sábado, 22 de novembro de 2014

Mais Kant, menos Mill


No último post, eu comentei o que considero ser a grande contribuição de Mill ao liberalismo clássico/libertarianismo: sua crítica à democracia, ou às tentativas de compensar perdas no que Berlin viria a chamar de "liberdade negativa", o espaço de não-interferência na vida dos indivíduos, por ganhos no que Berlin chamaria de "liberdade positiva", auto-governo. Mill tem razão. Quando o poder deixou de ser exercido explicitamente por oligarquias e passou, em tese, para as mãos do povo, criou-se a falsa impressão de que as reivindicações liberais por um espaço de não-interferência na liberdade individual não fariam mais sentido, estariam historicamente superadas. Ledo engano. Por mais autêntica que seja a democracia, a liberdade positiva ou auto-governo não substitui a liberdade negativa ou não-interferência, pelo simples fato de que não se trata aqui do governo do indivíduo sobre si mesmo. Trata-se apenas e tão somente do direito do indivíduo a um voto na multidão, sem que o indivíduo sequer precise dar seu consentimento explícito para que uma dada matéria torne-se ponto de pauta para uma assembleia. Em suma, basta que lhe dêem o direito a um voto e decidem até se você pode fumar ou beber, por exemplo.

Kant, ao contrário de Mill, não parece ter estado suficientemente atento para a necessidade de que a tal "vontade geral" ou "vontade unida do povo" seja devidamente limitada. Ele defendia o direito de que o sujeito fosse senhor de si, é verdade. Mas, conforme a letra do texto, ele também pensava que essa autonomia jurídica deveria ser exercida como soberania popular, pois ele permite que a lei para o indivíduo seja dada por ele mesmo na companhia dos outros. No fim das contas, isso significa que uma instituição - seja ela representada por uma assembleia ou por um indivíduo - tem o direito de agir contra o consentimento explícito de um indivíduo, alegando representar a vontade geral, que, teoricamente, inclui a vontade desse indivíduo, ao menos enquanto vontade racionalmente considerada.

Claro que Kant não pensava no voto de uma maioria esmagando o indivíduo. Ele nem sequer acreditava que a vontade geral coincidisse com a vontade de todos empiricamente unificada em um plebiscito. No entanto, o soberano legisla em nome dessa vontade geral - uma ideia racional do que todos deveriam querer - e eu não vejo em Kant uma defesa forte o bastante dos limites dessa legislação, por mais que ele tenha criticado tanto o paternalismo do Estado, que tenta fazer o súdito feliz, quanto a pretensão do Estado que tenta transformar o indivíduo em um ser virtuoso. Por exemplo, Kant não disse claramente que o princípio universal do direito ou o direito inato à liberdade deveria limitar e determinar o princípio do contrato, embora eu ache que essa seja a melhor interpretação de sua posição.

O princípio do contrato, grosso modo, diz que o soberano só pode impôr ao indivíduo o que cada um poderia impôr a si mesmo. É isso que significa ser senhor de si mesmo na companhia de outros. O problema dos liberais com isso é que o soberano pode interpretar como ele bem entender o que seria razoável para o indivíduo aceitar. Não há a necessidade do consentimento explícito de cada um. Como explica Berlin, o soberano respeita uma ideia de vontade racional do indivíduo, não a vontade de fato do indivíduo. Atento a isso, Mill diz claramente que precisamos de um princípio para sabermos onde vamos traçar o limite do que o soberano pode decidir forçar o indivíduo a fazer contra sua vontade empiricamente considerada. Agora, embora Kant não tenha dito o mesmo com todas as letras, eu defendo que o princípio que Kant tinha à sua disposição para limitar o direito de coerção externa era muito melhor do que o de Mill. Vejamos.

