No dia 20 de outubro, o jornal democrata The New York Times publicou uma coluna de opinião em que Amia Srinivasan, basicamente, retrata Nozick como o ideólogo por trás das tentativas mais canalhas de justificativa do status quo. Eu ia parando de ler o artigo no ponto em que a autora chega ao cúmulo de associar o libertarianismo de Nozick a uma "crescente proteção a corporações". Fui mais um pouquinho adiante para ter a infelicidade de ver Nozick sendo culpado até pela "corrente crise econômica". Daí parei.
Resolvi voltar a ler, porque lembrei que os amigos que me mostraram o artigo haviam mencionado algumas questões. Fiquei curiosa para ver quais eram. Pois bem, já que li as questões, vou me dar também ao trabalho de respondê-las.
1. Na ausência de compulsão física direta de uma parte contra outra (ou ameaça disso), qualquer troca entre duas pessoas é necessariamente livre?
Em sua própria resposta, a autora denuncia um equívoco por parte de quem responde positivamente à pergunta, porque essa pessoa estaria negligenciando um tipo de coerção que não é exercido por um agente sobre outro agente, mas sim por parte de circunstâncias, como o fato de um agente ter filhos que passam fome. Bom, Deus dai-me paciência com quem não lê Kant e vamos lá!
É claro que, primeiramente, temos que esclarecer o que entendemos por liberdade aqui. Do ponto de vista interno, podemos nos perguntar se quem passa fome ou, mais ainda, sente a dor de ver seus filhos passando fome, ainda é livre para tomar decisões, ou tem seu arbítrio necessariamente determinado por tais inclinações. Não sou especialista no assunto, mas imagino que a fome, em grau extremo, pode muito bem transtornar as faculdades do sujeito a ponto dele não ter mais condições de ser considerado um agente livre e racional. Agora, se o agente ainda é capaz de deliberação, supondo a validade de uma tese metafísica de acordo com a qual seres humanos teríamos um livre-arbítrio, então o fato do agente ter apenas duas opções diante de si (no exemplo da autora, se prostituir ou deixar os filhos passando fome) não o tornaria menos livre.
A liberdade, como bem lembrou o Aguinaldo em uma de nossas reuniões, não é ampliada ou diminuída conforme o número de opções disponíveis para a escolha. Você não é mais livre para escolher em um restaurante com um cardápio mais variado do que o de outro (para roubar também o exemplo do Aguinaldo). Então, OK, reconheçamos que a situação de um agente que precisa escolher entre X e a morte é uma situação indesejável e desfavorável, mas não digamos que, só por isso, isto é, pela escassez de alternativas, o agente não seria livre para escolher entre elas. Não estupremos os conceitos para conseguirmos chegar às conclusões que desejamos!
Agora, em prol do argumento, suponhamos que o agente pressionado por circunstâncias não seja livre. A questão então seria: o que um agente A teria a ver com a escassez de opções que, independentemente dele, se colocam diante do arbítrio de um agente B? É fácil ver por que Kant disse que o nosso único direito inato é um direito à independência da coerção do arbítrio de outro (não da coerção de circunstâncias), desde que a nossa liberdade não seja ela mesma usada de maneira coercitiva primeiramente. Nesse caso determinado por Kant, eu tenho como exigir daquele que me aprisiona que ele me liberte, quer dizer, o meu direito, se existe mesmo, é obviamente correspondido por uma obrigação por parte de outro.
Mas notem que a autora do artigo admite francamente que, em seu exemplo, são circunstâncias que exercem coerção sobre o agente. Pois bem, cabe a ela o ônus de provar que o agente A tem a obrigação de livrar o agente B de circunstâncias adversas e, acima de tudo, deve ser punido se ele não cumprir com essa obrigação. Em outras palavras, a autora precisa demonstrar a legitimidade de uma obrigação e, mais ainda, a legitimidade de um direito ao exercício da coerção para que a obrigação seja cumprida, pois também é possível que haja obrigações meramente éticas, no sentido em que não podemos ser externamente forçados a cumpri-las. Neste debate sobre políticas de Estado, afinal, trata-se sempre de saber com que direito a coerção pode ser exercida por um agente sobre outro. Não está em questão, portanto, meramente determinarmos se não seria virtuoso ajudarmos o agente B a ampliar seu leque de escolhas, mas sim se há uma obrigação tal que A possa ser punido por não fazer isso por B.
