segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

A resposta de Nozick a Rothbard


Não sei se o próprio Nozick respondeu às críticas de Rothbard à sua defesa do Estado e fico grata desde já ao leitor que me esclarecer a respeito. Por sinal, foi através de um gentil leitor que travei conhecimento com a própria crítica de Rothbard, que vocês podem acessar aqui. Neste post, eu vou brincar de vestir as armas de Nozick para responder a Rothbard.

Como serei um tanto dura com Rothbard, antes de mais nada, gostaria de expressar minha admiração por ele. Na verdade, mais do que de admiração, trata-se de identificação. Há auto-declarados “libertários” que, a julgar por seus argumentos, se tornariam socialistas no ato se provassem a eles que todos ficariam com a barriga mais cheia com menos liberdade. Inclusive, gosto de dizer que esses "libertários" não acreditam no princípio da não agressão, mas sim no "princípio da barriga cheia". Esse não é o caso de Rothbard. O fato dele ser libertário por princípio moral aflora a cada linha passional de seu texto. Eu gosto disso! Aprecio gente de caráter, o que, para mim, é sinônimo de gente comprometida com princípios (que não o da "barriga cheia").

Dito isso, no entanto, devo observar que, com exceção de alguns pontos fracos bem captados,  a leitura que Rothbard faz de Nozick me parece tão equivocada que tendo a creditar seus equívocos a esse mesmo entusiasmo moral. É como se, ao ter diante de si um dos objetivos anunciados de Anarquia, Estado e Utopia - a justificativa de um Estado mínimo - Rothbard não tivesse nenhum interesse em verdadeiramente entender o ponto de seu oponente, mas apenas o firme propósito de refutá-lo para pôr a salvo seu anarco-capitalismo. Porém, se tivesse realmente se empenhado em compreender as teses de Nozick, duvido que Rothbard, ao fim do processo, teria ainda alguma preocupação em refutá-lo. Vejamos por que sustento tal tese.

Para começar, gostaria de mencionar um ponto em que Rothbard e eu estamos de acordo contra Nozick. Eventualmente, mencionarei outros no decorrer do texto. De fato, Nozick parece se fiar demais em um argumento que é meramente conjectural. É impossível provar a priori (ou por meros conceitos, sem recurso à experiência) que, em uma sociedade anarco-capitalista, surgiria uma agência protetora dominante ou um sistema unificado de agências do tipo. Nozick pode apenas conjecturar sobre como clientes e executivos calculariam seus interesses em um mercado do tipo. Ele não pode demonstrar logicamente que o livre mercado tomaria um ou outro rumo.

Todavia, eu não estou certa do impacto dessa observação sobre a tese geral de Nozick. Se fizermos o que Rothbard não fez, ou seja, se lermos o texto de Nozick com a lupa, notaremos que, já na p. 05 da edição original de Anarquia, Estado e Utopia, Nozick afirma que basta a ele mostrar que o Estado "would be an improvement if it arose [seria um avanço se surgisse]", acrescentando que "this would provide a rationale for the state’s existence; it would justify the state [isso traria uma razão para a existência do estado; justificaria o estado]". Em suma, ainda que Nozick pareça ter a convicção indevida de que uma agência dominante ou um sistema unificado emergiria da livre concorrência entre as agências, uma leitura cuidadosa mostra que o argumento dele apenas requer que seja provado que, longe de cometer uma violação contra qualquer direito individual, a emergência de uma agência dominante ou a formação de um sistema unificado de agências seria benéfica aos direitos individuais. 

Nozick quer refutar a tese anarquista de acordo com a qual: "any state necessarily violates people’s moral rights and hence is intrinsically immoral [qualquer estado necessariamente viola direitos morais das pessoas e, portanto, é intrinsecamente imoral]". Trata-se, como se vê, de um objetivo meramente conceitual, e não histórico: defender a compatibilidade lógica entre a existência de um Estado e o respeito a direitos morais dos indivíduos. Daí que Nozick não recorra à história para mostrar que Estados reais, de fato, teriam emergido sem violência. Basta que Estados possam emergir e se manter sem violência para que anarquistas não possam condenar o Estado enquanto tal como agressor por definição.

Seja lá como for, aqui, Rothbard pode ainda discordar, alegando que, ao contrário do que pensa Nozick, a concentração de poder seria uma ameaça à liberdade individual. Contudo, ambos os filósofos estão de acordo quanto à probabilidade (e à necessidade) de que os conflitos entre as agências de proteção não sejam resolvidos pela força. É, grosso modo, do interesse egoísta de todos por soluções pacíficas que Nozick deriva a ideia de um sistema unificado ou de uma agência dominante. 

