Eu posso estar enganada, mas tenho a impressão que os objetivistas têm em Kant um adversário pelas razões erradas. Parece-me que eles se opõem a Kant em função do idealismo transcendental, doutrina segundo a qual não conhecemos o que a realidade seria independentemente de certas condições epistêmicas. Já os contemporâneos de Kant, para sua fúria, confundiam o seu idealismo formal com o idealismo material de Descartes e Berkeley, portanto, não é de se admirar que os objetivistas cometam o mesmo equívoco.
Eu não pretendo, porém, desfazer o equívoco, explicando as sutilezas do idealismo transcendental em um blog. Já tenho poucos leitores, ficaria sem nenhum. Como não é esse o ponto da divergência entre kantianos e objetivistas, já que, empiricamente, Kant é um realista, eu vou me deter no que vejo, sim, de subjetivismo em Kant. E, por sinal, vejo como a maior virtude de sua filosofia moral.
Para ser mais precisa, a filosofia kantiana compatibiliza subjetivismo e objetivismo: subjetivismo quanto à matéria do querer, objetivismo quanto à forma do querer. O que significa isso? Bom, para explicar, permitam que eu trace um paralelo entre Kant e Ayn Rand.
Parece-me claro que Kant concordaria com Rand que o conceito de "valor" depende do conceito de "fim" [goal, em inglês]. Essa tese, além do mais, deve mesmo ser aceita por todos nós pelas seguintes razões. Se partirmos apenas de relações de causa e efeito objetivamente descobertas na realidade, algo de suma importância tanto para Kant quanto para Rand, não temos ainda o bastante para derivamos os conceitos de "bom" e "mau". Ao dizermos que "x" causa "y", digamos, que uma aspirina causa o alívio da dor de cabeça, só podemos dizer que a aspirina é boa se o fim for o alívio da dor de cabeça, e não pela simples constatação da relação causal.
Muito bem, o próximo passo comum aos dois filósofos também me parece digno de nossa aceitação. Se nossos fins determinam nossos valores, a cadeia de meios e fins precisa parar em algum fim em si mesmo, para evitar uma progressão ao infinito, que tornaria impossível para o agente racional justificar suas escolhas a contento. É aqui que os dois filósofos tomam caminhos diferentes, o de Rand levando, ao que me parece à primeira vista, a um precipício filosófico.
Fazendo pouco caso da acusação de falácia naturalista - a derivação de uma conclusão normativa a partir de premissas meramente descritivas - Rand equipara o fim em si mesmo à sobrevivência do organismo do indivíduo:
O fato que entidades viventes existem e funcionam necessita a existência de valores e de um valor último que, para qualquer entidade vivente dada, é a sua própria vida. Assim, a validação de juízos de valor deve ser obtida por referência aos fatos da realidade. O fato que uma entidade vivente é determina o que ela deve fazer. Basta para a questão [so much for the issue] da relação entre o "ser" e o "dever ser".
Ora, mas é claro que não basta! Rand tem a pretensão de nos ensinar o que é ética - para ela, a ciência desses valores derivados do valor último de nossa vida - como se estivéssemos errando há milênios em nossos juízos de valor, o que significa que não é nem um pouco óbvio que a preservação da vida oriente nosso sistema de valores. O simples fato de, segundo Rand, termos a possibilidade de nos auto-destruir já significa que não é óbvio que nosso fim deva ser a auto-preservação. Ela não pode simplesmente derivar um fim último para minha vontade de uma tendência fisiológica de meu organismo. É nisso que consiste a falácia que ela não tem o direito de desprezar ao mesmo tempo em que se pretende uma grande advogada da razão nos conflitos filosóficos.
Só para ilustrar o meu caso, pense em quem oferece a vida em sacrifício para não ter que presenciar o sofrimento de um ente querido, ou em quem opta por uma vida breve de prazeres intensos a uma vida longa de prazeres mornos. Dizer que um e outro não vivem a vida apropriadamente não justifica o princípio do objetivismo, mas apenas o pressupõe.
Bom, basta, por enquanto, sobre a solução de Rand. Conforme minhas leituras progridam, talvez, eu retome o ponto. Falemos agora da solução de Kant para o problema do fim último de nossa cadeia de objetivos.
Em primeiro lugar, materialmente falando, nosso fim, para Kant, é a felicidade, não a vida. Nisso, consiste o subjetivismo de Kant, já que a felicidade não permite determinação objetiva. Ela seria apenas um sistema das inclinações de cada indivíduo. Por isso mesmo, da felicidade, Kant deriva apenas regras de prudência, variáveis conforme o indivíduo e o contexto, e não um código de ética. Ademais, da busca da felicidade universalmente constatada não decorre um código de ética, exatamente para evitar a falácia naturalista.
Agora, a felicidade, como todo kantiano sabe, não forma o todo do fim último para Kant. A felicidade, segundo Kant, deve ser buscada sob a condição da conquista do mérito para ser feliz, isto é, da virtude moral. Mas no que consiste a virtude? Aqui, estamos diante do objetivismo formal de Kant.
Uso aqui o termo "formal" para expressar uma condição limitadora, um princípio do qual não se pode derivar metas concretas, mas apenas discriminar entre as metas aceitáveis e as inaceitáveis. Somos virtuosos, em suma, quando abrimos mão de determinados cursos de ação que nos trariam a felicidade pessoal, só porque eles não se mostram adequados à exigência formal de que sejam universalizáveis, ou seja, válidos para todos os agentes racionais. A virtude consiste então na disposição de subordinar a felicidade pessoal às exigências formais de universalização da racionalidade. E, note bem, estamos evitando a falácia naturalista, justamente porque estamos falando de exigências normativas intrínsecas à racionalidade, e não derivadas da natureza. A exigência de universalização, no caso, é intrínseca à razão, porque, ao justificarmos qualquer uma de nossas condutas, queremos dizer que qualquer outro, em nosso lugar, poderia ter feito o mesmo. Em outras palavras, é próprio da racionalidade pretender ir além das idiossincrasias de cada um.
É assim que Kant evita o objetivismo de Rand, que nos diz o que devemos querer como fim último e deriva todos os meios desse fim, mas evita também o irracionalismo, já que não podemos praticar toda e qualquer ação que nos prometa uma vida mais feliz. Podemos adotar toda norma de conduta que nos traga a felicidade, mas com a condição de que essa norma também possa ser válida para os outros agentes racionais. Uma vida desonesta, por exemplo, seria eliminada pelo princípio, porque a desonestidade, para ser eficiente enquanto meio de obtenção da felicidade, depende de que os outros pensem que eu sou honesta, ou seja, a eficiência da desonestidade depende de que a regra geral seja a honestidade, e não a própria desonestidade. Assim, eu seria irracional ao ser desonesta, na medida em que eu agiria sob um princípio que só pode ser subjetivamente válido.
Agora, o fato de eu ter que abandonar regras de conduta que só podem ser praticadas como exceção, não significa que eu tenha que adotar todas as regras de conduta que passem pelo crivo da universalização. O oposto das regras que só valem como exceção é obrigatório (ser honesto, por exemplo). Mas existe uma ampla gama de regras que são tão universalizáveis quanto seus opostos. Como escolher entre elas? Simplesmente, opte pela regra que o torna mais feliz! É aqui que Kant garante o espaço para a subjetividade, na medida em que abre mão de um conceito objetivo de felicidade. É aqui, em suma, que, ao contrário de Rand, Kant harmoniza subjetividade e racionalidade.
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