domingo, 30 de março de 2014

Pode um argumento ser coercivo?

Desde que me mudei para a UEL, com muito gosto, tenho lecionado uma disciplina chamada "filosofia e argumentação" para várias turmas do curso de direito. Assim que assumi as primeiras turmas, em uma conversa informal, eu comentava com um amigo o modo como vejo as diferenças essenciais entre a maneira como o advogado faz uso de um argumento e a maneira como um filósofo o faz. Para o advogado, dizia eu, é essencial a persuasão de um outro. Como é trivial constatar, mais do que ele próprio estar convencido, o advogado deve convencer. Em suma, sua missão é causar a existência de uma crença na mente de uma ou mais pessoas, crença esta que, curiosamente, nem precisa ser compartilhada por ele próprio. Já o filósofo, dizia eu para protesto veemente de meu amigo, não precisa ter a menor preocupação com a persuasão.

Naquele momento, eu não tinha em mente algum juízo de valor negativo sobre um filósofo que tentasse persuadir alguém sobre uma tese filosófica. Apenas me parecia uma tarefa alheia à sua atividade. Mas, nisso, ocorreu a meu amigo uma tese bastante exótica de Nozick, autor que eu mesma ainda não lia à época. Segundo meu amigo, Nozick acreditaria que a tentativa de persuasão por meio de argumentos contaria como uma forma de coerção. Confesso que nem dei muito bola para essa ideia até alguns dias atrás, quando, por acaso, deparei-me com esse texto de Nozick. E não é que achei que ele faz mesmo algum sentido?

Além de examinar o vocabulário usado em debates na língua inglesa, mostrando as metáforas de força, Nozick atenta para o fato de que, em uma tentativa de prova, visamos fazer com que o outro tenha que consentir com a verdade de uma proposição, quer ele queira ou não. É por isso que, conforme ensino aos meus alunos do direito, ao provarmos algo para alguém, não partimos de proposições escolhidas aleatoriamente, mas sim de proposições que sabemos serem aceitas por nosso interlocutor. A intenção é que ele não possa recusar a proposição que queremos que ele aceite, dado que ele aceita nossa premissa. É assim que, metaforicamente falando, nós o forçamos a consentir com o que queremos.

Ora, neste ponto, você dirá que isso não conta como coerção em qualquer sentido relevante por duas razões: primeiro, o instrumento utilizado é a razão do próprio ouvinte; segundo, mesmo que a lógica o obrigue a assentir com a verdade de uma conclusão (dado o fato dele ter aceito a verdade da premissa), ele ainda é livre para se recusar a acreditar. Naturalmente, Nozick concorda que não se trate aqui propriamente de coerção. Ele diz que persuadir alguém, afinal, não é o mesmo que sequestrá-lo para operar à força seu cérebro, colocando nele uma crença. Porém, há espaço para a analogia com a coerção física. Primeiro, é você quem está conduzindo o processo propositadamente. Daí sua escolha da premissa apropriada à prova: aquela que seu ouvinte aceita. Segundo, há, sim, uma punição para quem não aceita a conclusão, aceitando a premissa: a pessoa será tachada de "irracional".

Claro, essa punição, diz Nozick, é fraca. Eu observo que ela não viola qualquer direito do seu interlocutor, afinal, seu interlocutor não tem o direito de exigir uma avaliação positiva de sua parte. A persuasão por meio de argumentos, penso eu, difere essencialmente das ameaças juridicamente reprováveis, porque, nas últimas, caso o outro recuse dar seu assentimento ao que quero, eu anuncio minha intenção de agredir, diretamente, sua liberdade, ou, ao menos, sua propriedade. Quer dizer, o juridicamente reprovável é o anúncio da intenção de violação de um direito em caso da pessoa que ameaça ser contrariada. Eu não posso ser juridicamente reprovada se eu, simplesmente, anuncio que não falarei mais com você se você não disser ou fizer o que quero. Nozick não explica o ponto dessa maneira, mas parece-me bem consciente dele ao se limitar a dizer que quem força o outro a ter que aceitar uma verdade por meio de argumentos não está sendo "nice". Ademais, quando ele fala em auto-defesa, para esses casos, ele se limita a mencionar a formulação de contra-argumentos, e não, obviamente, o uso de força física contra quem tenta persuadi-lo.

Enfim, eu ainda não tenho certeza se cabe alguma reprovação moral, ainda que não jurídica, a quem tenta me persuadir da verdade de uma proposição p, em que eu não quero acreditar de bom grado. Mas Nozick tem um ponto, ao menos, em dizer que o objetivo do filósofo não é a persuasão. Gosto da metáfora que ele usa ao dizer que a persuasão é uma matéria do departamento de relações externas da minha mente. O que importa, do ponto de vista do meu próprio sistema de crenças, é o que o outro diz, e não se ele acredita nisso ou não. Concordando com isso, antes de ler esse texto, naquela conversa com meu amigo, eu me lembrei de Trasímaco dizendo a Sócrates para responder o argumento, sem se preocupar em saber se ele, o próprio Trasímaco, acreditava na tese defendida ou não. De fato, como diz Nozick, se o cético me disser que estava brincando, isso não muda em nada o problema que ele me traz.