Segundo Mill, o princípio que separa as interferências governamentais legítimas das ilegítimas é o "princípio do dano". Mill defende que a auto-proteção é o único princípio que legitima interferências na liberdade de ação de qualquer número de membros de uma sociedade. Ele entende por isso que o poder só pode ser exercido, em conformidade com o direito e contra a vontade de qualquer membro da comunidade, se o objetivo é evitar danos a terceiros.

Ora, à primeira vista, isso parece uma perfeita formulação do princípio da não-agressão dos libertários, o famoso PNA. Pois eu alego que, bem pelo contrário, esse é um princípio coletivista que deixa entrar pela porta dos fundos toda a ameaça de tirania que Mill tentou expulsar pela porta da frente.

O ponto central é: Como defino um dano? Dano a quê? Um dano pode ser um mero efeito indesejado em minha vida. Um dano pode ser consentido. Por exemplo, você resolve usar drogas. Em um primeiro momento, eu não posso proibi-lo de fazê-lo de acordo com o princípio do dano, afinal, Mill diz claramente que não se trata de impôr a alguém o que, supostamente, seria melhor para ele mesmo. Só que a família de um usuário de drogas pode ser prejudicada por suas ações. Eles podem ter que acordar no meio da madrugada para socorrem o usuário em uma emergência. Eles podem ter que cobrir os custos materiais da droga na vida desse indivíduo. Eles podem simplesmente sofrer emocionalmente ao assistirem a decadência de um ente querido. Isso tudo não conta como dano?

Mas a questão é o sentido do "ter que" acima. Você não é forçado a socorrer seu ente querido financeiramente. Você pode escolher pagar o preço de vê-lo sofrendo. Em suma, você o socorre, porque quer, a menos que ele tenha chegado ao ponto de apontar uma arma para sua cabeça. Enquanto não chegarmos a esse ponto, existe dano, mas não existe dano à liberdade. Em outras palavras, o princípio do dano abre as portas para restrições de sua liberdade em ações em que você não restringiu a liberdade de ninguém.

A coisa fica ainda pior. Eu disse acima que você pode escolher omitir socorro. Portanto, nesse caso, se você sofre um dano causado pelo seu ente querido, esse dano é consentido por você. Mas não é bem assim no cenário do princípio do dano, porque Mill ainda admite explicitamente que o princípio legitima também a coerção à performance de atos individuais de beneficência. Em outras palavras, amigos libertários, Mill, de bom grado e conscientemente, abre as portas para deveres positivos.

There are also many positive acts for the benefit of others, which he may rightfully be compelled to perform...
Para Mill, não apenas nossas ações, mas também nossas omissões podem causar danos a terceiros, de forma que você deve prestar contas pela injúria da omissão. Ora, nada mais anti-libertário do que isso! A boa lição de Nozick é que, do fato de podermos impedir um dano, mas não o fazermos, não decorre que tenhamos sido a causa do dano. Nozick aponta que só seríamos a causa do dano por omissão, justamente se fosse pressuposto que tínhamos a responsabilidade ou o dever de agir quando nos omitimos. É verdade que Mill diz que os casos em que somos responsabilizados por omissões são de exceção, mas fica aberto mais um flanco para ataques contra a liberdade.

Por fim, eu quero expor também meu descontentamento com o fundamento utilitarista do princípio do dano. Já disse aqui e repito: utilitarismo é coletivismo; se advogada pela causa da liberdade individual, é só como meio. Isso fica claro no texto de Mill quando ele nos diz que o princípio último de todas as questões de ética é a utilidade em sentido amplo, definida como: os interesses permanentes do homem como um ser que progride. Quer dizer, no fim, não importa a sua vontade de fato, os seus interesses particulares, mas, assim como para os democratas, está em jogo um conjunto de interesses abstratamente considerados, a serem definidos pelos legisladores e opostos aos cidadãos reais, empiricamente tomados. Se se deixa espaço para a manobra dos indivíduos reais, é apenas porque se acredita que essa margem de não-interferência serve a esse homem abstrato a ser sempre aperfeiçoado.

