domingo, 2 de junho de 2013

Por um libertarianismo sem meritocracia

Muitos libertários defendem a meritocracia como um dos pilares da doutrina. Alguns, mais ingênuos e arrogantes, chegam a acreditar que, na sociedade atual, a riqueza já seria dividida conforme o mérito: "eu passei em medicina na USP por mérito", diz o rapaz que sempre estudou nas melhores escolas para outro que nasceu de pais analfabetos. Os mais sensatos, porém, defendem apenas que, em uma sociedade verdadeiramente libertária, ou seja, em uma sociedade livre de intervenções políticas na economia, o resultado da competição de mercado seria justo, pois os vencedores sempre teriam mérito para tanto. Neste post, eu quero atacar a segunda parte dessa tese: o vínculo entre justiça e mérito. Argumento que "mérito" é um conceito que deve ser relegado ao discurso ético, sendo banido da esfera do direito. Em suma, defendo que a justiça libertária não é e, acima de tudo, não precisa ser um sistema meritocrático.

Na verdade, não vejo grandes dificuldades em defender meu ponto, afinal, mérito, por definição, deve ser algo que se conquista. Ninguém tem o mérito de pertencer a uma determinada raça, nascer em uma determinada nação, etc. Agora, também deve ser notado então que, embora alguém possa ter o mérito por ter cultivado um determinado talento, ninguém tem o mérito de nascer com um determinado dom a ser cultivado. Indo ainda além, sequer podemos saber ao final do processo o quanto do resultado do exercício de um talento se deve ao dom puro e simples, e o quanto se deve ao aperfeiçoamento desse dom por meio do trabalho. Por exemplo, o quanto do sucesso de um Romário se deve ao seu dom para o futebol e o quanto se deve ao seu treinamento árduo jogando futevolêi nas praias do Rio de Janeiro? Nunca poderemos precisar! Seja lá como for, o fato é que: 1) Romário deu a sorte de ter nascido com um talento valorizado pela sociedade de sua época; 2) alguém nascido sem vestígios de seu talento poderia treinar 100 vezes mais do que ele sem obter 10% de seus resultados.

Agora, talvez, alguém queira me dizer que o sujeito sem o talento do Romário, em vez de desperdiçar seu tempo treinando futebol, deveria ter cultivado seu próprio talento. Então, eu responderia, primeiro, que saber reconhecer o próprio talento e investir nele já é algo que pode muito bem exigir sua dose de talento. Afinal, tantos jovens estão aí, fazendo testes vocacionais, começando e parando cursos universitários, e isso de uma tal forma que nem me parece cabível que digamos que eles não se esforçam o bastante para descobrirem o seu dom. Em segundo lugar, posso ainda perguntar por que seria impossível acreditarmos que alguns seres humanos simplesmente nascem sem qualquer dom especialmente valorizado por sua época. Na verdade, parece-me fácil reconhecer que muitos seres humanos (a maioria?) nada têm de especial sob aspecto algum.

Mas mesmo que acreditemos na teoria edificante segundo a qual todo ser humano é um geniozinho em potencial (reprimido pelo sistema?), ainda sabemos dos casos de exceção e eles bastam para o meu ponto. Não há nada de extravagante em minha suposição de que ao menos alguns seres humanos possam nascer dotados de uma inteligência muito abaixo da média, desprovidos das características reconhecidas pelo padrão de beleza de sua sociedade, portando deficiências físicas severas, e assim por diante. Se compararmos esse individuozinho castigado pela natureza a outro que tenha nascido provido de beleza, talento, inteligência, charme, etc., supondo que cada um se empenhe da mesma maneira, parece razoável supor que, ao final da vida de cada um em um mundo libertário, o segundo terá obtido muito mais sucesso.

Eu até poderia parar por aqui, mas ainda quero acrescentar que, em um mundo libertário, naturalmente, haveria heranças, de modo que, somadas às diferenças naturais, ainda haveria diferenças sociais cumulativas que tornariam impossível averiguar o quanto da diferença de sucesso entre as pessoas se deveria verdadeiramente ao mérito. Por todas essas razões elencadas, eu proponho que reservemos o discurso sobre o mérito para nossas considerações éticas, cientes de que a precisão no tocante a elas só pode ser alcançada por um juiz tal qual o Deus cristão, não por nós. Só Deus sabe, por exemplo, a medida de esforço que cada um precisa fazer para se levantar da cama pela manhã.

Agora, eu quero concluir esse texto mostrando que nada do que eu disse acima afeta a minha concepção de libertarianismo. Para a justiça libertária, não importa se não tenho mérito por meus dons naturais ou por minha herança, portanto, não preciso propor nenhum sistema para promoção da igualdade de oportunidades. O ponto é muito simples: se não adquiri meus bens por meio de fraude e violência, é justo que eu os possua, mesmo que eu não tenha feito por merecê-los. Agora, vejamos, no que diz respeito a meus dons naturais, eles são meus de forma inata, ou seja, nem sequer houve o ato de aquisição que sempre poderia ser questionado. É por isso, por exemplo, que, em sua doutrina do direito privado, Kant se dá ao trabalho de defender apenas o meu e o teu exterior. Aquilo que é interiormente meu nem sequer é objeto de problematização filosófica*.

Já no que diz respeito à herança, ela decorre naturalmente do conceito de propriedade. Se eu tenho a legítima propriedade de um bem, eu devo ter o direito de destiná-lo a quem eu bem entender. Se acabarmos com o conceito de herança, por conseguinte, acabamos com o próprio conceito de propriedade, visto que impedimos o proprietário de fazer uso de seus bens como ele queira, de modo que esses bens não podem mais ser considerados propriamente dele. Em outras palavras, o direito não é à herança, porque ninguém deve ter o direito àquilo que é de outro, a menos que esse outro tenha concedido esse direito por contrato. O direito é, sim, do proprietário e trata-se de um direito de decidir o destino de seus bens.

Concluo então o seguinte: se eu estou certa em minhas considerações sobre o caráter absoluto dos bens internos e sobre o direito de transferência de bens externos por parte do proprietário, o libertarianismo não precisa de compromisso algum com a meritocracia para explicar a legitimidade das desigualdades.

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*Nota para os kantianos: Na linguagem kantiana, a violação do que é interiormente meu é analiticamente reprovada pelo princípio do direito, ao passo que a violação do que é externamente meu é sinteticamente reprovada pelo direito, ainda que a priori. Enfim, se você não é kantiano, esqueça este detalhe técnico que não posso explicar aqui.

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