Mas, se filósofos não são advogados, se seu fim não é persuadir o público quanto à verdade de uma tese, qual é, então, seu propósito? Bom, eu tenho me identificado tanto com Nozick, justamente porque, como digo desde o início, eu escrevo este blog para mim, compartilhando-o com outros que podem ter as mesmas angústias. Certamente, se meu objetivo fosse o convencimento de alguém, eu defenderia minhas posições quando compartilham meus posts em debates de internet (na verdade, eu mesma os compartilharia), ou, ao menos, eu aceitaria convites para publicar meus posts em portais de muito maior repercussão que este humilde blog. Não o faço, porque meu objetivo é a inteligibilidade, e não a persuasão. Aliás, acho que, uma vez, li em Lebrun: "encontrar a inteligibilidade, eis o triunfo do filósofo".

Por sinal, por ver a filosofia como a derrota da ininteligibilidade, e não de uma tese adversária, estou encantada com a obra Philosophical Explanations, ainda mais do que estive com Anarchy, State, and Utopia. Na verdade, Philosophical Explanations explica o que muitos não entenderam em Anarchy, State, and Utopia. A respeito desta última obra, Nozick foi acusado de não provar suas teses, pois ele não provou nela que existiriam direitos individuais. Ora, não entenderam que Anarchy, State, and Utopia já era uma philosophical explanation! Ou seja, Nozick queria explicar como seria possível um Estado se acreditamos que os seres humanos possuem certas características empiricamente determinadas e, ainda, são dotados de direitos individuais invioláveis. Quer dizer, ele visa construir uma teoria que compatibilize conjuntos de proposições que, aparentemente, se opõem. Isso não é pouca coisa! Inclusive, se for uma tentativa bem sucedida, refuta o anarquista, que argumenta ser impossível tal compatibilização.

Interessantemente, Philosophical Explanations também joga luz na minha leitura do resultado da primeira parte de Anarchy, State, and Utopia. Como eu já disse neste blog, o que Nozick compatibiliza com direitos individuais não é o que os próprios anarquistas entendem por Estado. É uma "state-like entity". Em Philosophical Explanations, justamente, ele diz que, por vezes, não podemos explicar como é possível exatamente o que a outra parte argumenta ser impossível, mas apenas algo quase tão bom quanto. Muito bem, eu digo que aquela "state-like entity" de Anarchy, State, and Utopia era, para Nozick, algo quase "tão bom" quanto o Estado, e algo que ele teria conseguido compatibilizar com direitos individuais. Em Philosophical Explanations, Nozick vai um pouco além em suas explicações morais, procurando explicar, por exemplo, que podemos ter valor, e, portanto, direitos individuais, mesmo em um mundo causalmente determinado, um problema clássico da história da filosofia. Bom, de minha parte, o que eu quero é entender coisas assim. Naturalmente, toda ajuda é bem-vinda.

 

sexta-feira, 21 de março de 2014

Desafio Ancap

Já repararam como anarco-capitalistas são odiados por boa parte dos libertários que se declaram mini-arquistas? Claro que sim, a pergunta foi apenas retórica. Eu não dou a mínima para nossa impopularidade e, por isso mesmo, gostaria de brincar com ela lançando aqui uma provocação aos libertários adeptos do Estado mínimo. Como sabem, ancaps temos a imagem que temos por, supostamente, acreditarmos que somos os únicos libertários coerentes. Bom, eu gostaria de mostrar que temos bons motivos para nos considerarmos assim, portanto, que não somos pretensiosos.

Primeiramente, considere o seguinte: não classificarei alguém como libertário em sentido mínimo, caso ele não aceite o princípio segundo o qual todos os direitos, em última instância, devem ser redutíveis a direitos individuais. Esse princípio já foi textualmente afirmado até por um certo senador republicano que postula a presidência dos Estados Unidos. É a ele que você, libertário, tem em mente quando diz que o Estado não pode lhe forçar a fazer caridade. Muito bem. Tenhamos esse princípio em mente como o nosso mínimo denominador comum.

Agora, façamos o seguinte experimento de pensamento. Em uma certa sociedade, duas agências de proteção ofertam seus serviços: as agências A e B. A e B publicam os mesmos códigos legais, exceto por uma lei L que pertence aos códigos de B, mas não aos códigos de A. Adicionalmente, ambas publicam o mesmo código processual. Em um julgamento conduzido publicamente de acordo com esses códigos, A impõe a um sujeito S, que não é cliente de B, a mesma sanção que B teria imposto em um caso similar sob todos os aspectos relevantes. Sem afirmar o contrário, B anuncia que punirá A de acordo com L, e age de acordo com esse anúncio. Acusação segundo L: A usou a força no mesmo território em que B atua sem ter sua autorização.

