sábado, 28 de julho de 2012

Direito de ofender


Será que, em alguma medida, seria razoável defendermos um direito de ofendermos alguém? Em sentido amplo, quando tomamos o verbo "ofender" como sinônimo de "lesar" ou, em geral, "ferir", eu diria que não, afinal, nesse sentido, defendermos um direito à ofensa seria defendermos um direito ao início de violência, o que não me parece possível sob nenhum ponto de vista normativo. Mas e quando restringimos o sentido de "ofender" ao ato de causar uma mágoa interna, um sentimento de dor moral, e não uma lesão corporal a alguém? O dicionário Oxford, por exemplo, diz que "ofensa" é uma perturbação ou um ressentimento provocado pela percepção de um insulto ou desconsideração com relação a uma pessoa ou a seus valores ou princípios. Ora, neste caso, quer me parecer que, embora ainda soe contra-intuitivo defendermos um direito à ofensa, a questão já não seria mais tão simples assim.

Em primeiro lugar, convém ressaltarmos um ponto que a definição do bom dicionário citado acima (que também é o único que veio instalado no meu computador) não deixou escapar: a ofensa, nesse sentido mais estrito, depende da percepção do ofendido. Eu diria que depende do modo como o ofendido interpreta o fato em si, bem como de sua personalidade de um modo geral. Em outras palavras, você não tem o poder de magoar ninguém por conta própria. Ou ainda, nunca se pode dizer que a causa de uma mágoa interna (insisto na qualificação "interna", porque os portugueses, diferentemente dos brasileiros, usam a palavra "mágoa" para falarem também em danos corporais) esteja completa no fato externo. Isso complica tudo na hora de falarmos em um dever de não ofendermos! Como eu posso ter o dever de não ofender alguém se cabe ao ofendido tomar ou não um fato como ofensa, isto é, se cabe à interpretação e, mais amplamente, à personalidade do ofendido se ele vai magoar-se ou não?

Neste ponto do debate, para que se possa tipificar uma ofensa como tal, apela-se a conceitos metafísicos tais como o de "dignidade da pessoa humana". Mas o conceito de "pessoa humana", justamente, varia de acordo com o sistema de valores de cada um. Hoje em dia, inclusive, o conceito de "pessoa" tem sido ampliado para inclusão de "pessoas caninas e felinas". Enquanto isso, para alguém com um sistema de valores mais tradicional, a pessoa humana é dotada de uma alma criada por Deus à sua imagem e semelhança, de tal forma que ela pode então ser profundamente ofendida se dissermos que ela não possui alma ou que não existe seu Deus. É assim que a definição do dicionário citada acima também é certeira ao envolver os valores e princípios do ofendido.

Muito bem, na minha opinião, um Estado laico não pode se envolver em questões metafísicas e legislar no sentido de determinar o que seria, objetivamente, a tão edificante noção de "pessoa humana". Penso que o Estado deva ter em vista uma noção muito minimalista de agentes capazes de calcular o custo e o benefício de seus atos, agindo de acordo com esse cálculo, o que não é o caso dos animais brutos.  Ademais, o Estado deveria ter em vista apenas as relações externas entre esses arbítrios calculantes. Simplesmente, é empiricamente constatável se você impede ou não a realização de um fim não-violento proposto por minha capacidade de calcular meu custo/benefício. E é só disso que deve tratar o Estado, que, afinal, deve legislar sobre ateus, judeus, católicos, muçulmanos, seguidores do Peter Singer... sem ter a pretensão de transformar um grupo em outro pela imposição dos valores de um grupo a outro.

Basicamente, estou defendendo aqui uma separação entre ética e direito, cujo conceito minimalista de direito exclui do âmbito jurídico qualquer conceito de ofensa moral que não possa ser plenamente reduzido a danos materiais. Com isso, permanece, por exemplo, a desaprovação jurídica a atos como calúnia e difamação, que podem ser comprovados como fraudes com consequências prejudiciais às relações econômicas da vítima com o restante da sociedade. Ilustrando a tese, digo que uma coisa é espalharmos, sem fundamentos, por exemplo, que nosso vizinho é mau pagador e acabarmos, por isso, atrapalhando sua intenção de alugar uma casa. Mas outra coisa, bem diferente, seria rirmos de um traseiro gordo no Facebook ou reprovarmos a orientação sexual de alguém. Com os últimos casos, de acordo com o que defendo aqui, não se pode lidar juridicamente, porque se trata de danos meramente subjetivos. A professora indenizada em milhares de reais, porque debocharam do traseiro dela, salvo engano, foi apenas magoada em seus sentimentos. Em tese ao menos, ela não perderia o emprego, por exemplo, se o diretor da escola viesse a concordar que o traseiro dela teria mesmo este ou aquele atributo. Portanto, o suposto dano sofrido foi meramente subjetivo e poderia mesmo não ter ocorrido em outra pessoa na mesma situação.

