ele expressa, o que, afinal, o tornaria inútil, as pessoas começarão a usar o termo para designar conjuntos cada vez mais diferentes de teses. Isso pode acontecer por várias razões. Pode ser porque a pessoa que usa o termo nem sequer conhece as teses originais que ele designava, mas também pode ser por má-fé, porque o termo se tornou popular e a pessoa quer se apoderar dele para emprestar popularidade à sua própria teoria. 

Seja lá como for, o fato é que, no final, usamos os mesmos termos para falarmos de teorias diferentes. Ou seja, os termos se tornam inúteis e até mesmo prejudiciais ao debate. Há debates - muitos, inclusive - que nunca chegam à conclusão alguma, exatamente porque um dos interlocutores associa um sentido enquanto o outro associa outro sentido a um mesmo "ismo". E eles nem percebem que o motivo de estarem discordando é estarem falando de coisas distintas sem saber!

Mas basta sobre a importância da precisão terminológica e meu desespero pela falta dela. Eu tenho pensado em especial em uma maneira de distinguir o liberalismo clássico do libertarianismo. Infelizmente, não adianta tentar fazer um balanço entre os autores que se auto-declaram membros de uma ou outra corrente, exatamente porque os dois termos já estão sendo usados para designar de tudo um pouco. Em especial, o termo "libertarianismo" já está praticamente perdido, porque foi tomado pelos liberais clássicos americanos que queriam se diferenciar dos esquerdistas, quando estes últimos passaram a se auto-intitular "liberais", bem como também pelos esquerdistas que querem se distinguir dos democratas (os tais left-libs).

Em meio a esse caos terminológico, eu pensei então que poderia ser produtivo examinar a questão da diferença entre o liberalismo clássico e o libertarianismo de modo mais filosófico do que histórico. Mas veja que, se simplesmente fizermos um balanço de posições finais, também podemos equiparar teorias diferentes. Por exemplo, Nozick se diz libertário, mas defende o Estado mínimo do liberalismo clássico. Sendo assim, por essa via, eu poderia dizer tanto que Locke teria sido um libertário quanto que Nozick teria sido um liberal clássico. Eu poderia dizer, enfim, que os dois termos são intermutáveis e, portanto, que não precisamos de dois termos! Ora, mas eu leio Locke e leio Nozick, e vejo que são diferentes! Portanto, tem algo mais aqui que não estamos captando. Algo estrutural que explica por que devemos usar um termo para um e outro para outro. Eu tenho um palpite do que seja.

Antes de introduzir meu palpite sobre o modo como devemos traçar a distinção entre liberais clássicos e libertários, permitam que eu proceda primeiro a uma divisão mais ampla entre individualismo e coletivismo. Primeiramente, eu digo então que liberais clássicos podem ser também coletivistas. Calma! É que eu estou classificando os utilitaristas como coletivistas. Classifico assim, porque o utilitarista,  de uma forma ou de outra, pensa em uma espécie de entidade social a ser beneficiada ou prejudicada pelas normas a serem praticadas. Com isso, um utilitarista pode ser pró-livre mercado, pró-propriedade privada, etc... mas ele o será tendo em vista benefícios para uma coletividade, e não o indivíduo como um fim em si mesmo. É nesse sentido que eu jamais classificaria um utilitarista como um libertário. O meu pensamento fica mais organizado se eu reservo o termo "libertário" para aplicá-lo a individualistas, isto é, teóricos que consideram os direitos individuais como absolutos, e não como meios para favorecer alguma entidade social.

Agora, o meu próximo problema para chegar a uma definição apropriada de libertarianismo diz respeito a como distinguir os individualistas que são liberais clássicos dos individualistas que são libertários. Veja que estou aqui buscando uma diferença específica dentro do gênero comum do individualismo jusnaturalista. Calma de novo! Jusnaturalismo, eu entendo aqui em sentido amplo, englobando também uma teoria moral pautada em princípios racionais, como a de Kant. Como eu farei essa distinção de espécie dentro do gênero?

É aqui que eu apelo à diferença no modo de colocar o problema da filosofia política. Para a tradição jusnaturalista em geral, o direito natural precisa de um executor, do contrário, não seria direito. Agora, pense o seguinte: quem, antes de Rothbard, levou a sério a possibilidade do direito ser executado por outro agente que não o Estado? Você vai dizer: "ora, em Locke, no estado de natureza, todos são executores do direito". E você tem razão. Mas note que é por isso mesmo que, em umas míseras cinco linhas, Locke nos tira do estado de natureza. Ele não considera viável que o direito seja executado no estado de natureza. 

