Como eu não tenho nenhum problema em valer menos do que o Neymar (ou quem quer que seja), vou expor alguns argumentos, de um ponto de vista libertário kantiano (ou kantiano libertário, como queira), contra esse lugar comum de que haveria alguma injustiça no fato de nós, professores, não sermos tão bem remunerados quanto grandes jogadores de futebol.
A primeira questão que devemos abordar diz respeito àquilo em que consiste o valor de uma pessoa. Ora, como kantiana, só posso dizer que nosso valor como seres humanos reside na boa vontade, ou seja, na vontade moral, entendida como uma vontade que submete interesses egoístas a normas universalmente válidas. Não fôssemos dotados dessa capacidade moral, pelo simples fato de termos uma razão instrumental, isto é, uma razão capaz de calcular os meios para a realização de nossos fins egoístas, valeríamos tanto quanto um animal qualquer, que faça uso, por exemplo, de suas garras para defender seu lugar ao sol.
Por sinal, seguindo ainda o velho Kant, podemos dizer que, se não tivermos como guia a boa vontade, nada mais possui valor em nós. Nossas maiores competências e habilidades, desacompanhadas da boa vontade, perdem completamente qualquer valor que possam ter, podendo mesmo consistir em um mal, como o é a inteligência aguda do sociopata.
Agora, darei ainda um terceiro passo à sombra de Kant, alegando que a vontade moral não determina a escolha positiva de fins particulares que moldam a vida de um sujeito, oferecendo apenas um limite negativo a que tal escolha deve estar submetida. Concretamente, isso significa que não posso escolher tornar-me um assassino em série, visto que meus fins particulares seriam reprovados pelo teste de universalidade com o qual a vontade moral se compromete, porém, posso escolher ser um médico, um gari, um professor... um jogador de futebol. Em suma, para Kant, há uma imensa gama de vidas que podem ser vividas moralmente, portanto, que possuem o mesmo valor moral formal.
Dou mais um passo seguindo meu mestre: a efetivação da boa vontade no íntimo de cada um é um acontecimento insondável. Pense nos mais diversos exemplos de formas de vida e condutas externas plenamente compatíveis com os mandamentos de uma boa vontade. Seria impossível provar que uma ação externamente compatível com uma boa vontade tenha sido ainda oriunda de uma boa vontade. Não tenha em mente apenas o teatro moral que Glauco descreve na República de Platão, onde cada um de nós encenaria o papel da justiça apenas para não sofrermos nós mesmos as injustiças. Kant leva a hipótese da encenação para o interior de nossa própria alma. Quando acreditamos que agimos com uma boa vontade, nada prova que não estejamos nos auto-enganando, escondendo nossos interesses mais mesquinhos de nós mesmos sob a máscara de alguém de quem poderíamos nos orgulhar. Decorre, portanto, que é impossível afirmarmos que o ser humano x teria mais valor que o ser humano y.
Outra premissa que extraio de Kant: valor moral não é preço! É impossível quantificar o valor da boa vontade, simplesmente porque seu valor é absoluto. Logo, mesmo que houvesse um meio de nos certificarmos de que um dado ser humano age segundo uma boa vontade, nem por isso ele teria esse ou aquele preço.
Decorre de tudo que foi dito acima que devemos distinguir radicalmente o valor moral de uma pessoa do preço de sua força de trabalho. Simplesmente, uma coisa nada tem a ver com a outra! Mas, então, como determinamos o preço do trabalho de alguém?
Neste ponto, devemos deixar de lado o imperativo da moralidade e nos voltar para os imperativos de destreza e prudência. Os primeiros dizem que, dados fins arbitrários, devemos escolher os meios apropriados, por exemplo, se quero me tornar uma pessoa mais magra, devo fazer dieta e exercícios físicos. É aqui que posso acabar querendo consultar uma nutricionista e contratar um personal trainer. Note que você não precisa querer emagrecer. O comando apenas ajusta o meio ao fim que você escolher a seu gosto.
Já os segundos, os imperativos de prudência, não partem de um fim arbitrário, mas do fim natural de todo ser racional sensível: a felicidade. Ah, aqui, em especial, está Kant, de novo, jogando água em meu moinho libertário. Os imperativos de prudência são meros conselhos, jamais leis!, porque não se pode definir objetivamente a felicidade, e nem sequer o próprio sujeito pode estar certo do que o faria feliz. Para desespero de alguns, Kant afirma que nem mesmo o conhecimento pode ser uma garantia de felicidade. Ouch! Em outras palavras, felicidade, para Kant, é um conceito meramente subjetivo e contingente (varia de indivíduo para indivíduo, podendo variar até para um mesmo indivíduo), de tal forma que não se pode determinar objetivamente por quais meios seríamos felizes.
Assim, amigos, ao fim e ao cabo, quando se fala de valor enquanto preço, estamos diante de uma teoria subjetiva de acordo com a qual a força de trabalho de um homem me valerá como meio conforme (eu perceba que) sejam os meus fins. Talvez, eu seja de algum valor para quem queira estudar filosofia com auxílio profissional. Mas, certamente, não serei de valor algum a quem goste de se entreter com futebol. Na verdade, ainda que eu possa servir aos fins de quem queira ajuda para estudar filosofia, eu ainda posso ser preterida por outro professor. Por conseguinte, o preço da minha força de trabalho dependerá não apenas da existência contingente de indivíduos cujos fins requeiram meu tipo de destreza como meio, mas também da existência de outros indivíduos capazes de oferecer os mesmos meios.
Conclusão. Por que Neymar vale mais do que eu? 1) Porque mais gente se interessa por futebol do que por filosofia. 2) Porque pouca gente joga futebol como Neymar e muita gente ensina filosofia como eu. "Ah, mas as pessoas deveriam se interessar mais por filosofia e menos por futebol?" Ok, mas seja coerente! Vá em frente e abrace uma teoria objetiva da felicidade humana, ou me mostre que a vida moral só pode ser vivida de uma maneira. De minha parte, prefiro viver em um mundo onde ganho um salário muito menor do que o do Neymar a viver sob a égide do seu totalitarismo!
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