Calma, antes de mais nada, calma. Quando eu digo que Deus morreu, refiro-me apenas ao fato de que os filósofos profissionais, via de regra, não se ocupam mais da demonstração de sua existência. Foi-se o tempo em que os grandes nomes da filosofia se debruçavam sobre estratégias lógicas das mais diversas para provar a existência de um ser absoluto diferente do mundo e seu criador. Talvez, ainda haja quem faça isso. Todavia, por mais que a filosofia seja marcada pela ausência do consenso, a imensa maioria dos filósofos acadêmicos entende que a questão da existência de Deus deva pertencer ao domínio do insolúvel.
Eu confesso que, quando comparo essa situação atual com os debates filosóficos da Idade Média e início da Idade Moderna, fico pensando se não chegará também o dia em que o Estado morrerá, ou seja, o dia em que os filósofos profissionais entenderão que não é possível justificar racionalmente a autoridade política, entendida como um direito especial que uma pessoa ou um grupo teria para exigir a obediência de todos os demais. Inclusive, como todos bem sabemos, as duas questões - Deus e autoridade política - já apareceram conectadas na história da filosofia.
Claro que a simples existência de Deus não seria suficiente para resolver o problema desse direito especial que caracteriza a autoridade política. Explico. Ainda que Deus exista, isso não significa que ele tenha assinalado alguém para governar aos demais. Ele poderia ter criado a todos rigorosamente iguais, como queria Locke contra Filmer. Na verdade, ainda que Deus exista e que tenha assinalado alguém para nos governar, como queria Filmer, isso ainda não significa que sejamos capazes de identificar o seu escolhido. Por isso, afirmo que, mesmo que fosse possível resolvermos o problema da existência de Deus, nem por isso, já estaria resolvido o problema da autoridade política.
Porém, a existência de Deus, se pudesse ser provada, ao menos poderia doar algum sentido à ideia de um escolhido, isto é, à ideia de um portador de direitos especiais. A autoridade política seria, ao fim e ao cabo, a autoridade do representante de Deus na Terra. Por isso, uma vez que não se podia mais aceitar que o poder absoluto dos reis era diretamente derivado do poder do ser absoluto que nos criou a todos, surgiu, para a filosofia, o problema da justificativa racional do dever de obediência ao Estado. Se não se trata de uma extensão do dever de obediência a Deus, por que diabos teríamos que obedecer a um homem exatamente igual a qualquer um de nós?
Foi aqui, para não deixar o Estado morrer com Deus, que a filosofia inventou um outro ente tão metafísico quanto: o povo. Desde a morte de Deus, não se governa mais em Seu nome, mas em nome do... povo. Na verdade, a autoridade política nem sequer se apresenta mais como um direito especial que alguém teria de governar aos demais, mas sim como o povo governando a si mesmo. Eis o mito da democracia substituindo o mito de todas as religiões.
Mas qual o referente do conceito "povo"? Só poderia ser a soma completa dos indivíduos efetivamente existentes em um dado território em um dado tempo. Mas então uma decisão só seria uma decisão do "povo" se fosse uma decisão empiricamente unânime, coisa que jamais se viu em qualquer democracia. Se um único indivíduo se mostra contrário a uma decisão, já não se trata mais de uma decisão do "povo", mas sim de uma decisão da maioria. É aqui que a filosofia não pode se furtar à tarefa de justificar o direito da maioria de submeter a minoria à sua autoridade. Sem essa justificativa, a democracia é apenas o governo da força, como qualquer tirania.
Agora, por que a união de indivíduos em uma maioria conferiria a essa maioria direitos especiais, portanto, direitos que eles não possuiriam como indivíduos separados? Certamente, a união faz a força, mas por que faria o direito? Você aceitaria que um indivíduo, considerado isoladamente, não tem o direito de lhe obrigar a deixar de ingerir uma substância tóxica nociva à sua própria saúde. Agora, se todos os outros indivíduos da sua comunidade, exceto por você, concordarem que você não deve ingerir essa substância, então eles passam a ter o direito de lhe obrigar a não ingeri-lá. Por quê? Não seria mais razoável aceitar que eles passariam apenas a ter força para lhe obrigar?
Talvez, você acredite que o direito da maioria emana do fato deles terem lhe concedido o direito a também dar seu voto. Veja só, seus vizinhos se reúnem para decidir se você pode continuar ingerindo sódio e vendo pornografia no computador, mas eles são democráticos, então eles deixam você votar também. Isso significa que a autoridade política não está mais personalizada em João ou José. Ela é pura e simplesmente concentrada na maioria numérica, seja lá quem for que a componha.
Neste ponto, eu recoloco a pergunta. A menos que você tenha dado seu consentimento ao princípio da maioria, como eu fiz pontualmente, por exemplo, ao aceitar ser membro de um departamento em uma universidade, por que uma maioria teria direitos especiais sobre você? Quem escolheu o princípio da maioria como um princípio de legitimidade? Circularmente, a maioria? Você só evita o círculo se puder explicar por que o mero fato da maioria tornaria legítima a mesma imposição que seria ilegítima caso partisse de uma minoria. Dizer que eu poderia ter sido parte da maioria, se eu tivesse votado (como me foi permitido) e se um número suficiente dos outros tivesse votado comigo, não resolve o problema. Se eu não concordei em jogar o jogo, então não basta dizer que as regras, em tese, permitiriam a minha vitória, para que você tenha o direito de me forçar a aceitar a sua vitória.
Então é isso. Até que me provem a legitimidade do princípio da maioria (sem circularidade), eu seguirei acreditando que o filósofo libertário está para a filosofia política contemporânea assim como o "insensato" estava para a filosofia medieval cristã. Talvez, um dia, vocês que aceitaram que Deus é apenas uma questão de fé, ou seja, de uma decisão subjetiva de acreditar, também aceitem que o Estado é apenas uma questão de força. A filosofia não pode acabar com o fanatismo, mas pode, ao menos, parar de lhe prestar homenagens servis.
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