Perceba que o problema, para Locke, é a parcialidade do executor sem o Estado. O fato é que, segundo Locke, no estado de natureza, em última instância, o juiz é Deus. Em caso de divergência irreconciliável entre duas partes, não há uma terceira instância a se apelar. As partes partem para a guerra e Deus decide o vitorioso. Aliás, quando Locke diz: "Deus será o juiz"; parece-me que ele sempre quer dizer: "decide-se pela guerra". Mesmo em Kant, o que me dá o direito de obrigar alguém a sair do estado de natureza é justamente essa ausência de um terceiro para ser o executor do direito sem unilateralidade. Pois bem, é isso que muda com Rothbard. Por isso, temos inaugurada uma nova tradição, que merece um novo nome: libertarianismo.

Para explicar isso um pouco melhor, permitam que eu comente brevemente, agora, a diferença entre o anarquismo libertário de Rothbard - o anarco-capitalismo - e o anarquismo em geral. Via de regra, quando falamos em anarquismo, a primeira reação de qualquer pessoa é de pensar que estamos falando em uma sociedade sem execução do direito. Por isso, a reação é de descrença, quer dizer, a reação mais comum é a pessoa dizer que a natureza humana não condiz com esse tipo de sociedade. Ora, é claro, a pessoa quer dizer que a natureza humana é propensa ao conflito, que esse conflito precisará ser resolvido, ou seja, que o direito precisará ser executado (imposto!) e que o Estado é a única instância capaz de fazer isso sem unilateralidade. Bem, o libertário, nesse momento, concordará com todas essas alegações, exceto pela última. 

Para o anarco-capitalista, haverá conflitos insolúveis por acordo e o direito precisará ser executado no estado de natureza. Porém, será preciso que cada indivíduo dê seu próprio consentimento para que um tribunal tenha autoridade especial sobre ele, o que significa que o tribunal precisará ser contratado. Sem esse consentimento explícito por parte de um indivíduo, um tribunal tem sobre ele apenas o mesmo poder que qualquer outro indivíduo possui: o de punir agressões. 

Agora, note algo interessante. Locke, mesmo após listar as inconveniências do estado de natureza, fala sobre essa mesma necessidade de consentimento próprio para que o indivíduo deixe o estado de natureza. Ele é textual quanto a isso e, no § 95 do Segundo Tratado, citado por Nozick, chega a dizer que os indivíduos que não dão seu consentimento próprio são deixados no estado de natureza. Pois é, já tinha reparado nisso? Para Locke, alguns entram no Estado, outros, não. Qual a novidade então do libertarianismo? A novidade de Rothbard foi perceber que, se é assim, não existe Estado, amigos! Esse executor do direito de Locke, que acaba com as inconveniências do estado de natureza, na linguagem de Rothbard, não é Estado!

Aparentemente, nunca ocorreu a Locke que o contrato daqueles indivíduos pelo qual outros são deixados no estado de natureza não teria o poder de fundar um Estado. Porém, foi bem para isso que a tradição libertária atentou! Como Nozick diria, nesse ponto onde Locke nos deixou, achando que já tinha fundado o Estado, não temos Estado ainda, justamente porque não temos monopólio da execução do direito. O problema do Estado, colocado em termos novos pelo libertarianismo e nunca percebido pelo liberalismo clássico, é o problema de dizermos àqueles independentes que eles não podem executar o direito. Na verdade, o liberalismo de Locke nem tinha como colocar o problema nesses termos, porque é depois de Weber que definimos o Estado como o monopólio da execução do direito.

Para resumir - e tentar ser clara - no liberalismo clássico, o problema era: Precisamos de um executor do direito. Quem é o executor do direito? O Estado! E quem não consentir com o Estado? Ah, ficou lá esquecido no estado de natureza, como se não houvesse problema algum nisso (Locke), ou foi forçado a aderir ao contrato como se fosse um agressor só por não aderir (Kant). No libertarianismo, por outro lado, o problema é: como pode ser moral impedir aquele que não deu seu consentimento a nenhum tribunal de executar o direito por conta própria? Se essa questão não for respondida, não justificamos moralmente o Estado, porque existirão diversos executores do direito, igualmente legítimos, dentro de um mesmo território. 