Bom, e Kant? Kant pode até ter se degenerado depois, no desenrolar de sua filosofia política, mas, como bem aponta Berlin, ele começa como um genuíno individualista. A humanidade na sua pessoa é digna de respeito absoluto. Isso implica que você pode ser restrito na busca dos seus fins, mas jamais pode ser usado como um meio para quaisquer fins, como, por exemplo, o progresso da humanidade em seus "interesses permanentes".

O que está em jogo é justamente qual o princípio que orienta essa restrição da liberdade do indivíduo na busca de seus fins privados. É nesse momento que Kant formula o PNA melhor que qualquer libertário de carteirinha. A liberdade só pode ser restrita em nome dela própria: é permitida apenas a coerção da coerção. Se minha liberdade pode coexistir com a sua e, mesmo assim, você me restringe, aí sim, você me causa dano: dano à liberdade! Para Kant, não cabe ao direito interferir se um dano foi causado apenas graças ao consentimento daquele que o sofreu.

Por isso que, diga-se de passagem, em Kant, não cabe o conceito de "coerção moral" cunhado por Mill. De acordo com Mill, interferências na liberdade também podem ser morais, e não apenas físicas, no sentido em que alguém pode sofrer como sanção uma reprovação. Ora, isso não cabe em Kant. É verdade que posso ser moralmente punida pela reprovação do juízo alheio. Mas o seu mero juízo não restringe meu arbítrio. Eu posso continuar fazendo as mesmas coisas que você reprova, enquanto você meramente expressa sua reprovação. Assim, pode ser anti-ético que você me censure sem boas razões, mas não é uma violação de direitos meus, porque eu não tenho um direito à sua aprovação. Esse é mais um benefício do modo preciso como Kant distingue ética e direito, coisa que Mill não fez.

Voltando ao exemplo do usuário de drogas, eu posso sofrer se escolho não ajudar meu ente querido em sua decadência. Mas nem todo sofrimento é uma violação de um direito meu, ou seja, uma restrição de minha liberdade. Eu não tenho o direito de não ser emocionalmente magoada ou de não ser contrariada. Uma ameaça qualquer de sofrimento, por si só, não restringe minha liberdade.

Por exemplo, uma coisa é dizermos: "se você bater em João, não falo mais com você". Aqui, o indivíduo fica perante uma simples escolha: ou bate no João, ou continua falando comigo, sendo que ele não pode reivindicar um direito a uma coisa ou a outra. Ele não tem direito à minha ação de conversar com ele. Eu não tenho a obrigação de falar com ele, ou eu seria uma escrava dele, em vez de um ser livre. Da mesma forma, ele não tem o direito de usar o corpo de João como saco de pancadas, ou João seria um escravo dele, em vez de um ser livre. Assim, a liberdade do sujeito fica preservada na encruzilhada em que eu o coloco. Ele escolhe. Não poder ter as duas coisas não é sinal de falta de liberdade.

Agora, se eu digo: "se você bater no João, eu mato você, ou prendo você, ou tomo sua propriedade", a coisa muda de figura. Você tem o direito de não ser morto, não ter seu corpo aprisionado e não ter sua propriedade levada, porque a sua liberdade é restringida em qualquer um desses casos. Adotar esse tipo de ação contra você claramente restringe sua liberdade. Por que eu teria o direito de restringir sua liberdade? Na verdade, eu não tenho. Só passo a ter se você bater em João, ou seja, restringir a liberdade dele primeiro. A minha ameaça só é legítima, porque ela visa obstruir uma escolha ilegítima.

Tudo mudaria se eu dissesse: "se você não falar mais comigo, eu mato você". Aqui, ao não falar com você, eu não restrinjo sua liberdade. Eu apenas deixo de prover você com o que você considera um bem: minha companhia. Ao me matar, porém, você restringe minha liberdade terminantemente.

