terça-feira, 24 de abril de 2012

Amor, dever e caridade



Posso me arriscar a uma definição sem nem saber se ela já está batida e devidamente criticada? Amor é o sentimento pelo qual você toma o bem-estar do outro como condição necessária do seu próprio bem-estar. Em outras palavras, você não consegue se sentir bem se o ser amado se sente mal. Por isso, por vezes, o amor nos leva a sacrifícios. Sofremos no lugar do ser amado, porque o sofrimento que sentiríamos ao presenciarmos o sofrimento dele seria maior do que aquele que aceitamos sentir no lugar dele.

Com isso, a dinâmica do amor altruísta cabe perfeitamente na dinâmica do egoísmo ou do amor-próprio. Consequentemente, não se pode também dizer, sem melhor qualificação, que quem ama, por vezes, perde o amor-próprio. O que acontece no caso desses apaixonados que amam sem medida é justamente que o amor-próprio, na forma da busca da satisfação imediata, é colocado acima de qualquer limite que poderia ser imposto pelo auto-respeito, assim como das ponderações sobre o bem-estar a longo prazo, mais ou menos como ocorre com os dependentes químicos, de quem também dizemos que perderam o amor-próprio.

Mas este último parágrafo foi mais uma digressão do que qualquer outra coisa. O que eu quero considerar - e, desta vez, não enganei vocês com o título - é a relação entre amor, dever e caridade. Em suma, será que existe dever moral de caridade ou só podemos ajudar alguém por cálculo estratégico ou amor? Que ajudamos pessoas por cálculo estratégico é tão evidente que só o maior dos hipócritas ousaria negar. Certamente, também ajudamos a quem amamos porque os amamos, sendo que existem vários graus de amor e, portanto, vários graus daquele sacrifício que nos dispomos a fazer por amor. Agora, esse altruísmo fundado no amor é algo que nossa sociedade tende a considerar elogíavel, digno de mérito. Por essa razão, as coisas se complicam, afinal, posso perguntar: tenho eu o dever de amar, visto que isso parece até me ser cobrado em alguma medida?

Naturalmente, a resposta tem que ser "não". Um dever deve implicar um poder, de tal forma que a ausência do poder também anula o dever. Assim sendo, como não posso escolher amar, não posso ter o dever de amar. Jesus Cristo, portanto, teria que se explicar melhor com aquela história de colocar o amor na forma de mandamento. Mas, então, na ausência do amor, ainda tenho ao menos o dever de ajudar alguém? Você aí tem o dever de mandar o dinheiro da balada de sábado para as criancinhas famintas da África a quem você nunca viu na vida? OK, você pode me responder dizendo que essa pergunta é tola, pois, como boa kantiana, eu deveria saber que o dever de caridade não especifica ações, mas apenas máximas gerais. Porém, meu ponto é: eu tenho mesmo o dever de adotar uma máxima segundo a qual eu consideraria os fins de outros em meus próprios fins, ou isso simplesmente seria o efeito necessário do tal do amor?

Claro que Kant pensava que a primeira alternativa era a correta. Mas ele nunca me convenceu. Eu poderia adotar como máxima ajudar apenas aqueles que amo ou que poderiam ser úteis a mim de alguma maneira e meu querer seria perfeitamente consistente do ponto de vista racional, não seria? Creio que seria. Mas eu não creio que Kant consideraria essa máxima como um dever, já que ela inclui móbeis empíricos. Enfim, deixemos o Kant para lá ou isto fica parecendo um texto técnico.