E será que o Código de Leis Básico de Rothbard, ao qual todos os juízes obedeceriam, não contaria como o sistema unificado de Nozick? Se todas as agências seguissem um mesmo código, como se fosse sua constituição, elas não formariam uma federação de agências? Note-se que Nozick não menciona um Supremo Tribunal Federal. Tudo que ele diz (p. 16) é que: "Thus emerges a system of appeals courts and agreed upon rules about jurisdiction and the conflict of laws. Though different agencies operate, there is one unified federal judicial system of which they all are components. [Assim, emerge um sistema de cortes de apelação e acordos sobre regras sobre jurisdição e o conflito de leis. Embora diferentes agências operem, há um sistema judicial federal unificado do qual elas são todas componentes]". Por isso, deixo registrada aqui minha suspeita de que a divergência entre Rothbard e Nozick quanto ao ponto seja muito mais terminológica do que conceitual.

Então, a esta altura, já começamos a perceber que Rothbard e Nozick não estão tão distantes como pensa o primeiro. Agora, precisamos entender que, quando Nozick se refere a um monopólio por parte da federação das agências ativas em um dado território, ele não está, de modo algum, criminalizando a concorrência como Rothbard o acusa de fazer. Prova desta minha leitura, pode, por exemplo, ser encontrada na p. 113, quando Nozick discute o interesse dos clientes em manterem seu contrato com a agência dominante/agência membro da federação. Eles são livres para deixarem qualquer agência da federação ou a única agência dominante, conforme for, e escolherem se querem contratar uma agência independente ou se defenderem por conta própria. Aliás, como uma curiosidade a esse respeito, observem o quão raras são as aparições do termo "cidadão" na primeira parte de Anarquia, Estado e Utopia, e comparem com o número de aparições do termo "cliente". Para Nozick, ao fim e ao cabo, somos clientes do Estado, exatamente porque decidimos ficar sob suas leis pelas razões a respeito das quais ele especula. Não somos coagidos a tanto. 

Outra prova do que estou dizendo quanto à falsidade da acusação de que Nozick criminalizaria a concorrência encontra-se às pp. 109-110 da obra em questão, quando Nozick afirma expressamente que o Estado não poderia interferir se os independentes estiverem satisfeitos com os procedimentos de justiça aplicados entre eles, tese exatamente oposta à que Rothbard atribui a Nozick: "the protective association would have no proper business interfering if both independents were satisfied with their procedure of justice. [a associação protetora não teria nada que interferir se ambos os independentes estivessem satisfeitos com seus procedimentos de justiça]." Na verdade, Nozick parece admitir que mesmo os clientes, em comum acordo, podem solicitar à agência dominante (vulgo Estado) que não interfira no conflito deles.

Por fim, esta passagem da p. 109 é taxativa contra a interpretação de Rothbard de acordo com a qual o Estado de Nozick criminalizaria agências concorrentes: "Other protective agencies, to be sure, can enter the market and attempt to wean customers away from the dominant protective agency. They can attempt to replace it as the dominant one. [Outras agências protetoras, com certeza, podem entrar no mercado e tentar tomar clientes da agência protetora dominante. Elas podem tentar substitui-la como a agência dominante]."

Aqui, é fundamental observar que a agência dominante (ou a federação de agências) é denominada Estado por ser a única forte o bastante para garantir a seus clientes que eles não serão penalizados injustamente, ou ao menos que quem os punir injustamente não ficará impune. É só isso. O mesmo direito, na verdade, assiste aos independentes da mesma maneira, mas só a agência dominante (ou a federação) é forte o bastante para aplicá-lo. Por isso, Nozick insiste tanto que se trata de um monopólio de fato, não de direito (por exemplo, p. 109): "the right includes the right to stop others from wrongfully exercising the right, and only the dominant power will be able to exercise this right against all others. [o direito inclui o direito de impedir outros de exercerem erroneamente o direito, e somente o poder dominante terá condições de exercer esse direito contra todos os outros]."

