domingo, 29 de dezembro de 2013

Anarco-capitalismo posto em prática



Escrevo este post farta com o mesmo tipo de objeção que motivou um famoso opúsculo de Kant: aquelas baseadas no dito popular segundo o qual algo pode funcionar em teoria, mas não na prática. Ocorre que, via de regra, se alguém se diz anarquista, parece estar mais suscetível do que qualquer outro a essa linha de crítica. Isso acontece, em grande parte, dada a ignorância generalizada sobre as tantas variações possíveis de anarquismo. Mais especificamente, costumam assimilar todo e qualquer anarquismo àquele defendido por Godwin, baseado na promessa de um aperfeiçoamento da natureza humana. Em poucas palavras, pensam o anarquismo como a ausência de leis e a negação de qualquer instituição hierárquica, de tal forma que apenas a virtude moral poderia sustentar uma sociedade anarquista. Certamente, não é nada disso que está em jogo para o anarco-capitalista. 

O anarco-capitalismo, diferentemente das vertentes coletivistas do anarquismo, não considera que estruturas hierárquicas baseadas na propriedade privada sejam estruturas coercivas, ou "de dominação", como os coletivistas gostam de dizer. Para o anarco-capitalismo, se outro não usou a violência ou a ameaça de violência para obter seu consentimento para sua adesão a uma determinada forma de cooperação, isso basta para que essa forma de cooperação seja vista como voluntária e, portanto, como legítima. Assim, é perfeitamente possível no anarco-capitalismo que uma empresa cresça exponencialmente, com executivos assumindo o comando de empregados em posição hierárquica inferior. Inclusive, isso é o bastante para que anarquistas coletivistas denunciem o anarco-capitalismo como uma forma inautêntica de anarquismo (talvez, porque eles acreditem ter a propriedade privada do termo "anarquismo").

A observação acima, aliás, me faz lembrar de uma situação que me foi relatada certa vez. Em uma universidade pública, um professor que se dizia anarquista lecionava para um aluno que se dizia adepto da mesma posição política. Assim, no dia em que o professor devolveu ao aluno um trabalho devidamente avaliado, o último fez questão de rasgá-lo acintosamente, perante todos os demais colegas da classe. Com o gesto, o aluno quis dizer que anarquistas não poderiam aceitar qualquer forma de autoridade. 

Ora, nada seria mais incorreto do ponto de vista do anarco-capitalismo. Tanto aluno quanto professor assinaram um contrato com a universidade por livre e espontânea vontade. Por meio desse contrato, ambos aceitaram as regras da instituição. Por isso, seria perfeitamente legítimo que qualquer uma das partes sofresse sanções por não cumprir o contrato assinado. Em suma, ao rasgar o trabalho, o aluno rasgou o contrato que ele próprio assinou.

No anarco-capitalismo, assume-se que, eventualmente, as pessoas, de fato, rasgarão contratos. Além disso, pessoas também podem tiranizar outras pessoas, ou seja, colocá-las sob um poder com o qual elas não consentiram em contrato algum. Nesses casos, o anarco-capitalismo assume que há um uso legítimo a ser feito da força. Dessa maneira, nota-se que o anarco-capitalismo não é: 1) uma teoria baseada em um otimismo excessivo quanto à natureza humana, 2) uma teoria baseada na ausência de órgãos de execução do direito. O anarco-capitalismo é, sim, uma teoria que nega que o direito à execução do próprio direito possa ser monopolizado por uma pessoa ou por um grupo de pessoas. Assim, há leis, há tribunais, mas não há Estado em sentido weberiano, porque a própria execução da justiça é vista como um serviço prestado em uma concorrência efetiva ou sempre, ao menos, possível.

Feitos esses esclarecimentos iniciais, passemos, finalmente, à nossa questão: como o anarco-capitalismo poderia ser posto em prática? Ao contrário de alguns, eu não penso que o Estado poderia ou deveria ser pura e simplesmente dissolvido, com todo seu patrimônio sendo revertido à condição de coisa a ser apropriada. Parece-me mais sensato que a elite governante simplesmente enviasse uma carta de alforria a cada cidadão. 

