sábado, 23 de junho de 2012
Os neo-"cara-pintadas"
E eis que, ontem, eu abro meu Facebook e vejo a volta do movimento dos "cara-pintadas". De novo, trata-se de um processo de impeachment. Porém, desta vez, os "cara-pintadas" não vão para as ruas, afinal, vivemos em tempos de "revoluções do sofá". Eles também mudaram de lado. Agora, impeachment virou coisa de "golpista". Bom, uma vez que o processo que tirou Ferando Collor do poder no Brasil foi completamente político, Collor jamais foi condenado pela justiça e, hoje em dia, ainda é senador eleito e membro de conselho de ética, sendo que ninguém nunca antes na história deste país ousou dizer que Collor teria sofrido um golpe no parlamento, eu fiquei muito intrigada com a reação dos neo-"cara-pintadas".
Quer dizer, na verdade, não fiquei intrigada. Conhecendo meus amiguinhos de Facebook, eu deduzi em uma fração de segundos qual era a diferença relevante entre os casos dos dois Fernandos, o Lugo e o Collor: se o último havia derrotado um PT então de esquerda nas urnas, o primeiro só poderia ser de esquerda. Dito e feito. Fui pesquisar e descobri, com um arzinho de "elementar, meu caro Watson", que Fernando Lugo é um ex-padre identificado com movimentos sociais. Lembrei-me então que eu realmente havia lido algumas coisas sobre a grave situação dos chamados "brasiguaios" no Paraguai, que não tinham seu direito de proprietários devidamente respeitado e não podiam contar com o Estado para garanti-lo, o que teria levado-os, inclusive, a apelos ao governo brasileiro (santa ingenuidade!). Ao que parece, a situação de instabilidade e insegurança jurídica no campo atingiu seu ápice no Paraguai recentemente, fazendo mortos dos dois lados. Daí a decisão do parlamento de dar um basta à situação. Golpe?
Ora, dizem a boa filosofia e a boa lógica que um argumento não é ou deixa de ser válido em função dos interesses pessoais de seu proponente. Sendo assim, não é porque os comunas pintaram a cara e gritaram "golpe" que não se trata mesmo de um golpe. Mesmo imbuída então de toda antipatia pelo tal Fernando Lugo (por sinal, a mesma antipatia que nutro por Kirchner, Morales, Chávez, etc.), procurei saber qual era o argumento dos neo-"cara-pintadas", afinal de contas, a sociabilidade e a civilização dependem de nossa disposição para separarmos razões de interesses no discurso, mesmo que venhamos a concordar ou discordar de alguém por causa de interesses, e não com base em razões.
Soube então que "o que estava pegando" é que o "julgamento" de Lugo foi um rito sumário que durou cerca de 24h. Foi-me dito, inclusive, que a constituição paraguaia estipularia um prazo mínimo de 18 dias para a realização da coisa toda*. Muito bem, quem nunca se importou em gritar pelo direito dos proprietários paraguaios, agora, estava preocupado com formalidades legais. Que seja! Se é isso mesmo que diz a constituição (não sou jurista especialista na constituição paraguaia, então concedo que seja), os parlamentares erraram. Como é de se esperar de um país com instituições fracas, o processo foi atropelado e desastrado. Mas chegou a ser um golpe, uma conspiração?
Para responder essa pergunta, deveríamos pensar se há boas razões para supormos que o desfecho do processo teria sido outro, fossem respeitadas todas as formalidades devidas ou fosse simplesmente concedido mais tempo para a defesa do presidente. Ora, também foi-me dito que a constituição paraguaia permite expressamente que o parlamento impeça o presidente por "mau uso do poder" ou coisa que o valha (não me ocorre mais a terminologia exata). Consequentemente, eu pergunto: é razoável acreditarmos que, em tendo 18 dias para formular sua defesa, Lugo teria provado sua inocência? A pergunta soa-me mesmo ridícula, porque não há o que ser provado objetivamente. O conceito de um "mau uso do poder" é completamente vago e mesmo subjetivo. Em suma, no Paraguai, é perfeitamente constitucional que o parlamento - tão eleito pelo povo quanto o presidente, diga-se de passagem - decida politicamente se o presidente deve continuar no poder ou se o poder deve ser transferido para o vice, eleito pelo povo juntamente com o presidente, para governar na ausência deste último. Onde está o golpe? Vamos falar em "golpe constitucional", uma verdadeira contradição nos próprios termos, como fez a Folha?
