Um dos Gedankenexperiment mais consagrados da história da filosofia certamente é aquele envolvido no conceito de "estado de natureza". Nesta segunda parte do post "Uma defesa moral do capitalismo", recorrerei a esse experimento para sugerir que os valores morais intrínsecos ao capitalismo independem de convenções sociais contingentes, o que não seria o caso dos valores empregues pelos detratores do capitalismo para julgá-lo.
Como sabe - ou deveria saber - toda pessoa minimamente versada em filosofia, o conceito de "estado de natureza" não é um conceito que apele a um tempo histórico anterior à constituição das sociedades civis. Como eu já disse, ele envolve um "experimento de pensamento", portanto, uma situação que apenas pode ser construída na imaginação, e não efetivamente realizada. Sendo assim, trata-se de imaginarmos um estado do qual os governos foram suprimidos, e não de investigarmos um estado no qual ainda não havia governos. A intenção da realização desse experimento - muitas vezes e, certamente, desta vez - é descobrir o que, na condição humana, depende das convenções políticas, só podendo existir graças à formação de sociedades civis, e o que vigora independentemente dos governos. O meu ponto será mostrar que o capitalismo depende de um valor inerente ao "estado de natureza", que só pode, por conseguinte, ser suprimido artificialmente com a formação da sociedade civil, supressão esta que, portanto, precisa ser justificada; ao passo que os críticos do capitalismo se apóiam em valores alheios ao "estado de natureza", que só podem, portanto, ser introduzidos em sociedades civis, introdução esta que, consequentemente, precisa ser justificada.
Muito bem, o que é claro no "estado de natureza" é que ninguém é assinalado para exercer poder sobre os demais. Pode haver o domínio de um sobre o outro pela força e é muito provável que haja mesmo, mas não existe uma qualidade que determine uma ascendência natural de um sobre o outro, de tal forma que se possa dizer que um tem o direito natural de mandar enquanto outro tem o dever natural de obedecer. Em outros termos, no "estado de natureza", se um usa a força para dominar o outro, não há nenhuma justificativa para que se negue a esse outro o direito de lutar com todas as suas forças para resistir à coação sofrida.
Ora, a grande mudança moral que se pretende introduzir no "estado civil", com a constituição de um governo, é justamente a retirada desse direito de resistência ao comando alheio. Quem acredita que o Estado tem justificativa moral não acredita apenas que ele manda, porque pode, enquanto eu obedeço, porque tenho juízo; mas sim que eu tenho o dever moral de obediência ao poder do Estado. Quero extrair disso que, sem a constituição do Estado, eu tenho o direito de lutar com todas as minhas forças para conservar o que tomo como meu e, obviamente, o direito de negociar da forma como eu bem entender o que tomo como meu.
Veja bem, não discuto se outro mais forte não tem igual direito de tentar tomar pela violência o que eu tomo como meu. Não quero tentar justificar o direito natural à propriedade privada no contexto deste post. Por isso, concedo que a propriedade possa ser uma questão de disputa pela força e de eventuais acordos de compartilhamento de bens e respeito à propriedade, quando isso for conveniente aos interessados. O fato é que, se não existir direito natural à propriedade privada, então o outro também não terá mais direito do que eu a nada, de modo que eu ainda terei o direito de lutar pelo que eu quiser, da mesma forma que eu teria o direito de defender meus bens se houvesse direito natural à propriedade privada. Assim, de um modo ou de outro, havendo ou não havendo direito natural à propriedade privada, o importante é que será justamente o direito natural de resistência ao arbítrio alheio que os defensores da moralidade do Estado quererão limitar.
Ora, é da natureza do Estado, o confisco de bens que tomo como meus, pois os impostos nada mais são do que isso. Quem defende moralmente o Estado, defende que eu não tenho o direito de resistir a um arbítrio alheio que vem e toma o que considero como meu e quero conservar assim. Assim, muitos estatistas, reconhecendo-se incapazes de legitimar moralmente o próprio conceito de "IMPOSTO", preferem fingir que ele não existe, como se em democracias modernas e populares, cada indivíduo concordasse espontaneamente em entregar ao menos parte do que considera como seu ao Estado. Pois é óbvio que não é o caso. Onde houver uma lei determinando uma sanção ao indivíduo que se negar a entregar o que é seu ao Estado, lá haverá também coação do arbítrio de um sobre o arbítrio do outro, e pouco importa que o governo tenha sido eleito por 100% da população.