Note ainda que você não pode simplesmente considerar óbvio que as pessoas deixadas no estado de natureza possam ser impedidas de executar o direito, como parece ser o caso em Kant. Como pode ser moral que você puna alguém por fazer exatamente aquilo que o Estado faria? É isso que está em jogo! Para que haja Estado, ou seja, monopólio da execução do direito, o Estado deve punir qualquer um que execute o direito em seu território. Isso significa que o Estado deve punir aquele indivíduo A que aplicou a um indivíduo B, realmente culpado, a mesma punição x que ele próprio (Estado) aplicaria no mesmo caso. Essa é a implicação da definição de Estado da tradição weberiana. Mais do que isso, essa parece ser a definição correta de Estado, tendo em vista o que realmente faz aquilo que chamamos de Estado. Afinal, o que chamamos de Estado na vida prática não permite que você faça justiça com as próprias mãos, mesmo se o que você fizer corresponder ao que ele próprio faria diante das mesmas circunstâncias. 

Para a tradição jusnaturalista específica que se inicia com Rothbard, por conseguinte, a moralidade do Estado está em questão,  porque é necessário explicar por que é legítimo punir um indivíduo só por executar a justiça. Nozick pertence a essa tradição, e não à tradição do liberalismo clássico, porque ele assume o ônus de provar que o indivíduo punido por punir sem excesso seu agressor não foi ele próprio agredido. A minha intenção com este post é sugerir que estamos diante de um novo paradigma, mais do que meramente de uma nova teoria, porque o problema a ser resolvido mudou. O Estado que Locke justifica, como eu disse, para um libertário, nem sequer é Estado... Então, meus amigos, usemos "ismos" diferentes, porque, semelhanças à parte, estamos falando de coisas bem diferentes.


segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Subjetivismo Kantiano x Objetivismo


Eu posso estar enganada, mas tenho a impressão que os objetivistas têm em Kant um adversário pelas razões erradas. Parece-me que eles se opõem a Kant em função do idealismo transcendental, doutrina segundo a qual não conhecemos o que a realidade seria independentemente de certas condições epistêmicas. Já os contemporâneos de Kant, para sua fúria, confundiam o seu idealismo formal com o idealismo material de Descartes e Berkeley, portanto, não é de se admirar que os objetivistas cometam o mesmo equívoco.

Eu não pretendo, porém, desfazer o equívoco, explicando as sutilezas do idealismo transcendental em um blog. Já tenho poucos leitores, ficaria sem nenhum. Como não é esse o ponto da divergência entre kantianos e objetivistas, já que, empiricamente, Kant é um realista, eu vou me deter no que vejo, sim, de subjetivismo em Kant. E, por sinal, vejo como a maior virtude de sua filosofia moral.

Para ser mais precisa, a filosofia kantiana compatibiliza subjetivismo e objetivismo: subjetivismo quanto à matéria do querer, objetivismo quanto à forma do querer. O que significa isso? Bom, para explicar, permitam que eu trace um paralelo entre Kant e Ayn Rand. 

Parece-me claro que Kant concordaria com Rand que o conceito de "valor" depende do conceito de "fim" [goal, em inglês]. Essa tese, além do mais, deve mesmo ser aceita por todos nós pelas seguintes razões. Se partirmos apenas de relações de causa e efeito objetivamente descobertas na realidade, algo de suma importância tanto para Kant quanto para Rand, não temos ainda o bastante para derivamos os conceitos de "bom" e "mau". Ao dizermos que "x" causa "y", digamos, que uma aspirina causa o alívio da dor de cabeça, só podemos dizer que a aspirina é boa se o fim for o alívio da dor de cabeça, e não pela simples constatação da relação causal.

Muito bem, o próximo passo comum aos dois filósofos também me parece digno de nossa aceitação. Se nossos fins determinam nossos valores, a cadeia de meios e fins precisa parar em algum fim em si mesmo, para evitar uma progressão ao infinito, que tornaria impossível para o agente racional justificar suas escolhas a contento. É aqui que os dois filósofos tomam caminhos diferentes, o de Rand levando, ao que me parece à primeira vista, a um precipício filosófico. 

Fazendo pouco caso da acusação de falácia naturalista - a derivação de uma conclusão normativa a partir de premissas meramente descritivas - Rand equipara o fim em si mesmo à sobrevivência do organismo do indivíduo:

O fato que entidades viventes existem e funcionam necessita a existência de valores e de um valor último que, para qualquer entidade vivente dada, é a sua própria vida. Assim, a validação de juízos de valor deve ser obtida por referência aos fatos da realidade. O fato que uma entidade vivente é determina o que ela deve fazer. Basta para a questão [so much for the issue] da relação entre o "ser" e o "dever ser".

