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sexta-feira, 9 de maio de 2014

Orange is the new black, ou por que cadeia não é melhor que linchamento


Depois de House of Cards mostrando a política pelo que ela é, o Netflix faz mais um ponto pela causa da liberdade. Falo de Orange Is The New Black. É inevitável assistir a série e pensar na hipocrisia de quem se choca com linchamentos para acusados de crimes violentos, enquanto tolera o encarceramento de indivíduos que não cometeram violência alguma. Uma coisa não é melhor do que a outra do ponto de vista da violação dos direitos individuais. 

No entanto, para dizer a verdade, o que mais me faz refletir quando veja a série nem é o modo como o Leviatã encarcera uma mera comerciante e a transforma em alguém que, agora sim, precisa praticar violência para sobreviver. Nisso, eu sempre penso quando vejo um noticiário qualquer. O erro terrível que me angustiou enquanto eu acompanhava a primeira temporada da série foi o próprio encarceramento como pena. E isso, justamente, porque a série não mostra condições materiais terríveis na prisão. Pelo contrário, a violência dos carcereiros contra as presidiárias não é um ponto explorado. Não há estupros (exceto por um caso forjado para incriminar um carcereiro) ou espancamentos, por exemplo. As condições de limpeza também parecem razoáveis. Não há super lotação. A comida não nos lembra dos casos do Maranhão. Em suma, parece que estamos diante do melhor que um presídio poderia ser, dadas as circunstâncias. E é assim que você nota como o cárcere, por si só, é aviltante para a dignidade humana.

Muita gente acredita que basta que a dor física não seja infringida e, pronto, a pena é digna. Eu não entendo o porquê dessa concepção. A autonomia do ser humano, a meu ver, é muito mais atingida quando ele perde o direito de decidir quando ir ao banheiro, o quanto comer, enfim, como conduzir cada mísero detalhe de sua vida, do que quando ele é submetido a um castigo físico passageiro. Em outras palavras, quer me parecer que uma chibatada nas costas seja menos humilhante do que ter que pedir autorização para tomar um banho. O cárcere, em suma, foi planejado para poupar o corpo, mas tirar do indivíduo exatamente a capacidade que o torna humano: a autonomia.

Por essa razão, defendo que o cárcere seja adotado, não como pena, mas como proteção da sociedade em casos extremos, quando o indivíduo, por exemplo, mostra-se um assassino ou estuprador em série. Mas também não estou defendendo o retorno de penas físicas. Penso que a melhor maneira de punir um indivíduo que não represente um perigo real para a integridade física dos demais seja o trabalho: ele causou um mal, terá que produzir um bem proporcional. Por exemplo, um indivíduo que roubou o equivalente a 50 mil reais teria que reparar esse prejuízo e, posteriormente, como pena, trabalhar por um tempo proporcional ao dano causado. O saldo negativo teria que se tornar um saldo positivo proporcional. Afinal, se apenas zerássemos a conta, não haveria punição, mas só reparação. Naturalmente, como não penso que o indivíduo deva ser apartado da sociedade e como ele precisaria se sustentar nela. Eu penso esse trabalho comunitário, digamos assim, para seu tempo livre. E se ele se recusasse? Bem, então, eu penso que ele deveria ser tratado como se trata hoje um fugitivo de um presídio. Em último caso, poderiam usar munição letal contra ele.

Penas alternativas como o trabalho comunitário também têm inúmeras vantagens, se pensarmos de uma forma mais consequencialista. Um detento perde seu contato com a realidade. O mundo dele passa a ser o aquário da prisão. É óbvio que o retorno será muito difícil, para muitos, até impossível. É melhor para todos que a sociedade veja alguém que, episodicamente, violou um direito como uma pessoa qualquer que, nem por isso, representa um risco maior que qualquer outro. Isso só acontece se a pessoa não é retirada do convívio com as demais. A prática de um crime não deveria significar a perda de todos os outros direitos, a anulação da pessoa enquanto tal, mas apenas a necessidade de uma restrição temporária à sua liberdade, até que você retribua com um bem o mal que fez.

Pelos mesmos motivos, eu defenderia que o trabalho penal fosse praticado na companhia de outros empregados comuns, e não de outros condenados. Por sinal, não me parece que reunir condenados em um mesmo espaço seja uma ideia minimamente inteligente. Além da possibilidade de que o detento adquira novas habilidades criminosas e conheça futuros comparsas, muitas vezes, ele ainda estará recebendo uma pena maior do que a privação da liberdade de ir e vir, já que, além de ser submetido às ordens do sistema em si, ele ainda poderá ser submetido às ordens dos demais. 