Vejam, aqui, temos um outro ponto essencial a tratarmos. Rothbard nega a existência desse direito universal, que, no entanto, apenas o mais forte conseguiria fazer valer. Para lidarmos com isso, deve ser notado que temos aqui, a princípio, um outro ponto de minha convergência com Rothbard: eu concordo com ele quanto ao fato de Nozick cometer um grave equívoco ao defender que ações de risco podem ser proibidas, desde que aqueles que tenham suas ações proibidas sejam devidamente recompensados, nos casos em que a proibição os deixa em desvantagem social. Eu estou com Rothbard quando ele defende que ações de risco não podem ser proibidas, sob pena de abrirmos as porteiras para todo tipo de violação de direitos. Afinal, qual ação não representa qualquer risco de violação de direitos dos outros? Ainda que Nozick enfrente esse tipo de objeção, confesso que, mesmo com a lupa, não encontrei um bom argumento a ser usado em sua defesa, assim como não fui capaz de pensar em um por conta própria.

Porém, se Rothbard tivesse usado o mínimo de caridade hermenêutica - aquele princípio salutar de acordo com o qual lemos nosso adversário procurando os pontos fortes de seu argumento, em vez de apenas explorarmos seus pontos fracos - ele teria notado que, totalmente à parte da proibição das ações de risco, Nozick tem um bom argumento para defender a tese segundo a qual é parte do direito que tenhamos também o direito de impedir execuções equivocadas do direito, sendo esse, como já dito, um direito que assiste igualmente a todos, mas que uma agência dominante estaria em condição privilegiada para levar a efeito. Trata-se de um argumento baseado no princípio epistêmico, que passo a expor e defender.

Muito bem, eis a formulação do referido princípio, encontrada na p. 106: "If someone knows that doing act A would violate Q’s rights unless condition C obtained, he may not do A if he has not ascertained that C obtains through being in the best feasible position for ascertaining this. [Se alguém sabe que fazer A violaria os direitos de Q a menos que a condição C estivesse realizada, ele não pode fazer A se ele não se certificou que C se realiza, estando na melhor posição viável para se certificar disso]."

Para entendermos o que está em jogo aqui, consideremos o seguinte cenário. O carro de meu vizinho foi furtado de sua garagem durante a madrugada. Eu sou cliente da agência dominante, o que não é o caso de meu vizinho. Meu vizinho, por sua vez, alega ter consultado os serviços de uma vidente, que, lendo suas cartas, teria revelado a ele que eu fui a autora do furto de seu carro, um episódio inédito na carreira dessa vidente Assim, sob essa alegação, ele leva o meu próprio carro como reparação do furto sofrido por ele, admitindo que, se eu não tivesse primeiramente furtado seu carro, ele não teria o direito de levar meu próprio carro, já que esse ato, sim, então se constituiria em um furto. Para completar o cenário, suponha ainda que eu sou realmente culpada pelo furto de que sou acusada. Porém, minha agência não sabe disso, sendo que meu vizinho não dispõe de qualquer evidência ou razão para desconfiar de mim, exceto pelo testemunho da vidente baseado no jogo de cartas, jogo este que, jamais, outrora desvelou qualquer crime. Nessas circunstâncias, a minha agência tem o direito de punir meu vizinho por ter levado meu carro? 

Note que, se sua resposta for "não", como parece ser a resposta de Rothbard, a minha agência se torna completamente inócua para mim, já que eu posso vir a sofrer qualquer agressão, sem que ela puna o agressor, desde que o agressor, por um motivo qualquer, alegue estar ele próprio me punindo. De repente, o meu agressor teve uma revelação em sonho sobre minha identidade secreta de serial killer, por exemplo. Ora, mesmo para além de qualquer questão operacional da minha agência, que ficaria sempre de mãos atadas se quisesse me proteger sem violar direitos alheios, de fato, o direito natural parece requerer que eu possa comprovar a culpa de alguém, para além de toda dúvida razoável, antes de lhe aplicar uma punição qualquer. Afinal, que eu seja uma ladra não pode autorizar moralmente alguém a tirar de mim os bens que furtei, a menos que se possa provar que sou uma ladra, como reza o princípio epistêmico.

Parece então que a sensatez requer que, uma vez que acreditemos em direitos, incluamos dentre eles o direito de impedirmos a aplicação do direito a todo aquele que não comprovou a culpa do réu para além de toda dúvida razoável. Do contrário, todo e qualquer direito poderia ser violado mediante simples alegações falsas de direito por parte do agressor.

Agora, se você aceita 1) o princípio epistêmico e suas implicações, e 2) a possibilidade de uma federação de agências protetoras (ou uma agência dominante), então, você deve aceitar 3) que independentes podem ser impedidos de executar o direito dentro de um território sem que isso implique, necessariamente, na violação de seus direitos. 