Ora, mas é claro que não basta! Rand tem a pretensão de nos ensinar o que é ética - para ela, a ciência desses valores derivados do valor último de nossa vida - como se estivéssemos errando há milênios em nossos juízos de valor, o que significa que não é nem um pouco óbvio que a preservação da vida oriente nosso sistema de valores. O simples fato de, segundo Rand, termos a possibilidade de nos auto-destruir já significa que não é óbvio que nosso fim deva ser a auto-preservação. Ela não pode simplesmente derivar um fim último para minha vontade de uma tendência fisiológica de meu organismo. É nisso que consiste a falácia que ela não tem o direito de desprezar ao mesmo tempo em que se pretende uma grande advogada da razão nos conflitos filosóficos. 

Só para ilustrar o meu caso, pense em quem oferece a vida em sacrifício para não ter que presenciar o sofrimento de um ente querido, ou em quem opta por uma vida breve de prazeres intensos a uma vida longa de prazeres mornos. Dizer que um e outro não vivem a vida apropriadamente não justifica o princípio do objetivismo, mas apenas o pressupõe.

Bom, basta, por enquanto, sobre a solução de Rand. Conforme minhas leituras progridam, talvez, eu retome o ponto. Falemos agora da solução de Kant para o problema do fim último de nossa cadeia de objetivos. 

Em primeiro lugar, materialmente falando, nosso fim, para Kant, é a felicidade, não a vida. Nisso, consiste o subjetivismo de Kant, já que a felicidade não permite determinação objetiva. Ela seria apenas um sistema das inclinações de cada indivíduo. Por isso mesmo, da felicidade, Kant deriva apenas regras de prudência, variáveis conforme o indivíduo e o contexto, e não um código de ética. Ademais, da busca da felicidade universalmente constatada não decorre um código de ética, exatamente para evitar a falácia naturalista. 

Agora, a felicidade, como todo kantiano sabe, não forma o todo do fim último para Kant. A felicidade, segundo Kant, deve ser buscada sob a condição da conquista do mérito para ser feliz, isto é, da virtude moral. Mas no que consiste a virtude? Aqui, estamos diante do objetivismo formal de Kant. 

Uso aqui o termo "formal" para expressar uma condição limitadora, um princípio do qual não se pode derivar metas concretas, mas apenas discriminar entre as metas aceitáveis e as inaceitáveis. Somos virtuosos, em suma, quando abrimos mão de determinados cursos de ação que nos trariam a felicidade pessoal, só porque eles não se mostram adequados à exigência formal de que sejam universalizáveis, ou seja, válidos para todos os agentes racionais. A virtude consiste então na disposição de subordinar a felicidade pessoal às exigências formais de universalização da racionalidade. E, note bem, estamos evitando a falácia naturalista, justamente porque estamos falando de exigências normativas intrínsecas à racionalidade, e não derivadas da natureza. A exigência de universalização, no caso, é intrínseca à razão, porque, ao justificarmos qualquer uma de nossas condutas, queremos dizer que qualquer outro, em nosso lugar, poderia ter feito o mesmo. Em outras palavras, é próprio da racionalidade pretender ir além das idiossincrasias de cada um.

É assim que Kant evita o objetivismo de Rand, que nos diz o que devemos querer como fim último e deriva todos os meios desse fim, mas evita também o irracionalismo, já que não podemos praticar toda e qualquer ação que nos prometa uma vida mais feliz. Podemos adotar toda norma de conduta que nos traga a felicidade, mas com a condição de que essa norma também possa ser válida para os outros agentes racionais. Uma vida desonesta, por exemplo, seria eliminada pelo princípio, porque a desonestidade, para ser eficiente enquanto meio de obtenção da felicidade, depende de que os outros pensem que eu sou honesta, ou seja, a eficiência da desonestidade depende de que a regra geral seja a honestidade, e não a própria desonestidade. Assim, eu seria irracional ao ser desonesta, na medida em que eu agiria sob um princípio que só pode ser subjetivamente válido. 