Eu não conheço caso de presídio eficiente no que tange à proteção de um detento quanto aos desmandos de outro, sendo que ninguém foi condenado a isso. Na verdade, eu não vejo sequer vontade para o enfrentamento do problema, visto que grande parte da população acredita que direitos humanos não devem se aplicar a condenados. Aliás, é interessante notarmos que, uma vez presidiários, o ladrão de galinha e o maior dos facínoras passam a ser o mesmo diante da sociedade. É interessante a esse respeito a cena de Orange Is The New Black, em que um carcereiro experiente ensina a mais jovem que ela não deve se referir a detentas pelos nomes, mas apenas como "detentas", porque, para o sistema, as detentas devem sentir que são todas iguais. Isso mostra o desejo de aniquilação da personalidade. Esse projeto, infelizmente, é bem sucedido, porque nós, aqui fora, também passamos a pensar em todos eles, lá dentro, como iguais.

Enfim, posso estar errada. Como não sou especialista, já devem existir milhões de propostas melhores do que a minha. Meu objetivo com este post é apenas te convidar a refletir um pouco sobre o absurdo do sistema penitenciário estatal, que massacra milhões mundo afora, em vez de ficar aí choramingando apenas por algumas notícias isoladas de linchamento. E veja que eu nem falei das condições das cadeias e presídios do Brasil, que fazem as instalações da série parecerem um palácio...

domingo, 19 de maio de 2013

Miséria e Violência: quando o crime compensa


A discussão motivada pelo clamor de certos setores da sociedade brasileira pela redução da maioridade penal reascendeu um antigo debate, já que tantos jovens condenados são pobres ou menos do que isso: qual a relação entre a miséria e a violência? Claro, trata-se, em grande parte, de uma questão empírica, sendo que as estatísticas bastam para nos provar que não estamos diante de uma relação causal simples e direta, afinal, o índice de violência em cada sociedade não se expande ou retrai proporcionalmente ao seu quinhão de miséria. Ademais, é uma constatação trivial a de que nem todo miserável é um criminoso violento, assim como a de que nem todo criminoso violento é miserável. Porém, é fato que, por outro lado, pessoas de baixa renda correspondem à maior parte dos ocupantes dos presídios. Não seria então o caso de desconfiarmos de não estarmos diante de uma mera coincidência?

Na verdade, além de não acreditar em coincidências, eu desconfio também da explicação segundo a qual a maioria dos presidiários seria composta por pessoas de baixa renda simplesmente porque essa camada da população seria mais perseguida pela polícia, bem como mais suscetível a uma condenação em tribunal. Agora, supondo que a miséria seja realmente um fator no complexo causal que explica o fenômeno dos crimes violentos, como devemos pensar essa relação?

Em primeiro lugar, temos que tomar uma decisão sobre o modo como iremos considerar os agentes no contexto do discurso jurídico. Não me parece que nosso sistema penal atual faça sentido se tomarmos esses agentes como meros produtos de sua genética aliada ao meio ambiente onde nasceram e se criaram. Fosse esse o caso, nem sequer poderíamos estipular a duração das penas. O criminoso teria que ser mantido afastado da sociedade por tempo indeterminado, até que se pudesse avaliar a completa reversão do efeito sobre ele dos condicionamentos iniciais, se é que isso seria possível algum dia. Nesta teoria determinista do direito penal, o agente não é um sujeito responsável por suas ações. Ele é apenas o resultado de um processo que deu errado. Assim, ele corresponde a uma ameaça para seus semelhantes enquanto o processo não puder ser revertido.

O curioso dessa teoria determinista é que ela parece solapar a própria ideia de um direito penal. Não se teria mais pena propriamente! Na verdade, em vez de um veredicto de um juiz ou de um júri, o mais correto seria existir um diagnóstico de que o sujeito poderia reincidir no crime. Tenhamos em mente, afinal, que ele não pode ser castigado, já que ele não tem culpa pelo que faz, tampouco a pena poderia dissuadi-lo de cometer crimes, já que suas ações são meras respostas ao meio somado à genética. Assim, diagnóstico traçado, o criminoso seria recolhido para tratamento. Na impossibilidade de sucesso desse tratamento, ele seria sumariamente eliminado, pois que dignidade poderia ter um animal que apenas responde a estímulos de acordo com o modo como foi condicionado desde jovem? Em suma, o sistema penal seria um mecanismo de proteção da sociedade de indivíduos que socio-biologicamente deram errado.

