segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Libertarianismo: uma questão de fé?


Preciso dar um tempo na correria desta semana para alinhavar alguns parágrafos sobre um problema que vem me incomodando: será que é possível justificar racionalmente nossa pretensão de um direito à liberdade individual? Volta e meia, paro para pensar sobre isso. Desta vez, o gatilho foi a simples menção à "liberdade que nos foi dada por Deus" em um discurso político. Bom, como sempre, não posso ir direto ao ponto. Permitam-me alguma preparação!

Antes de mais nada, preciso definir o que entendo por "liberdade". Existem ao menos dois sentidos essenciais para esse conceito. Liberdade pode ter um sentido interno e é esse o caso quando ela significa a simples independência de nossa vontade com respeito a condicionamentos genéticos e ambientais. Nesse caso, você sofre a influência desses fatores, é claro, pois você é humano. Porém, você, sendo livre, é capaz de se determinar a agir independentemente dessas influências, e mesmo contrariamente a elas. Nós pressupomos esse conceito de liberdade quando, por exemplo, condenamos um homem que comete um estupro em sã consciência, sem desculpá-lo por ter sentido atração por sua vítima ou por não ter sentido medo de ser pego. Ao julgarmos que esse homem é mau, nós julgamos que, a despeito de qualquer desejo ou paixão que ele tenha sentido ou deixado de sentir, ele poderia ter evitado o ato. Note que isso é diferente de julgá-lo meramente imprudente por não desejar uma punição e, ainda assim, cometer o ato passível daquela pena.

Pois muito bem, esse conceito de liberdade apresentado no último parágrafo não é observável. Você usa esse conceito em todo juízo ético que profere, mas você não pode dizer que observa que alguém seja livre nesse sentido. Você nem sequer pode provar, por introspecção, que você mesmo seja livre nesse sentido. Claro que, ao abdicar de um prazer em nome de uma regra qualquer, você parece experimentar a liberdade. Por exemplo, você sente uma forte inclinação por comer só mais um quadradinho da barra de chocolate, mas acaba não cedendo à tentação. Você foi livre? Apenas em um sentido relativo, porque, para agir assim, você levou em conta o seu conhecimento de uma relação causal (chocolate engorda), mas também o seu desejo por um fim (não engordar). Assim, em última instância, Hume vence, pois você, vaidoso, ainda é escravo de uma paixão, mesmo que tenha contido a gula. Será que há algum ato humano que não possa ser teoricamente explicado por uma paixão? 

Na verdade, não pode haver uma explicação para uma ação humana que extrapole paixões oriundas de nossa natureza e do meio em que nos criamos, porque essa explicação seria, por definição, suprasensível, portanto, não científica, portanto, não seria verdadeiramente uma explicação. Com isso, do ponto de vista do observador que quer explicar o ato humano como um fato natural, essa liberdade, contrária à natureza, nem vem ao caso.

Mas existe também um sentido externo de liberdade. É a liberdade entendida, não como ausência de condicionamentos determinando internamente a vontade, mas como ausência de uma coerção exercida externamente por outra pessoa. Ora, essa liberdade, em princípio, sempre pode ser constatada por observação. Portanto, ela é empírica. Quero dizer com isso que, teoricamente, eu sempre posso observar se uma pessoa forçou outra a fazer ou deixar de fazer x ou se não a forçou. Esse conceito de liberdade não é metafísico ou sobrenatural. 

Agora, note que, nas relações sociais entre os homens, é esse conceito de liberdade que conta, pois é a liberdade a ser resguardada ou transgredida em nossas relações mútuas. Assim, parece que estamos pisando em terra firme. Podemos dizer que o conceito que serve de pilar ao libertarianismo é um conceito empírico? Quem me dera!

De fato, a liberdade externa é um conceito empírico. Mas, para falarmos de libertarianismo, o buraco é mais embaixo. A questão é o direito moral a essa liberdade. Não importa que alguém possa constatar por observação que eu estou sendo forçada por outrem a fazer ou deixar de fazer x. Importa, sobretudo, se eu tenho ou não o direito de não ser forçada, isto é, o direito de ter minha liberdade respeitada. Ora, direito é sempre um contra-factual. Falar em um direito não é falar sobre o que alguém fez ou deixou de fazer comigo. É falar se alguém deveria ou não ter feito o que fez comigo. Em suma, quem alega um direito, não diz meramente: "ele me estuprou"; mas sim: "ele não deveria ter me estuprado". Eis a contrafactualidade! Eis a fuga do território da experiência!