Assim, o que a autora defende é que, estando o agente B sob a coação de "circunstâncias", o agente A, que não exerceu nenhuma coerção, deve ser, ele sim, coagido por outro agente, no caso o Estado, a libertar o agente B. Eu, realmente, não vejo como essa tese faria sentido sem toda uma teoria de acordo com a qual se provasse que B, de fato, encontra-se em tais circunstâncias por responsabilidade de A.
2. Qualquer troca livre (não compelida fisicamente) é moralmente permissível?
Li e reli a resposta que a autora considera libertária. Confesso que não entendo o que ela vê de tão chocante nela. No exemplo da autora, o dono de um latifúndio paga pouco para quem cultiva uma parte de suas terras, que, mais tarde, ele vende por muito. Honestamente, exceto pela aceitação da teoria da mais-valia, que, junto com a teoria do valor trabalho, eu recuso, eu não posso ver qual o escândalo aqui. Novamente, ressalto que está em jogo a justiça (obrigações cujo cumprimento pode ser objeto de coerção externa), e não a virtude. Talvez, o latifundiário não seja virtuoso. Mas, certamente, não acho que ele tenha sido injusto, a menos que se prove que seus pais, de quem ele herdou a terra, tenham adquirido essas terras por violência ou fraude.
3. As pessoas merecem tudo que elas podem conseguir, e somente o que elas podem conseguir, através de livre troca?
Bom, isso eu já respondi aqui. Meritocracia não tem nada a ver com meu libertarianismo (e nem com o de Nozick).
4. As pessoas não têm a obrigação de fazer nada que elas não queiram fazer livremente ou tenham se comprometido livremente a fazer?
Esta é a mais divertida. De fato, de acordo com o libertarianismo, sem um contrato prévio livremente estabelecido, eu não tenho obrigações positivas, mas apenas negativas. Quer dizer, eu tenho obrigações gerais apenas de deixar de fazer algo, mas não de fazer algo. No caso, eu tenho, para com todos, independentemente de contrato, as obrigações de não cometer fraude e violência.
Então, vejamos o exemplo da autora, que ilustraria o absurdo da posição libertária. A caminho da biblioteca, eu veria um homem se afogando. Então, eu calcularia que o prazer de salvá-lo não compensaria o transtorno de me molhar e me atrasar. Assim, como eu não assinei nenhum contrato me obrigando a resgatar esse homem, eu o deixo se afogando e sigo meu rumo.
Creio que, agora, mais do que nunca, vale a distinção que eu venho fazendo entre obrigações simpliciter e obrigações cujo cumprimento pode ser objeto de coerção (portanto, de punição em caso de falta com a obrigação). A autora quer mostrar com o exemplo que Nozick precisa estar errado, porque qualquer um discordaria da conduta desse homem que deixou o outro se afogando. Da perspectiva do senso comum, diz ela, a moral de Nozick é absurda. Pois eu digo que ela falha mais uma vez em fazer as devidas distinções.
Eu não sei quem é o porta-voz do tal "senso comum" que a autora evoca com tamanha autoridade. Eu diria, mais modestamente, apenas que muitos concordariam que o homem não fez a coisa certa, supondo que ele fosse um excelente nadador e um homem muito forte. Afinal, a autora despreza até o fato de que muitos poderiam morrer fazendo o que ela parece ver como um gesto tão simples. Por caridade, vou até arrumar o exemplo dela e dizer que a pessoa seguiu seu rumo sem chamar socorro para quem estava se afogando. Muito bem. Eu diria que a pessoa que não faz o mínimo de esforço para socorrer quem está agonizando diante dela não é virtuosa. Mas isso é diferente de dizer que ele deve ser punido por omissão de socorro em um acidente que ele não causou.
Na verdade, assumir que as pessoas podem ser coagidas a prestar socorro, quando esse socorro não representa um custo alto demais, parece ter, sim, implicações que não parecem agradar tanto ao paladar do nosso querido "senso comum". Naturalmente, a autora do artigo não deve estar prioritariamente preocupada com leis que punam a omissão de socorro em acidentes. O meu exemplo, penso eu, é que vai ilustrar melhor o ponto dela e, talvez, colocar de forma mais honesta, diante do tribunal do "senso comum", o que ela quer verdadeiramente defender.
Hoje é sábado. Possivelmente, você está se arrumando para sair com os amigos. Você não é o rei do camarote, mas vai gastar algum dinheiro em cerveja. Um dos seus amigos, porém, toma à força metade do dinheiro que você tinha guardado para a cerveja. Você se exalta diante da explicação de que não vai te fazer mal nenhum tomar metade da cerveja que você tinha planejado tomar. Mas, então, ele explica que agiu por uma boa causa. Ele gastou o valor (que ele dobrou com recursos próprios) em uma doação para um projeto que salva a vida de crianças africanas, investindo em coisas tão básicas como água potável. E o que são umas cervejas a mais diante de quem não tem água potável?