Mais de 70 deputados votaram pela abertura do processo de impeachment contra Lugo, que recebeu um voto a seu favor na câmara. No senado, 39 senadores votaram contra Lugo, 4 a seu favor. Diríamos então que a constituição paraguaia é propícia ao "golpe" legalizado, afirmando que um presidente que chega a esse extremo em sua rejeição no parlamento pode, legitimamente, se manter no cargo? Eu não!
A ideia de que um presidente possa governar com todo parlamento fazendo oposição a ele me parece favorecer um dos piores tipos possíveis de regime político: aquele tão típico na história da América Latina, em que governa um líder carismático populista e, por isso mesmo, muito popular. Por vezes, é difícil mesmo enxergarmos a fronteira entre o presidencialismo e o populismo em nosso continente. Assim, nossos intelectuais esquerdistas, via de regra, concebem os parlamentos como um clube privado da elite e os presidentes, por sua vez, como os únicos verdadeiros representantes do povo.
De fato, os nossos parlamentos são mesmo clubes de caciques políticos tradicionais. No entanto, desejáveis reformas não devem se dar no sentido de retirar poder do parlamento enquanto instituição, mesmo que seja o poder de destituir um presidente eleito, o que tornaria possível que um presidente governasse contra todo um parlamento, como seria o caso se Lugo continuasse no cargo. Presidentes que podem governar contra congressos não são meramente presidentes, são ditadores populares. Só estes últimos poderiam prescindir das condições políticas de governabilidade das quais Lugo não dispunha.
O Brasil, com o impeachment de Collor, por exemplo, pegou o caminho do mal menor, fortalecendo o congresso. Lula, o grande messias, teve seu poder limitado por aqueles a quem supostamente teve que pagar o mensalão para poder governar. O melhor, certamente, seria uma autêntica república, preferencialmente parlamentarista, em que o chefe de governo teria que compor legalmente com o parlamento para poder governar. Mas, se isso não é possível ainda na América do Sul, eu até prefiro um país como o nosso, onde um parlamento mequetrefe precisa ser cooptado e corrompido, a uma republiqueta onde um líder carismático manda e desmanda a seu bel prazer. Acho que, graças à sua constituição, o Paraguai, ontem, mostrou que também pode evitar esse mal maior. Eu me pergunto então se muitos dos brasileiros que pintaram a cara ontem - talvez, assim como nos anos 90 - não teriam sonhado com uma ditadura popular lulista no próprio Brasil.
*Atualizo o post para observar que tal determinação, de fato, não existe na constituição paraguaia.
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Legalidade não implica em legitimidade, vide o cerceamento da defesa. Não creio que um processo para deposição de um presidente de nação que ocorre em 24 horas deva ser levado a sério como vontade do povo que o elegeu, a ele e aos deputados e senadores que o depuseram. No mais, Fernando Lugo ganhou de um partido que se manteve por 60 anos no poder de forma ininterrupta, sendo muito mais provável que um grupo limitado que consiga se perpetuar tanto tempo no poder seja o motivo de instituições fracas e constituições "golpistas" mais do que o grito de esquerdistas de internet inventando golpes pelo mundo. Motivo e instrumentos para um golpe de estado se tem. Modus operandi também. Se não foi um golpe, está passando bem perto do limite.
ResponderExcluirEu abordei esses pontos no post, Marco, embora vc não tenha q se dar por satisfeito com o q eu disse, é claro. É verdade q legalidade não implica legitimidade. Entretanto, um golpe, por definição, tem que ser a subversão da ordem legal/institucional, o que não parece ter sido o caso.
ExcluirEu também abordei a questão da importância do cerceamento do direito de defesa neste caso. Estamos falando de defesa de quê? Basicamente, a constituição paraguaia permite que o parlamento destitua um mau presidente. Agora, o q é um mau presidente? O q o parlamento disser q é! Uma constituicão assim é golpista (como se pudesse haver algo como tal)? Não me parece! Eu sou parlamentarista e acho positivo q uma constituição, mesmo sendo presidencialista, conceda mais força ao parlamento. No parlamentarismo, é natural q o chefe de governo tenha q ser trocado quando ele não consegue compor. Não gosto nada da ideia do poder de um só, afinal, o parlamento, teoricamente, representa divergências, grupos sociais diferentes e opostos, enquanto o presidente não representa os interesses daqueles grupos q não votaram nele, quando e se representa aqueles q votaram nele.