Já fica implícito aqui que o princípio de Kant ainda tem a vantagem de excluir explicitamente as ações de benevolência do âmbito do direito, reservando-as para a ética, ao afirmar que o direito não trata da relação do meu arbítrio com seus fins (necessidades ou desejos), mas sim de uma relação externa e formal entre nossos arbítrios, em que se analisa apenas se um arbítrio impediu o outro.

Enfim, por essas e outras, acredito que libertários devamos "perdoar" a filosofia política de Kant e abraçarmos como PNA o princípio universal do direito que diz que a minha ação é conforme ao direito (portanto, não pode ser impedida), quando pode coexistir com a liberdade de todos os outros conforme uma lei universal. Se você acredita que o papel do direito é ser um garantidor da liberdade individual, pronto, o princípio é esse. Se o próprio Kant foi sempre fiel a ele, é outra história. Podemos nos apropriar do que nos interessa em um autor, deixando o resto lá.



sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Religião cívica e filosofia política no Brasil


Momentaneamente, tenho deixado Nozick de lado para me concentrar em seus predecessores do liberalismo clássico. Tem sido um prazer descobrir autores como Benjamin Constant e John Stuart Mill, que, até então, eu só conhecia por rápidas referências em fontes secundárias. Mas também é com muita tristeza que constato que uma tradição tão rica, com raras exceções, parece esquecida no Brasil. Via de regra, quando se fala em liberalismo clássico no Brasil, pensa-se em Locke, talvez o único liberal que figure com frequência no currículo dos cursos de filosofia no país. Sem contar que o interesse por Locke parece se dar muito mais em virtude do seu contratualismo do que em virtude de seu liberalismo. Ainda por cima, veja bem, estamos falando de um filósofo do séc. XVII. Minha impressão pessoal é que o liberalismo do séc. XIX, por exemplo, seria indiferente para as reflexões políticas feitas na academia brasileira.

A meu ver, o que se quer esquecer de autores tais como Benjamin Constant, John Stuart Mill ou, mais recentemente, Isaiah Berlin é que a democracia, no seu melhor, pode perfeitamente ser tirânica, sem deixar minimamente de ser democracia. Por exemplo:

The liberals of the first half of the nineteenth century [...] pointed out that the sovereignty of the people could easily destroy that of indi­viduals. Mill explained, patiently and unanswerably, that govern­ ment by the people was not, in his sense, necessarily freedom at all. For those who govern are not necessarily the same 'people' as those who are governed, and democratic self-government is not the government 'of each by himself', but, at best, 'of each by all the rest'. Mill and his disciples spoke of 'the tyranny of the majority' and of the tyranny of 'the prevailing opinion and feeling', and saw no great difference between that and any other kind of tyranny which encroaches upon men's activities beyond the sacred frontiers of private life. (Berlin, "Two Concepts of Liberty")

No mesmo texto e ainda mais enfaticamente:

Democracy may disarm a given oligarchy, a given privileged individual or set of individuals, but it can still crush individuals as mercilessly as any previous ruler. An equal right to oppress - or interfere - is not equivalent to liberty.

Se formos diretamente ao texto de Mill, On Liberty, encontramos, por exemplo, que:

