quinta-feira, 12 de abril de 2012

Aborto: qual é o ponto?

Por mais que eu odeie dar razão aos ateus militantes (ou a qualquer tipo de militante), devo admitir que apenas o fanatismo religioso explica o fato de haver um debate, arrastando-se por anos, a respeito do aborto de fetos anencéfalos. Que um ser humano dependa do cérebro para viver, afinal, é uma verdade que Hume, por exemplo, consideraria provada, em vez de uma mera probabilidade. Quer dizer, por mais que não seja uma verdade logicamente necessária, é uma certeza completa que obtemos por meio de experiências de constância plena. Dito isso, o problema do aborto dos anencéfalos é um pseudo-problema, pois você não pode tirar a vida humana que não existe e nem existirá um dia, por mais que esse feto possa, eventualmente, ser mantido vivo artificialmente por mais algum tempo, uma vez fora do útero da mãe.

Já nos demais casos em que se propõe a liberação do aborto, o caso não é assim tão simples, por mais que as feministas queiram reduzi-lo a uma simples questão do direito da mulher sobre seu próprio corpo (aliás, interessante como, quando convém, elas valorizam o direito à propriedade, não?). Ora, o mais radical dos liberais ainda admitiria que o direito à propriedade privada, sendo a propriedade do corpo aquela originária, tem que ser limitado pelo direito equivalente dos demais. Assim, não está em questão se a mãe tem ou não direito ao corpo, mas sim se o feto tem ou não direito à vida. Se a decisão desta última questão for afirmativa, então o direito à vida do feto pode muito bem se sobrepor ao direito da mulher de não querer um hóspede indesejado por nove meses, afinal, o feto não invadiu o corpo dela à força. Sendo um sujeito de direitos, ele não poderia pagar com a vida por um ato não cometido por ele.

Neste ponto, portanto, a posição dos religiosos, ao negar o direito ao aborto, mesmo em casos de estupro ou risco à vida da mãe, parece-me muito mais coerente do que a posição daqueles que admitem o aborto apenas em casos de estupro ou risco à vida da mãe. Ou o feto tem direitos e, neste caso, qualquer aborto seria assassinato; ou o feto não tem direitos e, neste caso, qualquer aborto seria lícito.

Mais complexo seria apenas o caso de conjunção de ambas as situações: estupro e risco à vida da mãe. Parece-me que, neste caso, a mãe deveria ter o direito de escolher sua própria vida em detrimento da vida do feto, pela qual ela não é responsável. Na verdade, do ponto de vista estritamente jurídico, parece sempre inócuo que punamos o aborto nos casos de risco à vida da mãe, porque a mulher poderia sempre calcular que é melhor se submeter ao risco da pena do que ao risco mais eminente que sua vida sofre com a gestação. Em todo caso, de um ponto de vista moral mais amplo, se o feto for um cidadão de direitos, a mãe, sendo responsável pela vida dele, poderia muito bem não ter o direito de optar por sacrificá-lo para se auto-preservar.

Enfim, já perceberam que o ponto da discussão é o estatuto moral do feto? Saber o que deve ser debatido é sempre o primeiro passo para a racionalidade, se é que alguém ainda se importa com ela, seja feminista ou religioso.

4 comentários:

  1. Otimo texto, como sempre! Mas, naturalmente, eu discordo da afirmacao segundo a qual a questao dos fetos anencefalos seja um problema somente para fanaticos religiosos ou mesmo um pseudoproblema. Em primeiro lugar, a expressao anencefalia e usada para dar conta de uma diversidade muito grande de casos de ma-formacoes cerebrais, poucos deles na realidade correspondendo exatamente a ausencia total de cerebro. E, mesmo que Hume nao acreditasse nisso, ha um tempo atras me chegou as maos uma pesquisa feita no MIT dando conta de que algumas pessoas, por sinal muito talentosas em matematica, nao tinham uma porcao consideravel do cerebro considerado normal!! De todo modo, voce nao ve uma diferenca entre um feto totalmente anencefalo e um animal ou um vegetal? Eu acho que tal ente esta mais proximo do que consideramos ser humano do que um aipim o esta. De todo modo, se voce sustenta que um feto anencefalo pode ser tranquilamente retirado do ventre materno, sem direito a nada, "porque nao e um ser humano e nem nunca sera", entao, fazendo minha a maxima que voce supoe poder erigir numa possivel lei universal, tenho tudo de que preciso para destruir o planeta (e os eco-chatos junto com ele!)sem dar direito nenhum as hipoteticas geracoes futuras: Elas nao SAO seres humanos e, SE DEPENDER DE MIM, nunca o serao!
    Julio Esteves

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  2. Obrigada de novo por ter lido e comentado :-)

    Primeiramente, eu alerto q o meu texto assimila anencefalia à ausência total de cérebro. Certamente, eu concedo que, em havendo um cérebro, ainda q mal formado, a questão deve receber outro tipo de tratamento.