Nessa carta, o não mais Estado nos informaria que não cobraria mais impostos, daí a alforria, pois ninguém mais o serviria de forma compulsória. Na mesma carta, porém, a nova instituição nascida do Estado informaria estar vendendo seus serviços. Ela poderia fazer isso em um pacote único, incluindo, saúde, educação, segurança, etc... Ou poderia vender pacotes diferentes por preços diferentes. O importante é que ela daria a oportunidade das pessoas escolherem se quereriam ou não continuar como seus membros. A carta ainda deveria deixar claro que, em caso da opção pela ruptura completa com a instituição, o ex-membro não mais gozaria de quaisquer serviços estatais, incluindo a proteção à sua vida. Porém, aqui temos um ponto delicado: O ex-membro ajudou a financiar a estrutura da qual ele não mais usufruirá. 

Em nossa cultura, todos nos revoltamos ao pensarmos nos escravos negros libertos com uma mão na frente e outra atrás. É uma clara injustiça que um ex-escravo não receba uma compensação para dar início à sua nova vida, dada a riqueza que ele ajudou a gerar e deixará para trás. Agora, é o momento em que você diz: muito bem, o Estado não tem como compensar a todos os membros que queiram partir, e nem teria como averiguar o valor exato de cada compensação. Bom, infelizmente para você, também é o momento em que eu respondo que seu argumento valeria igualmente contra a libertação histórica dos escravos negros. 

O argumento moral sempre se sobrepõe a qualquer consideração consequencialista e o caso da libertação dos escravos negros é prova de que todos concordamos com isso. Você pode até ser um liberal que argumentará que a libertação dos negros, de fato, trouxe benefícios econômicos, e só por isso ocorreu. Porém, dificilmente, você argumentaria que os negros não deveriam ter sido libertados caso isso não fosse o caso. Portanto, Mises é irrelevante para o debate acerca da justiça. Por sinal, não devemos misturar economia com justiça, como muitos de vocês, liberais e marxistas, estão tão acostumados a fazer. 

Mas, voltando ao ponto do pagamento das compensações, e assumindo que a impossibilidade de pagá-las jamais poderia ser um motivo para defendermos a manutenção da escravidão, na verdade, há uma forma razoável do ex-Estado proceder. Ele poderia estabelecer um período de tempo dentro do qual aqueles que decidissem se dissociar ainda poderiam gozar de algum benefício, mesmo sem contribuir. Talvez, aquele que resolvesse partir devesse receber o direito de escolher o serviço do qual gostaria de gozar gratuitamente dentro daquele período.

Que fique claro que tenho em vista, não uma indenização pelos anos de privação da liberdade (que também poderia vir a ser o caso), mas uma mera compensação pela riqueza que ficará em poder da associação quando o membro partir. Assim, o ex-Estado teria que ser competente o bastante para financiar a oferta temporária do serviço gratuito com a venda dos demais serviços. 

Agora, você pode pensar que os que decidem ficar estarão sendo escravizados para a oferta desse serviço "gratuito". Todavia, não é o caso, primeiramente, porque caberá a eles decidir se ficam ou partem, e, em segundo lugar, porque, se decidirem ficar, saberão que herdarão um patrimônio que não construíram sozinhos, daí a compensação aos dissidentes.

Agora, suponha que seu temor se realize e que o ex-Estado comece a ter que se desfazer desse patrimônio para as contas fecharem. Suponha ainda que os serviços, cada vez mais precários, levem a uma perda cada vez maior de clientes, portanto, a necessidades crescentes de pagamento de compensações. Ora, isso não é problema algum para o anarco-capitalista, porque é aqui que entra a concorrência. 

O ex-Estado, marcado pela necessidade de pagar por seu passado, pode ou não ter competência suficiente para se valer da condição de partida, por outro lado, privilegiada de primeira associação do mercado. É certo, afinal, que muitos - por exemplo, todos aqueles que tremem ao ouvirem a expressão "anarco-capitalismo" - escolherão ficar! Isso será o bastante para manter a associação? Só o mercado responderá, ou seja, só a satisfação dos clientes. 