A time, however, came, in the progress of human affairs, when men ceased to think it a necessity of nature that their governors should be an independent power, opposed in interest to themselves. It appeared to them much better that the various magistrates of the State should be their tenants or delegates, revocable at their pleasure. In that way alone, it seemed, could they have complete security that the powers of government would never be abused to their disadvantage.
[...]
As the struggle proceeded for making the ruling power emanate from the periodical choice of the ruled, some persons began to think that too much importance had been attached to the limitation of the power itself. That (it might seem) was a resource against rulers whose interests were habitually opposed to those of the people. What was now wanted was, that the rulers should be identified with the people [...]. The nation did not need to be protected against its own will. There was no fear of its tyrannising over itself.
[...]
The notion, that the people have no need to limit their power over themselves, might seem axiomatic, when popular government was a thing only dreamed about, or read of as having existed at some distant period of the past. [...] It was now perceived that such phrases as ‘self-government’, and ‘the power of the people over themselves’, do not express the true state of the case. The ‘people’ who exercise the power are not always the same people with those over whom it is exercised; and the ‘self-government’ spoken of is not the government of each by himself, but of each by all the rest. The will of the people, moreover, practically means the will of the most numerous or the most active part of the people; the majority, or those who succeed in making themselves accepted as the majority; the people, consequently, may desire to oppress a part of their number; and precautions are as much needed against this as against any other abuse of power. The limitation, therefore, of the power of government over individuals loses none of its importance when the holders of power are regularly accountable to the community, that is, to the strongest party therein. 
É muito importante atentar para o fato que o que esses autores têm em mente como "tirania da maioria" não se aplica apenas a democracias diretas - Mill claramente trata de uma democracia representativa - ou ao exercício arbitrário do poder de uma massa, que não se constitui em lei. O liberalismo de que tratamos aqui aconselha a restrição do poder da lei legitimamente promulgada em democracias representativas como a nossa. Berlin fala da necessidade de regras que delimitem fronteiras que a lei democrática não possa cruzar, sejam essas regras oriundas do direito natural ou do utilitarismo ou do que mais seja, pouco importa. O ponto é que, quando se acredita em liberdade como algum direito de não-interferência pertencente a cada indivíduo, o legislador do Estado Democrático de Direito e o bandido com o canivete na esquina estariam igualmente obrigados a recuar perante tal direito. Agora, se não acreditamos na existência desse espaço, por mínimo que seja, sobre o qual o Estado está proibido de avançar legitimamente, a lição liberal é que o indivíduo é convertido em escravo da maioria, e não será menos escravo ainda que se auto-declare como livre. No texto de Berlin já citado, lemos que: 
The triumph of despotism is to force the slaves to declare themselves free. It may need no force; the slaves may proclaim their freedom quite sincerely: but they are none the less slaves.
Naturalmente, eles são escravos se temos em vista o conceito liberal de liberdade: o direito (em alguma medida) à não-interferência. Estamos dispostos a abrir mão desse conceito? Estamos dispostos a entregar cada espaço de nossas vidas à legislação democrática? Diante de questões como a união civil homossexual, por exemplo, não seria o caso de simplesmente dizermos ao Estado Democrático de Direito: "Família, não! Não é sua esfera defini-la ou legislar sobre ela!"? 

O custo de convertermos a liberdade no direito a um voto - sobretudo, como observa Benjamin Constant, nos Estados Modernos, onde um voto não decide nada - parece alto demais, pois parece o completo abandono de qualquer autonomia individual a favor da assim chamada "soberania popular". Como nos advertia Mill na passagem acima, se o poder é do povo, pode parecer que não faz sentido limitá-lo, pois como poderia o povo escravizar a si mesmo? Ah, mas esquecem do indivíduo... Esquecem que o poder do povo sobre si mesmo está longe de corresponder ao poder do indivíduo sobre si mesmo, por mais que a filosofia política contratualista se esforce para promover tal assimilação.

O fato é que, sendo ou não bem sucedido em seu argumento, o acadêmico brasileiro, no mais das vezes, parece ter esquecido do debate. Portando-se muito mais como o ministro de uma religião cívica do que como filósofo, ele assimila "democracia" ao "regime da liberdade", sem mais, sem qualificações ao que se entende por essa tal "liberdade", sem se lembrar de Berlin... Assim, qualquer um que critique a democracia é imediatamente assimilado a um defensor da intervenção militar. Isso mesmo, se expomos os possíveis problemas morais da democracia, nem se lembram mais que, com isso, queremos dizer que ela não deve interferir com o indivíduo. Já implicam que queremos dizer que, nela, devem interferir os militares. Menos democracia, oras bolas, na boca de um liberal, significa apenas: mais espaço para decisões individuais. Não significa a troca de um ocupante do poder por outro.