Desafio: reduza o direito de B de punir A a um direito individual.

 

domingo, 2 de março de 2014

Anarquia e lei


Muitos anarquistas gostam de dizer que anarco-capitalistas não compartilhariam seu gênero. No que me diz respeito, a suspeita faz todo sentido. A concessão que faço aos anarquistas têm um sentido bem preciso: eu não acredito que uma associação tenha direitos irredutíveis aos direitos individuais de seus membros. A consequência prática dessa rejeição de direitos especiais à coletividade é a rejeição de um direito ao monopólio da execução do direito. Assim, se eu sou anarquista, então Nozick, por exemplo, também é, já que ele não defende qualquer monopólio de direito. Enfim, isso, eu até já venho explicando neste blog.

Ultimamente, eu tenho pensado nos direitos individuais diante do executor do direito. Meu último post, em que tratei de direitos processuais, já é um exemplo dessa minha preocupação recente. Se pensarmos a execução do direito na forma de um silogismo jurídico em que a premissa maior é a lei, enquanto a menor expressa a averiguação do que fez o indivíduo, juntamente com a demonstração de seu grau de responsabilidade pelo ato, então, no último post deste blog, eu tratei da menor. Eu defendi que ninguém tem o direito de executar o direito sem, antes, provar a culpa do réu para além de toda dúvida razoável. Para tanto, eu me baseei no princípio epistêmico de Nozick, segundo o qual não basta que o indivíduo seja culpado para que você tenha o direito de puni-lo, é preciso também que você seja capaz de provar sua culpa. Naturalmente, da rejeição desse princípio decorreria que não teríamos o direito de impedir alguém de praticar violência contra qualquer outro com base em simples alegações desprovidas de qualquer fundamento.

Neste post, eu quero me ocupar da premissa maior daquele silogismo jurídico: a lei. Ora, eu acredito em direitos naturais, portanto, em leis naturais, no sentido kantiano de princípios a priori ou racionais do direito. Em outras palavras, eu acredito que há leis que são dedutíveis de nossa condição moral - da própria dimensão normativa da existência humana como tal - sendo, por conseguinte, independentes de nossa situação social ou de contratos que tenhamos firmado. Aliás, consiste nisso, e apenas nesse aspecto negativo, a sua "naturalidade". Mas, infelizmente, a precisão do conteúdo desse direito natural, mesmo entre jusnaturalistas, está longe de ser incontroversa. 

Certamente, o problema mencionado acima - a ausência de um consenso sobre o conteúdo do direito natural - não é nenhuma peculiaridade do anarquismo. Se postularmos um direito ao monopólio da execução do direito, nada se resolve. Pelo contrário, o problema fica agravado, porque estaremos submetidos a um poder que, de forma alguma, se pautaria por uma lei incontestável. Dito isso, o que podemos fazer para aplicarmos o direito diante da multiplicidade de interpretações do direito?

Parece-me que, em primeiro lugar, é preciso que seja garantida a segurança jurídica, isto é, é preciso que a lei seja publicada antes de ser aplicada. Você não pode aplicar uma punição sem que o punido saiba que está sujeito a ser punido, como se sua interpretação do direito natural fosse auto-evidente. Além de garantir a segurança jurídica, a publicação das leis garante também a possibilidade de que elas sejam contestadas e, eventualmente, aprimoradas. É claro que alguém não poderia ter o direito de evitar uma punição simplesmente alegando não concordar com a lei. A admissão desse tipo de defesa tornaria todo direito inaplicável. O que quero dizer é que não se pode, acima de tudo, criminalizar o próprio debate a respeito da legitimidade das leis públicas. Essa necessária abertura ao debate decorre do próprio fato de ninguém ser o monopolista por direito da interpretação e da aplicação do direito.

Outro aspecto importante da publicidade das leis é a necessidade de que as sanções sejam explicitadas com antecedência. O simples fato de um indivíduo ter violado uma lei, por mais que a consideremos uma expressão correta do direito natural, não dá aos demais o direito de fazerem o que bem entender dele para todo o sempre. Não posso alegar: "João violou uma lei, portanto, João passa a ser um sujeito destituído de direitos perante a sociedade, que pode tratá-lo, doravante, como simples coisa". É preciso que a lei defina a maior e a menor pena a que João se submete ao violar a lei pública para que não valha toda e qualquer ação com respeito a João. Afinal, um simples furto, por exemplo, não poderia aniquilar a personalidade moral de João. O culpado, em suma, continua a ser um portador de direitos, de modo que ele não pode receber nada além da pena cabível. Mas qual a pena cabível? No mínimo, não poderia ser uma pena arbitrariamente definida após a constatação de violação da lei, concordam?

Enfim, são algumas considerações que eu teria, no momento, a fazer dentro desse meu esforço de pensar o direito independentemente do monopólio do direito. Estou convencida, por enquanto, de que a institucionalização do direito não precisa implicar na estatização do direito. Até por isso, note bem que estive usando "lei pública" com um sentido independente de "lei estatal"...