Eu termino este post de respostas libertárias com uma questão libertária para o senhor "senso comum": seu amigo tinha esse direito?
Resolvi voltar a ler, porque lembrei que os amigos que me mostraram o artigo haviam mencionado algumas questões. Fiquei curiosa para ver quais eram. Pois bem, já que li as questões, vou me dar também ao trabalho de respondê-las.
1. Na ausência de compulsão física direta de uma parte contra outra (ou ameaça disso), qualquer troca entre duas pessoas é necessariamente livre?
Em sua própria resposta, a autora denuncia um equívoco por parte de quem responde positivamente à pergunta, porque essa pessoa estaria negligenciando um tipo de coerção que não é exercido por um agente sobre outro agente, mas sim por parte de circunstâncias, como o fato de um agente ter filhos que passam fome. Bom, Deus dai-me paciência com quem não lê Kant e vamos lá!
É claro que, primeiramente, temos que esclarecer o que entendemos por liberdade aqui. Do ponto de vista interno, podemos nos perguntar se quem passa fome ou, mais ainda, sente a dor de ver seus filhos passando fome, ainda é livre para tomar decisões, ou tem seu arbítrio necessariamente determinado por tais inclinações. Não sou especialista no assunto, mas imagino que a fome, em grau extremo, pode muito bem transtornar as faculdades do sujeito a ponto dele não ter mais condições de ser considerado um agente livre e racional. Agora, se o agente ainda é capaz de deliberação, supondo a validade de uma tese metafísica de acordo com a qual seres humanos teríamos um livre-arbítrio, então o fato do agente ter apenas duas opções diante de si (no exemplo da autora, se prostituir ou deixar os filhos passando fome) não o tornaria menos livre.
A liberdade, como bem lembrou o Aguinaldo em uma de nossas reuniões, não é ampliada ou diminuída conforme o número de opções disponíveis para a escolha. Você não é mais livre para escolher em um restaurante com um cardápio mais variado do que o de outro (para roubar também o exemplo do Aguinaldo). Então, OK, reconheçamos que a situação de um agente que precisa escolher entre X e a morte é uma situação indesejável e desfavorável, mas não digamos que, só por isso, isto é, pela escassez de alternativas, o agente não seria livre para escolher entre elas. Não estupremos os conceitos para conseguirmos chegar às conclusões que desejamos!
Agora, em prol do argumento, suponhamos que o agente pressionado por circunstâncias não seja livre. A questão então seria: o que um agente A teria a ver com a escassez de opções que, independentemente dele, se colocam diante do arbítrio de um agente B? É fácil ver por que Kant disse que o nosso único direito inato é um direito à independência da coerção do arbítrio de outro (não da coerção de circunstâncias), desde que a nossa liberdade não seja ela mesma usada de maneira coercitiva primeiramente. Nesse caso determinado por Kant, eu tenho como exigir daquele que me aprisiona que ele me liberte, quer dizer, o meu direito, se existe mesmo, é obviamente correspondido por uma obrigação por parte de outro.
Mas notem que a autora do artigo admite francamente que, em seu exemplo, são circunstâncias que exercem coerção sobre o agente. Pois bem, cabe a ela o ônus de provar que o agente A tem a obrigação de livrar o agente B de circunstâncias adversas e, acima de tudo, deve ser punido se ele não cumprir com essa obrigação. Em outras palavras, a autora precisa demonstrar a legitimidade de uma obrigação e, mais ainda, a legitimidade de um direito ao exercício da coerção para que a obrigação seja cumprida, pois também é possível que haja obrigações meramente éticas, no sentido em que não podemos ser externamente forçados a cumpri-las. Neste debate sobre políticas de Estado, afinal, trata-se sempre de saber com que direito a coerção pode ser exercida por um agente sobre outro. Não está em questão, portanto, meramente determinarmos se não seria virtuoso ajudarmos o agente B a ampliar seu leque de escolhas, mas sim se há uma obrigação tal que A possa ser punido por não fazer isso por B.
Assim, o que a autora defende é que, estando o agente B sob a coação de "circunstâncias", o agente A, que não exerceu nenhuma coerção, deve ser, ele sim, coagido por outro agente, no caso o Estado, a libertar o agente B. Eu, realmente, não vejo como essa tese faria sentido sem toda uma teoria de acordo com a qual se provasse que B, de fato, encontra-se em tais circunstâncias por responsabilidade de A.