Dito isso, eu procurei argumentar que, uma vez que Lugo chegou a uma condição em q praticamente todo o parlamento estava contra ele (veja os números impressionantes), a única constituição q permitiria sua governabilidade seria uma constituição absolutista. Com isso, não nego q o parlamento paraguaio, assim como o nosso, deva ser composto por picaretas q exploram o povo. Apenas disse q, tanto lá como cá, vejo mais perigo na ideia de um presidente como o homem forte do povo, q possa dispensar alianças com o congresso. Se bem q, na verdade, a julgar pela tranquilidade de hoje no Paraguai, Lugo não era nem o homem forte do povo. Eu estava esperando um confronto sangrento entre policiais e manifestantes. Parece até q a deposição de Lugo causou mais revolta fora do Paraguai do q dentro.
Bom, ter um parlamento todo contrário ao presidente é algo tão surreal? Imagine se o estado brasileiro não funcionasse através de emendas parlamentares atrás de emendas a partir de amanhã, e que a presidente não se dispusesse a negociar cargos estatais a torto e a direito para apoio parlamentar. Teríamos, com absoluta certeza, uma presidente em apuros, sem apoio do parlamento. E então, aceitaríamos sua deposição política pura e simplesmente devido a um apego a certo parlamentarismo? Ainda se houvesse parlamentarismo de fato, incorreria-se na destituição pelas regras do jogo. Mas num regime presidencialista o chefe de governo também é chefe de estado, portanto não há as mesmas implicações que uma mera deposição de primeiro ministro. Voltando à hipotética situação de que a presidente Dilma não tivesse apoio do Congresso e este viesse a tentar a deposição, uma análise simples do papel do congresso e da figura presidencial não bastaria - e aí os trâmites legais que foram ou deixaram de ser seguidos. Há que se saber qual a relação do congresso com a população, quais interesses que envolvem o enfrentamento, quais grupos sociais são de fato representados pelos tais representantes congressistas. Isso não implica que houve um golpe de estado no paraguai, mas que afirmar o contrário ainda não é possível. Um chefe de estado eleito pelo povo deve ser retirado pelo povo, e numa democracia isto é feito através de eleições. O impeachement é um processo de EXCEÇÃO. Não escrevo contra ou a favor da existência de um golpe, não sou conhecedor da realidade política paraguaia a ponto de fazer uma análise que dispusesse dos pontos necessários. Escrevo contra uma minoria que representaria a vontade do povo contrariando a vontade deste meio povo que elegeu seu presidente a quatro anos atrás, e que poderia mudá-lo daqui a alguns meses por um processo direto.
ResponderExcluirUm presidente ruim, um parlamentar ruim, uma política de estado ruim, um sistema político ruim: todos são colocados à prova em eleições diretas. Esse julgamento sim é legítimo, não uma sessão de vinte e quatro horas fechada num congresso. A decisão de retirar o ex presidente do poder pode ter sido acertada e ser coesa com princípios nobres e limpos, e mesmo assim seria ilegítima pela forma como foi.
Quanto à aparente calma interior do país, nada muito diferente da região muçulmana no norte da africa a uns anos atrás, ou provavelmente da maioria da população síria que não se envolveu nos conflitos anti e pró governo que diariamente nos chegam pela mídia. Isto implica em não avaliarmos o que lá ocorre?
Por fim, li o texto sim, professora, inclusive nos pontos que apontou. Só não concordo no enfoque.
Inté, Marco
Bom dia, Marco. Não quis dizer que vc não havia lido o texto, só quis avisar que minha resposta seria repetitiva com relação ao texto ;-)
ExcluirVc toca em um ponto muito importante: o fato do presidente ser tb o chefe de Estado, e não apenas o chefe de governo. De fato, a substituição de um chefe de Estado é bastante traumática e gera instabilidade institucional. Por isso mesmo, alguns países conservam suas monarquias no regime parlamentar q, de toda forma, distingue as duas figuras, o q é outro indício de sua superioridade.
