quarta-feira, 6 de junho de 2012
Sobre menoridade, médicos e padres
Vou contar uma coisa para vocês: tirando Dr. House, o Sherlock Holmes da medicina, detesto médicos! Bom, estou exagerando um pouco. Até tenho simpatia por alguns médicos, mas não pela qualidade de serem médicos. O que acontece para que eu tenha este problema crônico com médicos é que é muito difícil enfiar uma coisa na cabecinha deles: médicos deveriam ser apenas e tão somente profissionais dotados de um saber técnico específico que consultamos mediante pagamento.
Uma comparação: as rosas do meu jardim estão ficando com as folhas esbranquiçadas. Como eu não sou jardineira, eu não sei por que diabos isso está acontecendo. Então, eu vou ligar para um jardineiro e perguntar se ele tem ideia do que seja, se ele precisa vir dar uma olhada ou se pode me orientar por telefone, etc...
Naturalmente, a única coisa que eu espero desse jardineiro para quem vou ligar é que ele me diga se eu posso fazer algo para melhorar o aspecto da planta e também se posso fazer algo para que as folhas não fiquem mais assim futuramente. Eu não quero ouvir nenhuma lição de moral sobre o que eu deveria ter feito para que minhas pobres roseiras não chegassem a esse ponto e nem admitiria algum tom imperativo por parte do jardineiro a respeito do tratamento que devo dedicar às minhas roseiras doravante. Ele me diz as relações de causa e efeito que eu, como leiga em jardinagem, desconheço, e pronto, acabou. É simples assim.
Agora, vai enfiar na cabeça de um médico que ele está para esse jardineiro do mesmo jeito que o paciente está para o dono do jardim! O médico, via de regra, gosta de transformar a relação médico/paciente em uma relação de submissão que está mais para uma relação de pai para filho, com a única diferença de que eles querem ser bem pagos pelos pitos que dão, é claro. Fazem lá um juramento por conta própria e acham que isso confere a eles algum tipo de estatuto moral superior em nossa sociedade. Com o tempo, conquistaram um posto que já pertenceu aos padres!
Reparem bem, hoje em dia, o sujeito não te diz mais: "não posso fazer isso, porque seria pecado". Quando foi a última vez que você ouviu uma sentença desse tipo? Eu devo ter ouvido algo assim da minha bisavó. O que o sujeito diz, hoje em dia, é: "meu médico me proibiu". Claro, também é muito popular a variação: "meu médico mandou...".
Interessantemente, não é só quando você está pagando pela consulta técnica que o sujeito se esquece de quem é o dono do corpo em questão. Muitas vezes, eles dão palpite também quando não são chamados. Garanto que, operar de graça, por exemplo, eles não vão. Agora, quando se trata de distribuir conselhos em tom de mandamento moral... Temos um campeão! Deve haver alguma cadeira só para isso nos cursos de medicina. E, quando não são eles, os próprios neopadres, então são os pacientes carolas que fazem as vezes de interferir na vida alheia espalhando a palavra que ouviram deles. Lembre-se, afinal, que fazem tudo pelo seu bem, para salvarem a sua al... oops... o seu corpo.
Mas o pior mesmo é que, dado o espaço social que esses neopadres conquistaram, agora, eles querem também legislar. "Se beber, não dirija" virou um mandamento acima de todos aqueles 10 que tínhamos que obedecer antigamente. Um dogma inquestionável! Como se uma substância no seu sangue fosse da conta de alguém; como se fosse essa substância, e não um comportamento externo, a causa direta de um acidente qualquer, etc, etc... Quem pode, afinal, discutir com um médico? Se depender dele, dirigir com uma certa substância no sangue será um crime muito mais pesado do que efetivamente matar alguém no trânsito.
Nem a outrora Terra da Liberdade escapou do fascismo médico de nossa época. Em alguns lugares da Califórnia, o sujeito está proibido de fumar dentro da própria casa. Lá na outra costa, enquanto isso, o prefeito de Nova York está de olho no tamanho dos refrigerantes. Daqui a pouco, lá e cá, o nanny-state vai nos fazer comprar açúcar em papelotes, de traficantes!
Enfim, ontem, o papel de tutor era do padre, hoje, pertence primordialmente ao médico, amanhã, ainda outro assumirá a função, e o mesmo fato permanecerá: chega o dia do sistema solar colapsar, mas não chega o dia da tal da humanidade deixar a menoridade.
...
"Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento [Aufklärung].
A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos homens, depois que a natureza de há muito os libertou de uma direção estranha (naturaliter maiorennes), continuem, no entanto de bom grado menores durante toda a vida. São também as causas que explicam por que é tão fácil que os outros se constituam em tutores deles. É tão cômodo ser menor. Se tenho um livro que faz as vezes de meu entendimento, um diretor espiritual que por mim tem consciência, um médico que por mim decide a respeito de minha dieta, etc., então não preciso esforçar- me eu mesmo. Não tenho necessidade de pensar, quando posso simplesmente pagar; outros se encarregarão em meu lugar dos negócios desagradáveis. A imensa maioria da humanidade (inclusive todo o belo sexo) considera a passagem à maioridade difícil e além do mais perigosa, porque aqueles tutores de bom grado tomaram a seu cargo a supervisão dela. Depois de terem primeiramente embrutecido seu gado doméstico e preservado cuidadosamente estas tranqüilas criaturas a fim de não ousarem dar um passo fora do carrinho para aprender a andar, no qual as encerraram, mostram-lhes, em seguida, o perigo que as ameaça se tentarem andar sozinhas. Ora, este perigo na verdade não é tão grande, pois aprenderiam muito bem a andar finalmente, depois de algumas quedas. Basta um exemplo deste tipo para tornar tímido o indivíduo e atemorizá-lo em geral para não fazer outras tentativas no futuro.
É difícil, portanto, para um homem em particular desvencilhar-se da menoridade que para ele se tornou quase uma natureza. Chegou mesmo a criar amor a ela, sendo por ora realmente incapaz de utilizar seu próprio entendimento, porque nunca o deixaram fazer a tentativa de assim proceder. Preceitos e fórmulas, estes instrumentos mecânicos do uso racional, ou, antes, do abuso de seus dons naturais, são os grilhões de uma perpétua menoridade. Quem deles se livrasse só seria capaz de dar um salto inseguro mesmo sobre o mais estreito fosso, porque não está habituado a este movimento livre. Por isso são muito poucos aqueles que conseguiram, pela transformação do próprio espírito, emergir da menoridade e empreender então uma marcha segura."
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