Mas que horrível essa ideia de um "Estado" ter que satisfazer clientes, não? Enfim...

Agora, quero tratar de outro ponto. Por que diabos algum Estado escreveria aquela carta que o forçaria, afinal, a ter que satisfazer aqueles a quem ele pode muito bem continuar simplesmente extorquindo? Calma, anarco-capitalistas não sairão por aí quebrando bancos, com camisetas enroladas na cabeça, para mudar o mundo. Se o anarco-capitalismo fosse difundido enquanto ideologia a ponto de se tornar o pensamento hegemônico em uma sociedade - uma ideia tão óbvia quanto a ideia de que os escravos negros precisavam ser libertados no matter what - o Estado é que teria que se manter exclusivamente pela força bruta, o que não é possível. 

As pessoas subestimam a dependência estatal da adesão voluntária. Por exemplo, vocês acham que a Coréia do Norte ainda estaria de pé se a maior parte do seu povo resolvesse marchar para a fronteira com a Coréia do Sul? Um muro foi capaz de deter os alemães? Uma sociedade que gosta de se dizer livre não pode ser uma sociedade de pessoas que, de forma hegemônica, se consideram vítimas de seus governantes. Por isso, os argumentos dos anarco-capitalistas, se difundidos, podem fazer muito mais estragos do que as marretas dos black blocs. 

É preciso deixar claro, porém, que uma coisa não levaria à outra. Alguém convencido de argumentos anarco-capitalistas jamais sairia cometendo agressões. A atitude revolucionária do anarco-capitalista, como é bem sabido, é a resistência pacífica. Por exemplo, o governo o proíbe de vender cachorro-quente em um carrinho. Você desobedece. O agente do governo vem confiscar seu carrinho. Você luta se ele o agredir, corre se puder, etc... Em uma sociedade convencida de que hierarquias devem brotar apenas do consentimento, os outros vão ajudá-lo a esconder seu carrinho ao menos sempre que isso não implicar em sofrer uma sanção. A troco de que, no final, o governo insistiria em perseguir seu carrinho? No final, enviar a carta não seria a saída até mais inteligente, do ponto de vista da sobrevivência da instituição?

Mas, Andrea, quem disse que as pessoas se convencem por argumentos? Elas apenas, por exemplo, aprenderam a acreditar que escravidão é errado, do mesmo jeito que poderiam ter se acostumado a acreditar que escravidão é certo. E o governo? Quem diz que faz o que é mais racional do ponto de vista de seus próprios interesses? Nossa presidente mal consegue articular duas sentenças! 

Agora, sim, eu aceito seu argumento. De fato, apenas uma pequenina parcela da humanidade consegue refletir sobre seus próprios princípios e fazer o mínimo de esforço para viver de forma coerente com eles. É muito provável então, você dirá, que, por isso, o anarco-capitalismo sempre triunfe nos discursos teóricos, sem jamais alcançar a prática. 

Contudo, aqui, ainda parece estar escapando um ponto àqueles que gostam de denunciar utopias. A validade de um princípio moral, Kant me ensinou, não requer que o mundo, de fato, esteja de acordo com ele. Mas, sim, que você possa agir de acordo com ele. Pois bem, meu amigo, você pode muito bem agir tomando a obediência a leis positivas por si só como um conselho prudencial, em vez de um imperativo categórico. É esse todo o ponto do anarco-capitalismo! Em outras palavras, você pode colocá-lo em prática, sem esperar que a Dilma faça isso por você. 

Por sinal, existe um imperativo em Kant que é compreendido por poucos. Diz, mais ou menos, assim: "aja como se a humanidade progredisse sempre para o melhor". Claro que o melhor, para Kant, infelizmente, não era o anarco-capitalismo, mas sim um ideal de República. Mas eu posso me apropriar exatamente do que ele tinha em mente com aquele imperativo: É seu dever viver já de acordo com seu ideal, como se a humanidade estivesse progredindo para aquele ideal. Em poucas palavras, seja o escravo que ousou saber e ainda fazer uso público de sua razão.

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