Voltando à miséria, ela bem poderia ser um fator preponderante para o indivíduo dar errado no sentido de se tornar uma ameaça a seus semelhantes. Mas e daí? Se estamos falando de indivíduos que nada têm do que nos acostumas a respeitar como tipicamente humano, em vez de combater a miséria, não seria mais simples e barato apenas abatermos como gado aqueles afetados por ela do modo errado? Mesmo nas comunidades mais miseráveis, qual a parcela de miseráveis que efetivamente se tornam criminosos? Na perspectiva dessa teoria, defendida por gente que se vende como tão piedosa, parece-me obviamente mais efetivo eliminar o miserável criminoso, e não a miséria, que é só um fator para a criminalidade, e um fator que pode mesmo estar ausente, até onde a experiência mostra.

A consequência dessa teoria nos repugna exatamente porque ela contraria o valor que serve de alicerce a qualquer ordenamento jurídico ocidental: a imputabilidade e a consequente dignidade do ser humano. Mas o que está em jogo na imputabilidade jurídica? Se o ser humano não é uma mera resposta a seu meio, resposta esta moldada por certa herança genética, então ele deve ser pensado como o portador de um livre-arbítrio? Depende do que entendemos por "livre-arbítrio". Não vejo necessidade alguma de nos comprometermos com uma teoria tal que descreva o livre-arbítrio como uma capacidade do sujeito se auto-determinar até mesmo contrariamente a todas as influências de seu meio e sua bagagem genética. Essa teoria metafísica só precisaria ser pressuposta se o sistema penal fosse visto como um mecanismo de distribuição de castigos proporcionais à culpa, para sua expiação, tarefa que, felizmente, podemos deixar a cargo de Deus!

Para nossa sorte, podemos pensar em um ordenamento jurídico que não nos trate nem como animais e nem como seres sobrenaturais. Tudo que o direito precisa é de um conceito de livre-arbítrio que nos permita acreditar que o agente, diferentemente de qualquer animal, possa ser dissuadido de perseguir seu fim por meio de um mero cálculo egoísta. A pena, nesse contexto, não é castigo e nem recondicionamento. Ela serve apenas como motivo de dissuasão para um agente que sabe avaliar seus interesses. Bom, agora, temos um problema conceitual que pode bem nos ajudar a entendermos nosso problema real relativo à violência.

Se o sistema penal é um mecanismo de dissuasão, ele terá impactos diferentes em agentes com fins diferentes, inseridos em circunstâncias diferentes. Em suma, o crime pode muito bem compensar para alguns. Esse parece-me ser exatamente o problema da miséria como um fator de criminalidade. Se você vive na classe média (veja bem, não me refiro bem ao que o governo classifica como tal), você pode ambicionar mais, mas, se você calcula, o risco de passar uma temporada na miséria cruel dos presídios brasileiros não parece compensar a aposta de ascender de classe social cometendo roubos, por exemplo. Tanto é assim que não é comum que adultos de classe média pratiquem assaltos à mão armada. Geralmente, nessa classe social, são uns poucos adolescentes que praticam esse tipo de crime, pois é típico da idade que o agente não se importe em maximizar os riscos de suas apostas.

Agora, e se você vive em uma miséria que já lembra bem aquela que seria sua realidade uma vez dentro de um presídio? Considerando ainda que a comunicação entre o mundo intramuros e o mundo externo parece não ser problemática nos presídios brasileiros, o crime não compensaria? Eu ousaria dizer que, para um miserável no Brasil, o crime seria uma aposta bastante racional. Na verdade, eu me espanto por não termos ainda mais crimes! Talvez, por sorte nossa, o ser humano tenha uma tendência a minimizar ao máximo os riscos de suas apostas, ou, talvez, a maioria simplesmente seja boa. O fato é que esse modo como os convido a olharem para o sistema penal (como uma banca de apostas) explica como a miséria pode ser um fator preponderante para a criminalidade, sem recorrer a qualquer condicionamento social, portanto, sem solapar a própria noção de direito, que implica em imputabilidade. Era o meu objetivo...