Mas onde eu quero chegar com isso se meu ponto é o capitalismo? Pois bem, meu ponto é justamente que o capitalismo não depende do Estado e, consequentemente, sua legitimidade não depende de uma boa justificativa para o poder do Estado. Uma sociedade capitalista pode ser meramente uma sociedade onde, em nome de cada interesse privado, acontecem acordos de respeito mútuo ao que cada um toma como seu e de cooperação para a resistência àqueles que não aceitarem o acordo. O capitalismo, em outras palavras, é perfeitamente adequado ao "estado de natureza", afinal, nem sequer haveria sentido na luta pela conquista e preservação de bens se não tivéssemos a intenção de negociar o que é nosso com outros. Portanto, seria distintivo de um "estado de natureza" humano, e não meramente animal, que ocorresse a formação de uma economia de mercado para ampliação e conservação do bem-estar de cada um, em vez de vivermos apenas disputando mortalmente o jantar de cada dia.
Note, não quero com isso dizer que não haverá violência no "estado de natureza", mas apenas que, da mesma forma que uns escolherão viver como predadores, outros escolherão formar sociedades para se protegerem dos predadores e negociarem seus bens entre si. O capitalismo depende apenas dessas associações espontâneas, e não da legitimidade de um poder ao qual todos devem se curvar, mesmo quando acham que dessa submissão não decorre benefício algum.
Agora, e os detratores do capitalismo? Como eles se encaixam neste cenário? Eles querem justamente negar o direito de cada um - portanto, tanto do mais fraco quanto do mais forte - de lutarem da melhor maneira possível pelo que julgam como sendo do seu maior interesse. Na verdade, o opositor do capitalismo não quer apenas nos fazer acreditar que existiria um dever de nos submetermos ao arbítrio do outro pacificamente. Ele ainda vai além, querendo utilizar esse poder contra o qual não haveria direito de resistência para instituir uma igualdade material que é completamente estranha ao "estado de natureza".
No "estado de natureza", assim como no capitalismo, não existe igualdade nem mesmo de oportunidades. Uns nascerão fisicamente mais fortes, outros mais bem dotados do ponto de vista intelectual, outros ainda serão politicamente mais habilidosos, enquanto outros virão de famílias mais bem sucedidas e assim por diante. Na verdade, enquanto uns terão tudo isso; outros, talvez, não contem com nada disso. Mas e daí? Para que tal desigualdade seja dita injusta, ela não poderia ser natural. Pelo contrário, ela teria que ser o fruto de uma distribuição equivocada que não teria respeitado princípios eqüitativos previamente estabelecidos. Mas ninguém distribuiu nada no "estado de natureza"! Todas as vantagens de uns sobre outros são apenas fatos naturais. Assim, por que o mais forte teria que aceitar abrir mão de sua vantagem natural em prol do mais fraco? Que razão ele teria para tanto? E, mesmo que ele tivesse alguma razão estratégica para fazer concessões do tipo, por que o mais fraco teria o direito de obrigá-lo a fazer tais concessões?
Eu vejo um grave problema quando o Estado cria vantagens e desvantagens competitivas, justamente porque não vejo nenhuma justificativa moral para que uns sejam privilegiados e outros, preteridos por um grande distribuidor de benefícios. Como eu disse desde o início, ninguém é naturalmente assinalado para uma ascensão sobre os demais. Acontece que, da mesma forma, eu também não vejo razões para que o Estado gere uma igualdade que não lhe antecede. Isso seria praticar violência contra o mais forte, que, afinal, não tomou sua força de outro e nem foi ilegitimamente beneficiado por um distribuidor.
Como conclusão, eu cobro dos detratores do capitalismo uma justificativa do suposto direito que o Estado teria de corrigir a natureza e tentar nivelar o ponto de partida de todos os indivíduos na corrida da vida. Pior ainda, se a intenção deles for acabar com a própria corrida, impedindo o mais forte de competir, em benefício do mais fraco. Naturalmente, os mais fracos teriam o interesse de se unir para virarem o jogo contra os mais fortes. Mas o que eu quero saber é por que vocês acham que isso seria moral, ou seja, por que o mais forte não teria o direito de resistência ao arbítrio alheio que assiste a todos no "estado de natureza". O ônus da prova é todo de vocês.
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