quarta-feira, 21 de maio de 2014

O Estado de Bem-Estar Social como uma Confusão Conceitual


No último encontro de seu grupo de pesquisa, Aguinaldo comentava como Kant é necessário para a organização de sua vida mental. Essa constatação não poderia ser mais verdadeira para mim. Discordando ou não de Kant quanto ao conteúdo de teses, o fato é que ele oferece o referencial teórico, o quadro conceitual pelo qual consigo me orientar no pensamento, elaborando questões e buscando respostas para elas. O que tenho em mente fica claro se tivermos em vista, por exemplo, a importante distinção entre deveres perfeitos e imperfeitos. Aliás, é esse o ponto: Kant sempre tem em mãos uma distinçãozinha que evita que caíamos em desgraça, ou seja, em confusão.

É verdade, porém, que a distinção nem sempre é ela mesma tão clara. Muita bibliografia já foi produzida, por exemplo, sobre o cerne da diferença entre deveres perfeitos e imperfeitos. Obviamente, não é minha intenção entrar em debates hermenêuticos neste espaço. É a intuição fundamental da distinção que me interessa. Entendamos, então, por deveres perfeitos, os deveres relativos a práticas de ações que podem ser diretamente especificadas a partir de um procedimento formal. Isso implica em deveres estritos, que não deixam margem para o juízo moral do agente. Por exemplo, não se pergunta para com quem temos o dever de não cometermos fraude, ou quais assassinatos não devemos cometer. Tendo em vista uma investigação que Nozick desenvolve muito proximamente ao espírito da ética kantiana da qual quero me apropriar livremente aqui, podemos dizer que deveres perfeitos dizem respeito aos deveres que temos de não respondermos ao valor da pessoa humana como se ele fosse um desvalor. Em outras palavras, deveres perfeitos são deveres de não tratarmos o valor como se ele fosse algo que pudesse ser destruído. Comportamentos destrutivos ou agressivos à pessoa humana são, portanto, comportamentos absolutamente reprováveis.

Agora, há deveres imperfeitos, no sentido não de deveres que podemos deixar de lado, mas no sentido de deveres que comportam uma latitude para a decisão do agente quanto aos casos de aplicação. Por exemplo, provavelmente, você acredita que tenhamos algum dever de cooperação ou, simplesmente, de caridade. No entanto, da aceitação desse preceito, não decorre que tenhamos o dever de ajudarmos a toda e qualquer outra pessoa, em todas e quaisquer circunstâncias, com relação a todas e quaisquer necessidades suas. Quer dizer, não fica determinado o que devemos fazer com relação a quem, pois uma coisa é termos um dever lato de beneficência e outra coisa é termos o dever estrito de darmos R$100,00 ao mendigo João que nos aborda no semáforo da esquina X. Quanto a esses deveres, cabe nossa ponderação pessoal com respeito a quem devemos ajudar, em que circunstâncias, com o que... Por isso, do seu dever lato de beneficência não decorre um direito meu de ser assistida por você.

A natureza desses deveres imperfeitos também ficará mais clara se eu continuar abusando de Nozick. São deveres para que eu responda ao valor da pessoa humana como algo de valor, procurando mantê-lo em existência. Naturalmente, se eu não faço isso, isto é, se eu me omito e deixo de evitar que o valor seja destruído, isso não implica que eu mesma tenha destruído o valor. Por isso, são deveres profundamente diferentes com relação aos deveres perfeitos. Não tomar interesse pelo valor como algo de valor não é o mesmo que agir no sentido de destruí-lo como se ele não tivesse valor ou fosse mesmo algo de nocivo. A indiferença por uma pessoa não é idêntica a uma atitude pela qual eu a tome por uma coisa e a use como tal. Eu nunca posso usar pessoas como se fossem coisas, mas, por vezes, posso ser indiferente a elas, como quando passo por estranhos na rua sem sequer atentar para a existência deles. A minha indiferença não colabora para a manutenção do valor das pessoas, mas também não é destrutiva desse valor.

Enfim, agora, por mais que eu tenha deixado possíveis questões em aberto acima, afinal, isto não é um livro de filosofia, já posso delinear meu ponto sobre o Estado de Bem-Estar Social. Os seus proponentes tomam deveres imperfeitos como se fossem perfeitos. É como se eu tivesse o dever estrito de manter o valor de todos, do mesmo jeito que tenho o dever estrito de não destruir o valor de ninguém. Ora, como eu poderia colaborar para manter o valor de todos? Parece claro que um tal dever estaria além da capacidade humana. E é por isso mesmo que o proponente do Estado de Bem-Estar Social não acredita que associações voluntárias possam fazer as vezes do Estado no tocante à beneficência. Só o Estado pode tirar um pouco de todos e criar um fundo disponível para o benefício de todos. Mas se a ação beneficente fosse voluntária, note que eu, necessariamente, teria que escolher a quem ajudar, com qual causa colaborar e com quanto. É essa dinâmica do dever imperfeito que o proponente do Estado de Bem-Estar Social não aceita. Ele quer implantar aqui a dinâmica estrita dos deveres perfeitos.