Agora, o fato de eu ter que abandonar regras de conduta que só podem ser praticadas como exceção, não significa que eu tenha que adotar todas as regras de conduta que passem pelo crivo da universalização. O oposto das regras que só valem como exceção é obrigatório (ser honesto, por exemplo). Mas existe uma ampla gama de regras que são tão universalizáveis quanto seus opostos. Como escolher entre elas? Simplesmente, opte pela regra que o torna mais feliz! É aqui que Kant garante o espaço para a subjetividade, na medida em que abre mão de um conceito objetivo de felicidade. É aqui, em suma, que, ao contrário de Rand, Kant harmoniza subjetividade e racionalidade.


terça-feira, 5 de novembro de 2013

O sal e o paternalismo


Matérias como a do Jornal Hoje sobre o governo estabelecendo limites para a quantidade de sódio em alimentos industrializados me causam um profundo desgosto com relação à cultura em que vivemos. Eu, particularmente, nunca compro um produto no supermercado sem conferir antes a quantidade de sódio que ele contém. Se julgo excessiva e não há concorrente oferecendo uma quantidade menor, eu simplesmente desisto do produto. Nem lembro quando foi a última vez em que consumi uma "sopa de pacotinho", por exemplo. Por que vocês não podem fazer o mesmo? 

O governo diz que precisa olhar tudo por nós, fazer escolhas por nós, porque somos muito estúpidos para julgarmos e decidirmos por nós mesmos. Por sinal, o "P" em cada sigla de partido no Brasil poderia significar "paternalismo". O problema é que o paternalismo é um círculo vicioso. Muitos nem pensam em checar a embalagem dos alimentos para verificar o que estão prestes a comer, pura e simplesmente porque pressupõem que o governo já checou tudo por eles. 

É da natureza de poucos, afinal, quererem caminhar com as próprias pernas, tomando a iniciativa ousada de largar da mão dos pais. Via de regra, o pai é que tem que largar a mão do filho, deixar que ele caia algumas vezes, não dar muita bola para o choro, etc. O problema do nosso pai Estado é que ele nunca vai largar a nossa mão por iniciativa própria, pois ele não quer que descubramos que, de repente, ele é que não pode andar sem nós...

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Ayn Rand e o Rei do Camarote


Antes que você me pergunte, não, eu não vi o vídeo e nem li matéria alguma sobre o tal "Rei do Camarote". Mas acompanhei a repercussão no Twitter até enjoar e acho que acabei entendendo sem querer o que se passa. Aparentemente, trata-se de um sujeito que gasta muito dinheiro com produtos e serviços considerados supérfluos. Para usar o verbo favorito daquele blogueiro que é o "Rei do Coletivismo", o sujeito ostenta! Na verdade, por um Tweet que apareceu na minha timeline, parece que o Rei do Coletivismo, inclusive, já veio a público se pronunciar sobre o caso e, nisso, acusou o Rei do Camarote de cometer uma agressão com tamanha ostentação. 

Bom, nessa associação entre agressão e ostentação, eu já comecei a achar a coisa filosoficamente interessante. Depois, eu me interessei mais ainda em dar também meu palpite, quando vi amigos de tendências claramente liberais ou mesmo libertárias defendendo a conduta em questão com base em um suposto efeito econômico da gastança do indivíduo: o giro da economia, a alimentação de toda uma cadeia produtiva para atender à sede de consumo do cidadão ostentador. 

Ora, eu acho que o argumento dos meus amigos versados em economia deve ser válido. Se os economistas de esquerda adoram defender uma gastança governamental - e, para isso, até guerras costumam ser bem-vindas - exatamente por alegarem que ela tem efeitos positivos na economia, por que eu desconfiaria da capacidade dos gastos privados fazerem o mesmo e com muito mais êxito, por não implicarem em aumento de impostos ou inflação? Sendo assim, eu concedo o argumento até me mostrarem seus problemas. Aceitemos então que o tal Rei do Camarote gera benefícios sociais dos quais ele mesmo nem sequer desconfia.

O fato é que essa linha argumentativa, essa vontade de defender os benefícios sociais da conduta sub judice para isentá-la de reprovação moral muito me preocupa. O que me desperta angústias filosófico-morais é que esse raciocínio compra a verdade da premissa de que um comportamento não pode ser moralmente permissível se seu beneficiário for apenas o próprio autor da ação. É aqui que entra uma importante denúncia feita por Ayn Rand, alguém que eu nem sequer considero como uma filósofa respeitável, mas que me parece ter colocado o dedo em uma ferida e tanto. 

