Hobbes é bem conhecido por sua defesa da racionalidade da guerra preventiva. De fato, logo no início do capítulo XIII do Leviatã, ele defende a razoabilidade da antecipação do ataque como um requerimento da auto-conservação.
there is no way for any man to secure himself so reasonable as anticipation; that is, by force, or wiles, to master the persons of all men he can so long till he see no other power great enough to endanger him: and this is no more than his own conservation requireth, and is generally allowed.
A razoabilidade da antecipação do ataque está diretamente relacionada à ausência do poder estatal. Em outras palavras, tratar-se-ia do que a razão recomenda quando o único poder a ser temido é o poder singular de outro indivíduo. A ideia é que, desejosos que somos das mesmas coisas (escassas) e equivalentes que somos em poder (enquanto indivíduos), nunca podemos nos assegurar de que não seremos atacados. Assim, devemos aumentar o nosso poder sobre os demais sempre que possível:
such augmentation of dominion over men being necessary to a man's conservation, it ought to be allowed him.
O que me interessa em especial neste post, porém, é um argumento similar que Hobbes desenvolve no capítulo seguinte, sobre contratos. Segundo esse argumento, não seria recomendado pela razão que fizéssemos primeiro a nossa parte em um contrato, na expectativa de que a outra parte também desempenhasse o que lhe cabe, a menos que houvesse um poder comum forte o bastante para obrigar esse desempenho.
If a covenant be made wherein neither of the parties perform presently, but trust one another, in the condition of mere nature (which is a condition of war of every man against every man) upon any reasonable suspicion, it is void: but if there be a common power set over them both, with right and force sufficient to compel performance, it is not void. For he that performeth first has no assurance the other will perform after, because the bonds of words are too weak to bridle men's ambition, avarice, anger, and other passions, without the fear of some coercive power; which in the condition of mere nature, where all men are equal, and judges of the justness of their own fears, cannot possibly be supposed. And therefore he which performeth first does but betray himself to his enemy, contrary to the right he can never abandon of defending his life and means of living.
Quero chamar sua atenção, em especial, para as últimas linhas, que refletem o caráter normativo ou prescritivo do ponto de Hobbes: na ausência do Leviatã, se um agente A beneficia outro agente B na expectativa de ser por ele também beneficiado, A trai seu próprio interesse, contraria um direito que ele não pode abandonar, a saber, o direito de defender a própria vida. Pelo que vejo, a justificativa para essa alegação é a falta de uma garantia de que B cumprirá sua parte. É claro que é possível que B cumpra sua parte. Mas, não havendo tal garantia, quando A cumpre primeiro a sua parte, ele arca com um custo para sua auto-conservação que bem pode não lhe render qualquer fruto. Daí que seja dito por Hobbes que, no estado de natureza, aquele que confia no outro trai a si mesmo.
Tendo sempre em vista que o fundamento de todas as nossas obrigações naturais, bem como o único fim de nossos atos voluntários é a auto-preservação, a prescrição da razão, no estado de natureza, é que não façamos contratos, mas sim ataquemos, sempre que tivermos uma oportunidade. Ora, como esse estado de coisas, por si mesmo, acaba contrariando nosso interesse de auto-preservação, devemos alterar essa lógica pelo único meio possível: a criação de um poder comum que puna o início de violência e obrigue o cumprimento de contratos.
Há vários pontos do argumento de Hobbes dos quais discordo. Por exemplo, Hobbes desconsidera por completo a possibilidade de que seres humanos sejam sujeitos autônomos dignos de respeito, a ponto de poder haver uma proibição moral de que sejam usados como simples meios no interesse de minha auto-preservação, ou de minha leitura do interesse deles próprios. Essa consideração poderia alterar toda a lógica que nos conduz aos braços do Leviatã, pois, por mais prudente que fosse a submissão a ele, supondo que seres humanos sejam moralmente invioláveis, eles não poderiam ser submetidos a um poder maior com base em um argumento prudencial.
Ademais, posso conceber um direito natural de auto-preservação, mas não uma obrigação. Por que eu teria o dever de viver? Por que eu não poderia escolher o estado de natureza simplesmente alegando que prefiro liberdade à segurança? Note que a pressuposição da busca por auto-preservação é o que fundamenta as prescrições racionais em Hobbes. Não vejo qual a justificativa da maior racionalidade da própria busca por segurança. Em vez disso, vejo apenas a afirmação dogmática de que tal fim seria natural.