Para defender seu caso contra a distinção entre deveres perfeitos e imperfeitos, o advogado do Estado de Bem-Estar Social carrega nas tintas e imagina casos extremos em que qualquer sujeito julgaria estar diante de uma instância de aplicação do dever imperfeito. Por exemplo, imagine que você seja o único transitando por um dado caminho à noite. O lugar é deserto e você o procurou exatamente porque queria ficar sozinho. Você está, portanto, ciente de que as chances de mais alguém passar por ali são mínimas. Trata-se também de uma época de inverno rigoroso, sendo que o frio vai se intensificando conforme a noite cai. Então, você ouve o choro de um bebê e percebe, à beira do caminho, que ele foi abandonado ali à própria sorte. Ora, se você não socorrer o bebê, é muito provável que ele não resista até o amanhecer. O que você deve fazer? 

É claro que essa decisão não é como a decisão de doarmos R$10,00, R$50,00 ou nada para um determinado pedinte no semáforo. O contexto reúne circunstâncias tão extremas que facilitam o juízo moral do agente. Sabemos que devemos cumprir o dever imperfeito ajudando o bebê. Mas, veja bem, nem por isso, ele seria então um dever perfeito. A diferença não foi anulada. A minha omissão no caso de um bebê que não coloquei no mundo não é equivalente a um ato meu visando assassiná-lo. Eu não seria responsável pela morte dele simplesmente por ter o poder de evitá-la e escolher não fazê-lo. Apenas era um caso claro em que eu tinha que cumprir o dever de manter o valor da pessoa humana em existência. Era um caso claro em que a resposta apropriada ao valor não poderia ser a indiferença. Mas esse caso atípico, excepcional não pode ser convertido em uma regra que anule a latitude própria dos deveres imperfeitos. No máximo, inclusive, a atenção para com casos assim poderia vir a justificar a criminalização da omissão de socorro, mas não a imposição da cooperação social em geral.

Mas será que é apenas pela sua latitude inerente que deveres imperfeitos não podem ser objeto de imposição? Quero encerrar esse texto dizendo que há algo mais aqui. Como Nozick bem nota na última entrevista que deu em vida, aquela que gostam de esquecer pelo fato dele se reafirmar nela como libertário, quando impomos o que estou chamando aqui de deveres imperfeitos estamos ferindo o que estou chamando aqui de deveres perfeitos. A imposição de que alguém responda positivamente ao valor, mantendo-o em existência, implica em tratar esse alguém como sendo ele próprio algo sem valor, algo que pode, portanto, contra sua vontade, ser o mero recurso ou instrumento de minha própria boa ação. Por isso, a única forma consistentemente moral de respondermos positivamente ao valor é a cooperação voluntária, não o Estado de Bem-Estar Social ou algo que o valha.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Orange is the new black, ou por que cadeia não é melhor que linchamento


Depois de House of Cards mostrando a política pelo que ela é, o Netflix faz mais um ponto pela causa da liberdade. Falo de Orange Is The New Black. É inevitável assistir a série e pensar na hipocrisia de quem se choca com linchamentos para acusados de crimes violentos, enquanto tolera o encarceramento de indivíduos que não cometeram violência alguma. Uma coisa não é melhor do que a outra do ponto de vista da violação dos direitos individuais. 

No entanto, para dizer a verdade, o que mais me faz refletir quando veja a série nem é o modo como o Leviatã encarcera uma mera comerciante e a transforma em alguém que, agora sim, precisa praticar violência para sobreviver. Nisso, eu sempre penso quando vejo um noticiário qualquer. O erro terrível que me angustiou enquanto eu acompanhava a primeira temporada da série foi o próprio encarceramento como pena. E isso, justamente, porque a série não mostra condições materiais terríveis na prisão. Pelo contrário, a violência dos carcereiros contra as presidiárias não é um ponto explorado. Não há estupros (exceto por um caso forjado para incriminar um carcereiro) ou espancamentos, por exemplo. As condições de limpeza também parecem razoáveis. Não há super lotação. A comida não nos lembra dos casos do Maranhão. Em suma, parece que estamos diante do melhor que um presídio poderia ser, dadas as circunstâncias. E é assim que você nota como o cárcere, por si só, é aviltante para a dignidade humana.