Mas na esteira da conversão da democracia em religião cívica, a própria palavra "democrático" se tornou adjetivo que valoriza qualquer intervenção, seja ela qual for. "Você não está sendo democrático!" não comporta como resposta um "e daí!". Pois deveria! 

No pensamento político brasileiro atual - sobretudo, em suas versões mais acadêmicas (por que será?) - liberalismo é sinônimo de uma pura e simples defesa do corte de gastos sociais, e não de uma teoria moral geral sobre a necessária limitação do Estado, seja lá quem exerça o poder. Assim, liberalismo é um demônio a ser combatido, não uma filosofia a ser seriamente estudada.

Enfim, nunca pensei que eu fosse dizer isso, mas acho que vou mandar fazer umas camisetas com os dizeres: "Menos Rousseau, Mais Constant"; e quem sabe até (e, principalmente, no nosso caso): "Menos Kant, Mais Mill".




 

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Regulamentação da mídia: o que o governo realmente quer?


Em 2015, a regulamentação da mídia pautará boa parte do debate político nacional. Difícil não entender essa agenda petista como uma simples reação a matérias fortemente oposicionistas publicadas por meios de comunicação como a revista Veja. Mas deixemos de lado essa reação imediata e foquemos nos argumentos comumente apresentados por aqueles que reivindicam um projeto de regulamentação do tipo. Claro que a primeira palavra que nos ocorre é "monopólio". Alega-se que, se cabe ao governo impedir um monopólio em qualquer setor da economia, por um silogismo simples, também cabe ao governo impedir um monopólio dos meios de comunicação. 

Ora, primeiramente, cabe observar que não existe monopólio dos meios de comunicação no Brasil. "Mono - pólio", o nome já diz, implicaria em um único proprietário de todos os meios. Não é esse o caso! Na verdade, eles mesmos gostam de dizer que umas cinco ou seis famílias detêm os meios de comunicação no país. Seria então um oligopólio, certo? Rigorismos à parte, o argumento se repetiria: também caberia ao governo acabar com oligopólios. Mas será que podemos ousar criticar essa premissa maior do nosso silogismo?

Pois bem, eu não acredito que o governo deva combater monopólios ou oligopólios não violentos em quaisquer áreas. Explico. O problema com monopólios e oligopólios só surge quando os empresários estabelecidos proíbem novos entrantes no seu mercado. Por exemplo, você começa a vender um jornalzinho estudantil na sua escola e ameaça bater nos coleguinhas que imitem sua ideia, começando a vender também seus jornalzinhos. Nesses casos específicos de uso da força ou ameaça de uso da força para eliminação da concorrência, é legítimo que se use a força no sentido contrário, para garantir o livre mercado. 

Note, então, como uma curiosidade, que a atuação dos governos reais não costuma se reduzir à proibição dos monopólios e oligopólios violentos. Governos são, sim, os criadores de monopólios e oligopólios violentos! São os governos que usam a força para proibir que novos entrantes apareçam em certos mercados, como, por exemplo, no precário mercado de telefonia do Brasil. Na verdade, o próprio governo, enquanto Estado, é um monopólio que criminaliza a concorrência com ele em seu território. Assim, é bem chocante que um governo, qualquer governo, venha nos dizer que é um opositor de monopólios, amigo do livre mercado.

Agora, note como a proibição dos monopólios ou oligopólios não violentos, ao invés de ser um ato de proteção da liberdade, é, na verdade, uma agressão à liberdade. Voltemos ao seu jornalzinho estudantil. Desta vez, você não usou de força ou ameaça de uso da força para desmotivar seu coleguinha a concorrer com você. Em vez disso, ele desistiu espontaneamente de competir, quando verificou que não tinha recursos suficientes para oferecer um produto de qualidade pelo preço que você oferecia. Você teve a ideia primeiro, ganhou dinheiro, ampliou seu negócio e conseguiu investir em papel de qualidade, contratou outro coleguinha para ser um ilustrador e assim por diante. O seu novo concorrente não tem capital suficiente para contratar outros coleguinhas para melhorarem a qualidade do serviço dele e nem pode investir em uma matéria-prima de tanta qualidade. O jornalzinho dele é feio, de conteúdo pobre e o preço acaba não sendo muito diferente do seu. 