No mais, eu vou tentar resumir minha posição perante o cenário q vc apresenta. Suponhamos que Dilma resolva abandonar Lula como seu "líder e presidente", rompendo todos os acordos políticos q ele fez desde sua primeira campanha bem sucedida, em nome de um purismo de origem. Suponhamos ainda q, mesmo assim, partidos mais à esquerda, como o PSOL, não fechem com ela, por terem seu próprio projeto de poder. Para completar, ela perde também os votos do próprio PT, porque seus correligionários preferem manter a fidelidade ao Lula.
Ora, nesse cenário, a presidente eleita pela maioria do povo simplesmente não pode mais ser presidente, pq não tem como governar o país. É como disse o Sarney uma vez. O congresso vota contra tudo: só não vota contra o próprio congresso. Então, se a Dilma rompesse com o congresso (ou o congresso rompesse com ela) da mesma forma q ocorreu ao Lugo, ficando sem a menor base aliada e não apenas sem maioria, ela teria q renunciar ou ser impedida, para o país não parar. Por isso eu tenho enfatizado q a única constituição q evita essa possibilidade seria uma constituição q conferiria poderes legislativos ao presidente, e não apenas poder de veto. Mas essa não seria uma constituição republicana, seria uma constituição absolutista.
Outro dia, o prefeito de Londrina, Barbosa Neto, deu uma declaração interessante nesse sentido. Ele disse q dar cargos aos aliados era republicano. De fato! Nesse ponto, ele tem razão. Pagar propina por voto é uma coisa. Distribuir cargos no governo para compor esse governo com aliados é outra coisa. Então, o Barbosa tem razão. Uma vez q não existe governo republicano sem algum apoio parlamentar ao chefe de governo, esse apoio deve ser conquistado ou não há governabilidade. O problema do Brasil é q os parlamentos são cooptados pelos chefes de governo e estabelece-se uma relação promíscua entre os poderes q, republicanamente, precisam limitar uns aos outros, para que o governo seja da lei, e não de pessoas (mesmo do povo).
No limite, o presidente compra os votos de q precisa e a República torna-se uma grande farsa, mas a governabilidade é mantida. O Lugo, antes de cair, ainda tentou alguma coisa, concedeu um cargo importante (acho q ministério do interior ou algo assim). Mas não surtiu efeito. Daí ele sabia q não tinha outro desfecho possível q não deixar o governo, por isso sua calma na saída.
O rito foi sumário, mas dizem analistas q já há algum tempo o q segurava Lugo no poder era só a pressão de países como o Brasil mesmo. Quer dizer, no final das contas, era um governo sustentado por intromissão dos vizinhos. O interessante é q, como um colega disse no Twitter, essa intromissão vale para o Paraguai, mas não para o Irã, por exemplo. O Irã pode apedrejar mulheres na rua até a morte e temos q respeitar a auto-determinação dos povos. Em Cuba, tb não se pode falar em "direitos humanos", por exemplo. Já o Paraguai depõe um presidente usando uma prerrogativa aberta por sua constituição e a constituição é golpista, temos q pressionar para voltarem atrás.
Quer dizer, é como eu falei no post inicial. Se fosse um governo de direita, apoiado pelos EUA, os mesmos caras-pintadas estariam soltando fogos pela sua derrubada. Por isso, eu estou deliberadamente tentando evitar a personalização da discussão: quem são os agentes, quem é o bonzinho e quem é o vilão. Estou analisando os fatos: a constituição foi respeitada ou não? um presidente pode governar sem congresso ou não?
Professora, escreva alguma coisa sobre Lukács, Heidegger, ou, já que a senhora gosta de política, Ernesto Laclau. Lugo? Paraguai? Jesus! Já tem gente demais falando sobre essas trivialidades. Temos especialista demais em política. Plagiando Joyce: a política é uma doença da qual eu tento me curar...
ResponderExcluirEu fico sempre tentada em falar sobre política no blog, já que as minhas opiniões não são as mais usuais entre meus colegas. Além disso, não temos a opção de largar mão da política, já que eles teimam em fazer tudo enfiando as mãos em nossos bolsos, não é? Mas, ok, vou tentar variar mais os temas. Obrigada.
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