O que me parece é que nós tendemos a rejeitar moralmente a máxima que formulei no parágrafo acima, apenas porque somos todos cristãos. Como falei em outro post, é típico do cristianismo ver a humanidade como uma irmandade unida pelo amor que a todos engloba. Portanto, seria moralmente reprovável, do ponto de vista da ética cristã, uma máxima que pressupusesse uma divisão entre os que eu amo e os que eu não amo, estabelecendo um tratamento diferente para cada grupo. Agora, sem o cristianismo, sinto muito, mas não somos todos irmãos. Por mais que tenhamos nos originado do mesmo casal de macacos há sei lá quantos milhares de anos, isso, de jeito nenhum, implica que sejamos irmãos. Irmãos são filhos do mesmo pai (ou Pai) e da mesma mãe. Na verdade, essa nossa relação não cairia nem sob o nosso conceito usual de primos distantes

Agora, se alguém conseguir me explicar por que eu tenho o dever de me importar com outros descendentes dos mesmos macacos longínquos, ficarei eternamente grata pela caridade.

3 comentários:

  1. Se o amor "é o sentimento pelo qual você toma o bem-estar do outro como condição necessária do seu próprio bem-estar", não vejo pq não possa ser escolhido, a não ser que tomes sentimento como algo que nos afeta sem controle algum sobre ele. Mas, se me permite a parca colocação, estaríamos colocando os ditos sentimentos no mesmo grupo que os instintos; me soaria estranho. O que achas?

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    1. Marco, não consigo copiar a resposta que escrevi no bloco de notas. Amanhã, tento de outro computador. Bjs

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    2. Bom dia, Marco! Obrigada pelo comentário :-) Acho que, agora, minha resposta vai. Bom, eu não disponho de uma boa definição de "instinto" ou "sentimento", mas eu creio que, como vc, eu concederia que temos maior controle sobre a ocorrência de sentimentos do que sobre a ocorrência de instintos (sobre os quais, na verdade, não teríamos controle algum). Os sentimentos estariam assim em um grupo de inclinações que, embora dependam de tendências naturais, poderiam ter sua ocorrência estimulada ou não. Por exemplo, eu posso decidir que o ódio tem uma influência negativa sobre minha própria vida de tal maneira que eu passe a tentar me condicionar no sentido de extirpar esse sentimento de mim gradativamente. Nós também podemos, por exemplo, determinar os nossos pensamentos de tal forma a sermos mais positivos e, consequentemente, nos sentirmos melhor perante à vida. Mas tudo isso é um trabalho de longo prazo sobre o caráter, não um poder de escolha direto que poderia significar uma decisão de parar de sentir ou começar a sentir algo da mesma maneira em que digo que posso decidir me sentar em uma cadeira ou não. Então, talvez, seja nesse sentido que Jesus Cristo deveria ter explicado melhor seu mandamento ;-)

      Agora, há um segundo ponto, admitindo que tenhamos razão e, a longo prazo, possamos nos auto-determinar a amar mais, isso significa q podemos chegar a conseguir amar a todos ou a qualquer um? Uma vez, eu saí com um rapaz q era meio hippie e me disse q amava todo mundo. Eu sempre me lembro dele, pq ele realmente parecia ter uma alma boa o bastante para isso, mas eu sempre penso nele como um caso exótico ou mesmo incrível. Será q alguém consegue mesmo, em alguma medida, chegar a amar todo mundo? (como ele era americano, eu perguntei se ele amava o Bush hehehe) Não sei, mas, em todo caso, há um terceiro ponto mais importante: se fosse possível estendermos nosso amor até onde quiséssemos, nós teríamos o dever de amar a todos?

      Quer me parecer que o amor é muito desejável para nossa felicidade, mas não acho que seja um dever moral. Se uma pessoa decidir que prefere ser mais indiferente para sofrer menos, já que o indiferente não tem seu bem-estar afetado pelo bem-estar alheio, eu não vejo por que diríamos q essa pessoa é moralmente reprovável. Eu penso q nossas obrigações para com os outros são meramente negativas: não provocar dano. Não vejo por que seriam tb positivas: gerar benefícios. Certamente, o fato de descendermos todos do mesmo casal de macacos, supondo q seja mesmo um fato, não gera nenhum dever entre nós. Não existe nenhuma conexão entre as nossas existências q possa gerar uma responsabilidade mútua de uma para com a outra (como há da mãe para o filho), então eu realmente não vejo um fundamento para deveres de caridade e realmente agradeço se alguém me explicar qual é hehe

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