Quando lidamos juridicamente com casos subjetivos do tipo, na verdade, nós subvertermos o que, a meu ver, caracteriza o fim do direito: a preservação da liberdade meramente externa daqueles arbítrios calculantes mencionados acima. Uma vez que qualquer ato meu pode ser tipificado como ofensivo, dependendo da interpretação que se escolha dar a ele, eu poderia vir a ser arbitrariamente impedida de praticar qualquer ação. É exatamente essa redução da liberdade individual que vem sendo observada com o sucesso do politicamente correto. Um agente faz um comentário inocente. Então, um grupo social escolhe interpretar esse comentário de acordo com uma história e um sistema de valores que podem ser não apenas alheios, mas até mesmo completamente desconhecidos para o agente. Pronto, cobra-se uma punição estatal contra o agente.

Agora, antes de terminar o texto, vale dizer que, ao afirmar que o Estado não deve lidar com questões subjetivas ou com a tal "dignidade da pessoa humana" (seja lá o que você entenda por "pessoa"), não digo que não haja outros meios para lidarmos com danos subjetivos. Certamente, uma comunidade pode convencionar que é razoável, por exemplo, que alguém sofra internamente quando exposto a determinadas situações, como é o caso do deboche público de partes do corpo alheio. Assim, essa comunidade pode punir socialmente os indivíduos que praticam tal comportamento. A bem da verdade, o verdadeiro desprezo social, o completo isolamento do indivíduo, pareceria bem mais eficiente nesses casos do que o pagamento de indenizações materiais. Porém, uma sociedade que começa a lidar juridicamente com questões éticas do tipo já perdeu qualquer capacidade de lidar comunitariamente com valores. Esse, sim, em minha opinião, é o verdadeiro problema.


10 comentários:

  1. Talvez não tenha entendido direito...
    A senhora não nega que foi um avanço o Estado ter tomado a si o direito de punir o assassino, dando fim a vendetta? Então, fica complicado excluir a "tortura mental" sofrida pela senhora do ônibus americano.
    Sua proposta de que o assunto seja resolvido pela comunidade é muito vaga e sujeita a mil injunções.
    No caso da senhora a comunidade são os pais dos sádicos, ou os diretores do colégio, que estão sob a influência econômica dos pais dos garotos. Bom, já vimos onde isso tudo irá dar.
    O próprio Estado, muito mais impessoal e distante da sua comunidade, não está livre de pressões...
    Acho que a senhora do ônibus deveria mesmo usar o aparelho do Estado para ganhar bom dinheiros as custas dos pequenos sádicos.
    Que o Estado não é perfeito, sabemos dolorosamente todos, mas é mais "impessoal" e "imparcial" do que a sua comunidade, liga menos para se você é gordo, feio, não tem cultura, não conhece a carta de vinhos, etc.
    É o famoso problema do esprit de corps... As queridas mamães dos levados petizes viram naquela barbárie toda nada mais que uma pequena e inofensiva molecagem... ("Junior, você fica proibido de tomar o segundo milk shake").
    E tem mais: quando a comunidade não resolve, a tradição americana recorre a bala...
    Bom, a Senhora está de volta... Visitou algum museu de Tarô? Meu gato (acho que tem alma!) lhe manda lembrança (esta dormindo nos teclados, atrapalhando tudo).
    At.
    Cláudio.

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    1. Desculpe, eu não entendi bem seu ponto. O meu é que, quando o dodói é interno, não externo, o Estado não deve se intrometer. Os indivíduos podem praticar protestos e, sobretudo, a exclusão social do ofensor em casos assim. Nada mais.

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  5. Eu preciso pedir desculpas pela superficialidade da minha resposta, porque, como mostra o fato do blog estar sem atualização, eu realmente não tenho tido tempo para ele. Farei então apenas alguns comentários.

    Apresentam-se basicamente dois argumentos contra minha tese.

    1) Existiria uma relação entre a ofensa moral e o prejuízo físico. Observo que isso costuma ser alegado por aqueles que alegam que a condenação moral do homossexualismo seria a causa das agressões aos homossexuais, de modo que a primeira deveria ser proibida para q que a última não ocorresse. Eu identifico essa linha de argumentação em passagens como esta:

    "Será que estamos dispostos a isso, sabendo que a insensibilidade à dor alheia já deu provas do mal que pode causar, tendo pavimentado o caminho que levou milhares de pessoas a Auschwitz?"