E aí, amigos, o que fazemos agora? Pedimos ajuda a Deus? Dizemos que nossa liberdade deve ser respeitada, porque Deus nos criou para sermos livres? Bom, não sei você, mas eu não posso provar a existência de Deus, portanto, não posso encontrar refúgio Nele. A fé, então, é no próprio direito à liberdade? Eu não tenho fé em Deus, mas tenho fé, diretamente, no meu direito a ser livre? É isso? Complicado pedir que alguém respeite um suposto direito que eu só posso tratar como matéria de minha fé privada, heim? E se ele, por sua vez, alegar ter a mesma fé no direito à igualdade material? Libertários e socialistas formam apenas seitas diferentes, ambas pautadas em profissões de fé? Eu acho que não...

Há muito tempo, eu fico martelando aquilo que Kant diz quando afirma que a liberdade (no sentido externo) é o único direito inato do homem. Ele explica esse direito dizendo apenas que ele pertence a todo homem "em virtude de sua humanidade". Caramba, Kant, isso é tão pouco! O que você quis dizer com isso? Será que você pode me ajudar com meu problema sendo tão lacônico?

Kant explica o que é humanidade em outra obra e, pelo que entendo, não há um vínculo direto entre humanidade e moralidade nessa explicação. Porém, o uso efetivo que Kant faz do conceito de humanidade (bendito mecanismo de busca em arquivos digitais!) tende sempre a coincidir com personalidade moral. Notadamente, na mesma obra em que ele defende a liberdade externa como único direito inato, humanidade coincide, sim, com nosso ser moral. Mas porque estou falando sobre essas tecnicalidades hermenêuticas no meu blog? Claro, um dia, vou escrever um artigo acadêmico decente sobre isso (espero), mas, agora, eu preciso resolver minha angústia e é esta a solução: nós temos direito à liberdade, porque nós temos personalidade moral!

Para entender, volta a fita. Lembra que eu falei acima que a liberdade interna é suprasensível e não pode ser conhecida cientificamente nem por introspecção? Pois é, naquela hora, eu não contei que Kant descobriu outro jeito de conhecê-la (um conhecimento prático). Eu explico isso para os meus alunos parafraseando um exemplo de Kant da seguinte forma: Imagine que você, sendo muito pobre, receba uma oferta para prestar um falso testemunho em troca de uma enorme quantia em dinheiro. Você sabe que o acusado perderá a vida, mesmo sendo inocente. Não existe nenhum vínculo afetivo entre você e o acusado, sendo sua necessidade material realmente grande. Ninguém saberá do seu falso testemunho, exceto pelo acusador, que você não encontrará nunca mais. Não importa o que você decida fazer no fim, você ao menos hesitará em acusar o inocente. Como diz a frase célebre de Kant, nesse momento, você saberá que pode, porque você saberá que deve. Em outras palavras, pelo sentimento do dever, que difere de qualquer desejo ou paixão, você descobre que é livre.

O que é mais belo é que isso só vale na primeira pessoa. Se você começa a teorizar sobre sua hesitação moral, ou seja, se você naturaliza os seus escrúpulos morais, o fenômeno desaparece. Você não vê mais por que hesitar se você passa a acreditar realmente que sua hesitação é mero fruto da educação recebida de um pai severo ou da sua criação cristã. Você só segue hesitando enquanto você segue dizendo a si mesmo simplesmente que não deve fazer, porque é errado. 

Nesse processo, amigos, o ser humano encontra-se não apenas com sua liberdade interna, mas com sua dignidade. Ele se considera digno de respeito exatamente na mesma medida em que sabe que pode agir contra qualquer paixão, já que ele sabe que deve agir assim. É esse respeito proveniente da liberdade interna que distingue homens e baratas. E é aqui que entendemos, porque Kant disse que o homem tem direito à liberdade externa "em virtude de sua humanidade". Ele quis dizer que, por sermos seres morais, não podemos ser tratados como coisas pelos outros. Como dizia Nozick, não podemos ser meros recursos uns para os outros. E é pela nossa capacidade moral que temos o direito inato, isto é, um direito independente de qualquer contrato, de termos que consentir com qualquer uso que pretendam fazer de nós. Veja, não é por termos sido criados por Deus, tenhamos sido ou não!

Também não se trata de algum ato de fé na liberdade, mas de uma autêntica e profunda experiência moral pela qual a minha dignidade se revela e se impõe a mim. É na medida que eu me encontro internamente como pessoa que eu tenho o direito de exigir do outro que ele não me trate externamente como simples coisa: meio para seus próprios fins. E foi tudo isso que Kant disse com um simples "em virtude de sua humanidade"...