Muita gente acredita que basta que a dor física não seja infringida e, pronto, a pena é digna. Eu não entendo o porquê dessa concepção. A autonomia do ser humano, a meu ver, é muito mais atingida quando ele perde o direito de decidir quando ir ao banheiro, o quanto comer, enfim, como conduzir cada mísero detalhe de sua vida, do que quando ele é submetido a um castigo físico passageiro. Em outras palavras, quer me parecer que uma chibatada nas costas seja menos humilhante do que ter que pedir autorização para tomar um banho. O cárcere, em suma, foi planejado para poupar o corpo, mas tirar do indivíduo exatamente a capacidade que o torna humano: a autonomia.

Por essa razão, defendo que o cárcere seja adotado, não como pena, mas como proteção da sociedade em casos extremos, quando o indivíduo, por exemplo, mostra-se um assassino ou estuprador em série. Mas também não estou defendendo o retorno de penas físicas. Penso que a melhor maneira de punir um indivíduo que não represente um perigo real para a integridade física dos demais seja o trabalho: ele causou um mal, terá que produzir um bem proporcional. Por exemplo, um indivíduo que roubou o equivalente a 50 mil reais teria que reparar esse prejuízo e, posteriormente, como pena, trabalhar por um tempo proporcional ao dano causado. O saldo negativo teria que se tornar um saldo positivo proporcional. Afinal, se apenas zerássemos a conta, não haveria punição, mas só reparação. Naturalmente, como não penso que o indivíduo deva ser apartado da sociedade e como ele precisaria se sustentar nela. Eu penso esse trabalho comunitário, digamos assim, para seu tempo livre. E se ele se recusasse? Bem, então, eu penso que ele deveria ser tratado como se trata hoje um fugitivo de um presídio. Em último caso, poderiam usar munição letal contra ele.

Penas alternativas como o trabalho comunitário também têm inúmeras vantagens, se pensarmos de uma forma mais consequencialista. Um detento perde seu contato com a realidade. O mundo dele passa a ser o aquário da prisão. É óbvio que o retorno será muito difícil, para muitos, até impossível. É melhor para todos que a sociedade veja alguém que, episodicamente, violou um direito como uma pessoa qualquer que, nem por isso, representa um risco maior que qualquer outro. Isso só acontece se a pessoa não é retirada do convívio com as demais. A prática de um crime não deveria significar a perda de todos os outros direitos, a anulação da pessoa enquanto tal, mas apenas a necessidade de uma restrição temporária à sua liberdade, até que você retribua com um bem o mal que fez.

Pelos mesmos motivos, eu defenderia que o trabalho penal fosse praticado na companhia de outros empregados comuns, e não de outros condenados. Por sinal, não me parece que reunir condenados em um mesmo espaço seja uma ideia minimamente inteligente. Além da possibilidade de que o detento adquira novas habilidades criminosas e conheça futuros comparsas, muitas vezes, ele ainda estará recebendo uma pena maior do que a privação da liberdade de ir e vir, já que, além de ser submetido às ordens do sistema em si, ele ainda poderá ser submetido às ordens dos demais. 

Eu não conheço caso de presídio eficiente no que tange à proteção de um detento quanto aos desmandos de outro, sendo que ninguém foi condenado a isso. Na verdade, eu não vejo sequer vontade para o enfrentamento do problema, visto que grande parte da população acredita que direitos humanos não devem se aplicar a condenados. Aliás, é interessante notarmos que, uma vez presidiários, o ladrão de galinha e o maior dos facínoras passam a ser o mesmo diante da sociedade. É interessante a esse respeito a cena de Orange Is The New Black, em que um carcereiro experiente ensina a mais jovem que ela não deve se referir a detentas pelos nomes, mas apenas como "detentas", porque, para o sistema, as detentas devem sentir que são todas iguais. Isso mostra o desejo de aniquilação da personalidade. Esse projeto, infelizmente, é bem sucedido, porque nós, aqui fora, também passamos a pensar em todos eles, lá dentro, como iguais.

Enfim, posso estar errada. Como não sou especialista, já devem existir milhões de propostas melhores do que a minha. Meu objetivo com este post é apenas te convidar a refletir um pouco sobre o absurdo do sistema penitenciário estatal, que massacra milhões mundo afora, em vez de ficar aí choramingando apenas por algumas notícias isoladas de linchamento. E veja que eu nem falei das condições das cadeias e presídios do Brasil, que fazem as instalações da série parecerem um palácio...