Porém, nunca poderíamos insistir demais que a) o mesmo direito assiste aos independentes com relação à agência dominante e que b) a agência dominante/federação só tem esse direito com relação à proteção de seus próprios clientes, pois, como afirma Nozick, a agência/federação possui apenas os direitos que seus clientes escolheram transferir a ela. Fala-se em monopólio de fato, e não de direito, porque o independente que acreditar que a agência não provou, além de toda dúvida razoável, a culpa de um réu condenado será impotente para agir, embora tenha o direito de impedir a execução da pena.

Estamos diante então de uma grande ameaça à liberdade quando permitimos o surgimento de uma agência dominante? Ora, talvez, haja o risco de violação de direitos aqui, mas lembre-se que foi Rothbard quem se levantou contra a proibição de ações de risco! Assim, segundo Rothbard, não poderíamos impedir que a maioria das pessoas se tornassem clientes de uma mesma agência, alegando que isso colocaria em risco os direitos da minoria (Nozick lida muito bem com essa questão, mesmo tendo que aceitar a premissa da proibição das ações de risco, mas seu argumento é muito sutil para que eu o exponha aqui). 

Ademais, também é preciso que mantenhamos em mente que os clientes estariam moralmente autorizados para romperem com a agência dominante/federação, caso julgassem injustos os procedimentos da agência dominante ou federação. Suponha, por exemplo, que seja a agência dominante/federação a agir aleatoriamente em processos penais, sem que a prática seja permitida pelo contrato do cliente. O cliente estaria tão moralmente obrigado a continuar na condição de cliente de um Estado injusto quanto você está moralmente obrigado a renovar um contrato de telefonia que não o serviu. 

Ah, mas quem vai proteger o cliente que acusa a agência dominante/membro da federação de não cumprir o contrato, ou, simplesmente, o cliente que quer exercer o direito de não renovar o seu contrato? Talvez, ninguém tenha força para isso. Mas o ponto é que uma agência que se comportasse com tal violência perante seus próprios clientes seria, para a filosofia de Nozick, uma agência agressora ilegítima da qual seríamos vítimas, e não o Estado moralmente justificado.

Foi essa necessidade interna à teoria de Nozick de que a agência sempre satisfizesse seus clientes, por sinal, o grande ponto que escapou a Rothbard. Por isso, por exemplo, Rothbard acusa Nozick de não ter uma teoria para a cobrança de impostos ou para procedimentos democráticos. Quanto a essas críticas, eu apenas pergunto a Rothbard: Que impostos? Que democracia? Para a teoria, trata-se de clientes satisfeitos de uma empresa, e nada mais! Da mesma forma, não se trata de alienar os direitos de gerações futuras. Um filho nem sequer herdaria algum direito, possuído pelo pai, de ser protegido pela agência protetora da qual o último teria sido cliente, a menos que o pai tivesse deixado como herança exatamente o título de proteção pago. De outra forma, o filho teria que pagar por essa proteção, como qualquer outro, ou seria um independente.

A propósito, esse é outro ponto interessante. Nozick, com base no equivocado princípio de compensação por proibição de ações de risco que causam desvantagens, acredita que a agência dominante/federação deve ajudar o independente carente a pagar por seus serviços de proteção, quando ele é proibido de executar a justiça contra um membro da agência. Mas isso é algo muito diferente de se dizer que todos os habitantes de um dado território ficam cobertos pelos serviços de proteção da agência dominante/federação que atua naquele território. Aquele independente que fosse agredido por outro independente não teria direito a qualquer proteção por parte da agência dominante/federação. Tampouco teria esse direito aquele independente que entrasse em conflito com o cliente da agência dominante/agência membro da federação, negando-se a pagar pelo montante do valor da proteção que ele teria condições de pagar. Consultem a p. 113 de Anarquia, Estado e Utopia quanto a esse ponto.

É por todas as considerações feitas acima que digo que, na ânsia de refutar qualquer justificativa do Estado, Rothbard discutiu com um espantalho que ele mesmo criou, não com Nozick. Ainda que Nozick tenha cometido falhas pontuais - notadamente quanto ao princípio da compensação - que vício moral, afinal, Rothbard poderia denunciar em um Estado utópico que permite desfiliação e concorrência? Qual direito seria violado por esse Estado? O direito de consultar videntes ou folhas de chá (exemplo de Nozick) para descobrir culpados e poder executar penas?

Parece-me que o triunfo de Nozick foi ter obtido sucesso em mostrar que um determinado Estado pode emergir sem violar qualquer direito individual e, portanto, que o Estado não é intrinsecamente imoral. Agora, se um rothbardiano quisesse lançar uma última cartada, bastaria perguntar: isso que Nozick justificou tem alguma coisa a ver com o que mais alguém neste mundo já chamou de Estado?