2. Qualquer troca livre (não compelida fisicamente) é moralmente permissível?
Li e reli a resposta que a autora considera libertária. Confesso que não entendo o que ela vê de tão chocante nela. No exemplo da autora, o dono de um latifúndio paga pouco para quem cultiva uma parte de suas terras, que, mais tarde, ele vende por muito. Honestamente, exceto pela aceitação da teoria da mais-valia, que, junto com a teoria do valor trabalho, eu recuso, eu não posso ver qual o escândalo aqui. Novamente, ressalto que está em jogo a justiça (obrigações cujo cumprimento pode ser objeto de coerção externa), e não a virtude. Talvez, o latifundiário não seja virtuoso. Mas, certamente, não acho que ele tenha sido injusto, a menos que se prove que seus pais, de quem ele herdou a terra, tenham adquirido essas terras por violência ou fraude.
3. As pessoas merecem tudo que elas podem conseguir, e somente o que elas podem conseguir, através de livre troca?
Bom, isso eu já respondi aqui. Meritocracia não tem nada a ver com meu libertarianismo (e nem com o de Nozick).
4. As pessoas não têm a obrigação de fazer nada que elas não queiram fazer livremente ou tenham se comprometido livremente a fazer?
Esta é a mais divertida. De fato, de acordo com o libertarianismo, sem um contrato prévio livremente estabelecido, eu não tenho obrigações positivas, mas apenas negativas. Quer dizer, eu tenho obrigações gerais apenas de deixar de fazer algo, mas não de fazer algo. No caso, eu tenho, para com todos, independentemente de contrato, as obrigações de não cometer fraude e violência.
Então, vejamos o exemplo da autora, que ilustraria o absurdo da posição libertária. A caminho da biblioteca, eu veria um homem se afogando. Então, eu calcularia que o prazer de salvá-lo não compensaria o transtorno de me molhar e me atrasar. Assim, como eu não assinei nenhum contrato me obrigando a resgatar esse homem, eu o deixo se afogando e sigo meu rumo.
Creio que, agora, mais do que nunca, vale a distinção que eu venho fazendo entre obrigações simpliciter e obrigações cujo cumprimento pode ser objeto de coerção (portanto, de punição em caso de falta com a obrigação). A autora quer mostrar com o exemplo que Nozick precisa estar errado, porque qualquer um discordaria da conduta desse homem que deixou o outro se afogando. Da perspectiva do senso comum, diz ela, a moral de Nozick é absurda. Pois eu digo que ela falha mais uma vez em fazer as devidas distinções.
Eu não sei quem é o porta-voz do tal "senso comum" que a autora evoca com tamanha autoridade. Eu diria, mais modestamente, apenas que muitos concordariam que o homem não fez a coisa certa, supondo que ele fosse um excelente nadador e um homem muito forte. Afinal, a autora despreza até o fato de que muitos poderiam morrer fazendo o que ela parece ver como um gesto tão simples. Por caridade, vou até arrumar o exemplo dela e dizer que a pessoa seguiu seu rumo sem chamar socorro para quem estava se afogando. Muito bem. Eu diria que a pessoa que não faz o mínimo de esforço para socorrer quem está agonizando diante dela não é virtuosa. Mas isso é diferente de dizer que ele deve ser punido por omissão de socorro em um acidente que ele não causou.
Na verdade, assumir que as pessoas podem ser coagidas a prestar socorro, quando esse socorro não representa um custo alto demais, parece ter, sim, implicações que não parecem agradar tanto ao paladar do nosso querido "senso comum". Naturalmente, a autora do artigo não deve estar prioritariamente preocupada com leis que punam a omissão de socorro em acidentes. O meu exemplo, penso eu, é que vai ilustrar melhor o ponto dela e, talvez, colocar de forma mais honesta, diante do tribunal do "senso comum", o que ela quer verdadeiramente defender.
Hoje é sábado. Possivelmente, você está se arrumando para sair com os amigos. Você não é o rei do camarote, mas vai gastar algum dinheiro em cerveja. Um dos seus amigos, porém, toma à força metade do dinheiro que você tinha guardado para a cerveja. Você se exalta diante da explicação de que não vai te fazer mal nenhum tomar metade da cerveja que você tinha planejado tomar. Mas, então, ele explica que agiu por uma boa causa. Ele gastou o valor (que ele dobrou com recursos próprios) em uma doação para um projeto que salva a vida de crianças africanas, investindo em coisas tão básicas como água potável. E o que são umas cervejas a mais diante de quem não tem água potável?
Eu termino este post de respostas libertárias com uma questão libertária para o senhor "senso comum": seu amigo tinha esse direito?
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