Penso que seja um câncer da nossa época essa moral coletivista que alça o beneficiário da ação a critério exclusivo de valor moral. Como Rand diz na Introdução da Virtude do Egoísmo, considera-se como boa qualquer ação praticada em benefício dos outros e má, por outro lado, qualquer ação praticada em benefício próprio: "Um industrial que produz uma fortuna e um gangster que rouba um banco são considerados como moralmente iguais, desde que ambos procuram a riqueza para seu próprio benefício 'egoísta'" [...]. Um ditador é considerado moral, desde que as atrocidades inenarráveis que ele cometeu tenham tido a intenção de beneficiar o 'povo', não a ele mesmo".

Ora, observem se ela não tem razão. Importantes políticos petistas envolvidos no escândalo do mensalão não foram imediatamente absolvidos nos tribunais éticos da blogosfera progressista unicamente por terem agido em nome do interesse do partido que, em última instância, seria o benefício do próprio povo? "Ah, mas ele não ficou com o dinheiro público para si, não enriqueceu", eu me cansei de ouvir. E a mesma rede progressista, como o caso em tela ilustra, não condena o cidadão que gasta o próprio dinheiro, única e exclusivamente porque ele visa o benefício de si próprio, e não dos outros? Pois parece-me estar aqui a exata confirmação do que Rand denunciava.

Nesse sentido, não penso que a resposta libertária ao coletivismo esteja em lições de economia que visem mostrar que o sujeito, de fato, nem sequer consegue beneficiar apenas a si mesmo ao ostentar sua riqueza. Se libertários somos de fato o polo oposto do coletivismo, cabe-nos rechaçar a premissa coletivista de acordo com a qual o indivíduo comete uma falta moral pelo simples fato de ter como fim a satisfação de seus próprios desejos, ainda que ele não pratique violência ou fraude para tanto. Se, pelo contrário, para defendermos a moralidade de uma conduta, tivermos que provar seus benefícios sociais, amigos, vocês podem até ganhar esta batalha do Camarote, mas será só porque os coletivistas já ganharam a guerra...

domingo, 3 de novembro de 2013

O estatismo e o medo da revolta dos escravos


Durante a semana, uma blogueira que não cito, porque, na minha opinião, ela já recebe muito mais atenção do que merece, cuidou de insultar libertários jogando-nos na vala comum dos conservadores reacionários. Ora, por menos que você, leitor, saiba sobre libertarianismo, você há de convir que soa no mínimo estranho classificar como conservadora e/ou reacionária aquela posição política favorável à liberação das drogas, ao casamento gay, etc...  Mas não foi a primeira vez que um pseudo-intelectual com dificuldades para assimilar mais de dois conceitos se deu ao trabalho de nos desqualificar assimilando-nos a tudo que combatemos na velha direita. Infelizmente, a verdade é que os estudos sobre o libertarianismo não têm crescido proporcionalmente a essa gritaria que sobe de tom a cada dia. 

O que me chama a atenção é que os gritos que temos ouvido, aparentemente, são gritos de medo. Percebendo isso, eu tenho me perguntado: medo de quê? Não, não acho que seja o medo de que os pobres fiquem sem assistência, caso essa tenha que ser oferecida voluntariamente, como prega o libertarianismo. O que me parece é que, por menos que eles saibam sobre a doutrina libertária, eles já descobriram que o resultado de sua assimilação é um escravo indócil, infeliz com sua condição. Agora, por mais fortes que sejam as forças armadas de um Estado, não se engane, em alguma medida, todo Estado depende da cooperação voluntária de seus cidadãos, ou seja, depende de que eles não se considerem suas vítimas, como Nozick, por exemplo, aponta em Anarquia, Estado e Utopia

É aqui que o libertarianismo se mostra como a maior ameaça política de nossa época. Antes de ser uma filosofia política proponente de uma forma de governo, o libertarianismo é uma teoria moral que ensina que a resistência é legítima sempre que a força é exercida contra um não-agressor, não importa quem a exerça. Pode ser um rei em outro continente, pode ser a maioria dos seus vizinhos... segundo o libertarianismo, ninguém pode exercer poder sobre você sem seu consentimento expresso, a menos que sua ação ou sua conduta em geral já se constitua como um exercício de poder ilegítimo sobre outra pessoa. Em suma, a força, sem o consentimento explícito prévio com aquela autoridade, só pode ser exercida para barrar o uso da força.

O que sobra do Estado se muita gente assimilar esse direito de resistência? Bom, parece que muita gente anda percebendo... e temendo.