    Agora, retomando minha premissa, se não há cérebro em absoluto, eu não penso q haja vida humana, pois, como eu afirmei no post, não se tem notícia de um humano q tenha vivido sem cérebro. É uma questão de fato, mas uma questão bem provada pela experiência.

    Mas é claro q essa consideração já implica no uso de um certo conceito de "humano", para q possamos identificar uma vida como sendo humana ou não. Pelo seu comentário, parece-me q vc aceitaria uma definição biológica do "humano". Eu prefiro trabalhar com uma definição prática, segundo a qual o ser humano é uma mera potencialidade de certos organismos. Quer dizer, para mim, ser humano é, essencialmente, ser capaz de agir segundo regras práticas subjetivas (máximas). Afinal, se operarmos com outra definição, por qual razão julgaremos a natureza humana mais respeitável do q aquela de um aipim? Ora, essa capacidade a qual me referi é uma potencialidade q, por tudo q sabemos, não se aplica a seres da nossa espécie animal q sejam totalmente desprovidos de cérebro. É por essa razão q a questão do feto anencéfalo (em sentido estrito) me parece de fácil resolução.

    Já a questão dos supostos direitos pertencentes a organismos q, em tese, podem desenvolver a capacidade q mencionei é bem mais complexa. Nesse caso, eu poderia ser convencida de q o feto tem direitos.

    Agora, quando vc fala de gerações FUTURAS, nesse caso, ainda não há nem sequer um feto sendo gerado e eu tendo a me recusar a atribuir qualquer direito a um sujeito meramente virtual. A minha liberdade não pode ser limitada pelos direitos de um ser q não é. Em suma, eu só reconheço direitos a indivíduos concretos. No máximo, posso então reconhecer direitos a indivíduos já existentes q apenas ainda não desenvolveram as capacidades pelas quais eles são portadores de direitos.

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  3. Na verdade, eu tambem estou mais inclinado a uma concepcao pratica do ser humano, como ser capaz de projetar maximas, de ser um sujeito de fins, etc., mas a gente precisa dar espaco para pessoas portadoras de problemas mentais, por exemplo, decorrentes de falta de oxigenio no momento do parto, o que ocorre com alguma frequencia. Eles nao podem ser assimilados aos anencefalos, mas ,tambem, dificilmente, serao sujeitos capazes de se propor fins, em sentido pleno da expressao.
    Eu costumo usar a questao do direito das geracoes futuras para fustigar os abortistas. Quando eles alegam que um feto e "so" um conglomerado de celulas, que, por conseguinte, nao tem direitos, ao mesmo tempo em que, de acordo com sua agenda "progressista" e "descolada", eles defendem o planeta em prol das geracoes futuras, eu os faco ver que eles acham que seres virtuais tem mais direitos que um punhado de celulas concretametne existentes!!! Mas eu proprio tendo a pensar que geracoes futuras tem, de fato, direitos. Ate porque, como definir o que sao geracoes futuras? os que nascerem daqui a 5 minutos pertencerao ageracao futura... Como negar-lhes direitos? Onde establecer o "ponto de corte" do que deve contar como "geracoes futuras"?
    Julio Esteves

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    1. Veja, eu acho que a expressão "geração futura" tem um ponto de corte até bem preciso: já há ou não um organismo sendo gerado? Sendo assim, digo que, antes da concepção, não há geração. Ao menos, é nesse sentido que uso o conceito neste blog. Definindo o conceito desse modo, eu não reconheço qualquer direito a gerações futuras. Como eu poderia causar prejuízo à liberdade de um organismo não existente? Assim, parece que temos uma discordância aqui.

      Porém, assim como vc, eu questiono (e já questionei neste blog) a coerência de quem eventualmente defenda o direito de gerações futuras ao mesmo tempo em que nega direitos a um indivíduo que já está sendo gerado.

      Agora, se aceitarmos um conceito prático de "pessoa", teremos que distinguir ainda entre o problema relativo aos supostos direitos de um organismo que, SE completar seu desenvolvimento como esperado, virá a ter as capacidades que o qualificam como pessoa, e o problema diferente de um organismo ao qual faltam absolutamente as condições fisiológicas para que ele, um dia, possa vir a desenvolver as capacidades em questão. Receio que, se atribuirmos algum direito ao último organismo, na verdade, teremos que aceitar um conceito biológico ou naturalista de "pessoa", que, inclusive, permitiria a inclusão de animais brutos em sua esfera, renegando, em última instância, tanto a suficiência quanto à necessidade de capacidades práticas para a definição do conceito.

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