Resultado: ninguém (ou quase ninguém) escolhe comprar o jornalzinho do seu concorrente, porque a relação custo/benefício não compensa para o consumidor. Consequência: seu concorrente fecha por uma decisão dele, baseada em pura análise de custo e benefício para ele, uma análise na qual não entrou nenhuma ameaça de violência da sua parte. O que acontece? Você tem um monopólio não violento, uma simples situação de fato e momentânea, e uma situação que, por sinal, não fere a liberdade de ninguém, nem de concorrentes e nem de consumidores. Logo, uma ação de fora para limitar o seu negócio seria uma pura e simples proibição do sucesso.

No mais, se nenhuma violência se fizer presente, a tendência é que seu monopólio fatual seja abalado a qualquer momento por um novo entrante que acredite ter capital suficiente para conquistar ao menos uma fatia do seu mercado. Um observador externo notará, por exemplo, que você não fala muito sobre vídeo-games no seu jornalzinho, ao passo que, na escola, há um público ávido por mais matérias sobre games. Então, esse observador pode convencer investidores (outros coleguinhas) a lançarem com ele um jornalzinho só sobre games: um nicho que você não estava explorando devidamente. E por aí vai... Não há mercado realmente aberto que tenda à perpetuação de monopólios de fato, até pelo simples fato de que pessoas têm gostos e necessidades diferentes. Empiricamente, mercados monopolizados são sempre, pasmem, mercados... excessivamente regulamentados pelos governos. Irônico, não?

Ok, agora, que podemos descartar essa balela sobre monopólios (ou melhor, oligopólios), podemos questionar o que realmente quer o governo. Qual a situação de fato quando alguém limita o tamanho do seu jornalzinho (seja limitando a tiragem ou definindo em que partes da escola você pode vender), ou ainda te proíbe de começar um fanzine na escola, porque, afinal, você já tem um jornalzinho? Já vimos que apenas sua liberdade está sendo restringida, e a de mais ninguém, já que o tamanho do seu negócio, a menos que você proíba concorrentes, por si só, não cerceia a liberdade de ninguém. Mas a situação de fato que interessa ao regulador quando ele cerceia sua liberdade dessa forma é que você perde poder de disseminação do seu conteúdo. Antes, a escola inteira, se quisesse, poderia acessar conteúdo produzido por você. Agora, mesmo que alguém queira, será impedido de comprar conteúdo produzido por você, porque você está proibido de ter um negócio grande (a regulamentação definirá o que é "grande").

Mas por que interessa tanto ao governo que um empresário não possa atingir um público além de um certo limite? Simples, meu caro, nesse cenário, quem é o único que atinge a todos dentro de um mesmo território? Ele mesmo: o governo! A nossa presidente pode entrar em cadeia nacional de rádio e TV no momento em que bem entender. Além disso, os gastos públicos com propaganda governamental são sempre exorbitantes. Eventualmente, até carteiros (os funcionários de um certo monopólio governista) distribuirão material de propaganda governista, não é? Qual a melhor maneira de não se ter oposição sem ter que partir diretamente para a censura de conteúdos? Isso mesmo: você impede qualquer outro de atingir um público suficientemente grande para incomodar o governo. 

Sim, outros governos fizeram isso. Por exemplo, o mesmo governo argentino que saiu à caça do Clarin usou uma TV estatal para reproduzir um documentário sobre vida animal, enquanto o povo saía às ruas para protestar... contra o governo. 

Por falar em sair às ruas, dia 15 de novembro está aí. Se você precisava de mais um motivo para ir às ruas mostrar sua oposição ao PT, que tal este? Vá enquanto há canais que possam exibir sua manifestação para todo o Brasil.