Por fim, ainda que concedamos 1) que seres humanos não tenham valor moral e, portanto, possam ser submetidos a um Leviatã em nome de interesses de auto-preservação, e; 2) que a própria auto-preservação seja uma obrigação; ainda percebo algo que não fecha no argumento de Hobbes. Não é mesmo racional firmar um contrato na ausência do Leviatã? É claro que Hobbes tem razão quanto à possibilidade de que o outro não cumpra sua parte. Mas ele parece exagerar ao extremo essa probabilidade, minimizando demais as motivações egoístas para que alguém cumpra um contrato mesmo sem ter sanções legais a temer.
Posso mostrar como obtemos sucesso cotidiano fazendo cálculos diferentes dos cálculos prescritos por Hobbes. Hobbes não nos pediu para que atentássemos a exemplos do cotidiano dentro do Estado ao imaginarmos como seria o estado de natureza? Pois bem, ofereço dois exemplos banais e convido meu leitor a pensar em outros tantos a partir de sua própria experiência.
Em Fortaleza, queria comprar um shorts em uma feira de artesanato. Naturalmente, a feirante não dispunha de um provador. Como ela também não aceitava cartão e eu estava sem dinheiro, ela sugeriu que eu levasse o shorts para o hotel, provasse e voltasse depois com o shorts ou o dinheiro. Quando eu voltei com o dinheiro, ela me contou que sempre age assim, sendo que, vez ou outra, as pessoas levam muitas roupas e não aparecem mais. Ela simplesmente decidiu não tomar esses casos como regra e, com isso, segundo ela mesma, tem tido mais ganhos do que perdas. Por que ela estaria traindo a si mesma ao negociar assim?
Já hoje, ocorreu o inverso. Levei uma roupinha da Mel para trocar e o Pet Shop não tinha outra peça para pronta entrega. Deixei a roupinha lá, sem nenhum comprovante, e vou esperar que me liguem quando a roupinha chegar. Se não ligarem, não tenho como registrar nenhuma queixa contra a loja perante o Leviatã. Mesmo se tivesse, não compensaria o trabalho.
Bom, o que quero dizer com isso é que o cotidiano está repleto de exemplos de contratos que cumprimos mesmo sabendo que não há possibilidade de "enforcement". Em outras palavras, depois de nos beneficiarmos do contrato, nós ainda fazemos a nossa parte, conscientes de que não sofreríamos uma punição legal se não a fizéssemos. Ou, então, quando do outro lado, nós confiamos que o outro cumprirá sua parte depois de termos feito a nossa.
E nós não agimos assim, necessariamente, por sermos bons, embora escrúpulos morais e laços afetivos possam ter seu papel aqui. Nós agimos assim, por exemplo, porque queremos seguir firmando esse tipo de contrato. É do nosso interesse egoísta que contratos assim sejam realizados e, mais ainda, que confiem que vamos fazer nossa parte neles. Infelizmente, essa é uma possibilidade que Hobbes mal contempla. Nesta passagem, é que ele me parece chegar mais perto dela:
The force of words being (as I have formerly noted) too weak to hold men to the performance of their covenants, there are in man's nature but two imaginable helps to strengthen it. And those are either a fear of the consequence of breaking their word, or a glory or pride in appearing not to need to break it. This latter is a generosity too rarely found to be presumed on, especially in the pursuers of wealth, command, or sensual pleasure, which are the greatest part of mankind. The passion to be reckoned upon is fear.
Ora, eu não falava acima de um interesse em parecer não precisar quebrar pactos por orgulho. Eu falava do interesse pragmático de querer celebrar novos pactos no futuro. É esse interesse que parece ter escapado a Hobbes justamente no capítulo que ele dedica à lógica dos contratos. A sanção para aquele que não faz sua parte após ser beneficiado pelo outro é não mais poder buscar ajuda nesse outro ou naqueles que tiveram ciência do seu comportamento.
Pelas considerações acima, penso que Hobbes está simplesmente errado ao generalizar e tratar todo e qualquer contrato de confiança como contrário ao nosso interesse racional na ausência do Leviatã. No caso, a feirante de Fortaleza me parece mais sábia do que esse grande filósofo que legou um preconceito tão arraigado na filosofia política que o sucedeu. Talvez, os filósofos devessem seguir o conselho do próprio Hobbes e observar melhor o cotidiano. Veriam que trancamos nossos bens, sim, mas também selecionamos pessoas em quem confiamos, mesmo quando a espada do Leviatã não pode alcançá-las por nós.