    Ora, entre à insensibilidade à dor alheia e Auschwitz vai uma distância monumental. Auschwitz é um dos exemplos históricos mais claros de violação da liberdade externa e do corpo do outro. Agora, não existe nenhuma relação necessária entre o discurso que magoa e o ato que fere. É perfeitamente possível (e empiricamente constatável) que alguém esteja disposto ao primeiro sem estar propenso ao último. Por isso, não faz sentido proibir o discurso para que não haja o ato. Inclusive, não existe nem sequer implicação necessária entre uma mágoa sofrida e o suicídio do afetado. Se uma ofensa fosse causa suficiente ou direta de um suicídio, todo ofendido se mataria. O suicídio é um ato do magoado que não pode ser imputado àquele que lhe magoou, porque depende de toda a estrutura de sua personalidade e de outros fatores contextuais. Alguns indivíduos são simplesmente muito fracos para a vida em sociedade, que implica em conflitos. Esses indivíduos precisam de tratamento médico/psiquiátrico. Neste sentido, eu vejo até como algo salutar para a criança que ela seja exposta a ofensas dos seus iguais desde cedo. Ela será um adulto fraco se não passar por isso. Só há problema quando ela passa a ser fisicamente coagida e ameaçada.

    Em suma, eu diria que não se pode comparar aquele que faz piada com o judaísmo ou mesmo aquele que escreve o que Kant escreveu sobre os judeus (o que pode, perfeitamente, causar dor emocional a um judeu), por exemplo, a um proto-carrasco nazista, assim como não se pode estabelecer uma relação de implicação entre Kant ter escrito o que escreveu e Hitler ter feito o que fez, de modo que Kant deveria ter sido censurado para que Hitler nunca tivesse existido. Isso não tem o menor cabimento! Parece-me muito mais retórica do que qualquer outra coisa.
    (continua)

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  6. 2) O segundo argumento se baseia em uma suposta distinção entre o q tomei como critérios subjetivos para interpretação da ofensa e critérios sociais.

    "Aqui não estamos falando de meras suscetibilidades, que seriam facilmente reconhecidas como tais em uma interpretação pública. Por exemplo, dizer a alguém, que é teísta, que “Deus não existe”, é público e notório que não configuraria ofensa. Isso que dizer apenas que, numa interpretação pública, em um estado não-teocrático, as pessoas não considerariam isso como uma ofensa"

    O apelo ao social não muda em absolutamente nada o caráter subjetivo da interpretação. Trata-se apenas de uma subjetividade compartilhada, assim por dizer. O senso comum, por ser comum, não deixa de ser arbitrário e contingente, variável conforme a época e o lugar. Tanto é assim q, fora do mundo ocidental, um simples vídeo no youtube ofendendo um profeta leva a um sentimento de ofensa tão grande q se julgam no direito de matar para reparar tal ofensa, o que prova empiricamente o que eu disse sobre alguém poder se ofender com a asserção de que Deus não existe.

    Agora, qual é o critério objetivo do que uma cultura deve considerar ofensivo, ou não? Duas culturas podem perfeitamente se opor no que é considerado ofensivo. O Estado só poderia interferir se existisse tal critério objetivo. Eu sustento, contra Chauí, que a única violência que pode ser definida objetiva e racionalmente é a violência física. Só ela é constatável empiricamente como tal, independentemente de interpretações desta ou daquela cultura (ou deste ou daquele sujeito, o que dá absolutamente no mesmo).

    Na verdade, há ainda que ser salientado que um Estado moderno ocidental nem sequer tem à sua disposição um senso comum, no sentido de um conjunto de valores partilhado por todos os cidadãos, a ser utilizado para pautar suas definições jurídicas de ofensa moral. Simplesmente não há o tal "mundo comum". O Estado islâmico, sim, pode se valer de algo do tipo. Mas não uma democracia ocidental. O que há nas democracias ocidentais é um forte poder político de minorias organizadas que conseguem impor uma plataforma politicamente correta sobre a maioria desorganizada. Nos EUA, por exemplo, movimentos ligados aos negros e aos nativos norte-americanos fazem exigências absurdas contra a liberdade de expressão, porque, basicamente, se sentem ofendidos por tudo q saia da boca de quem não pertence a esses grupos. Muitas vezes, esses grupos têm sucesso em seus pleitos. Não quer dizer que a sociedade como um todo, ou mesmo em sua parcela majoritária, aceite a validade desses pleitos. Eu mesma nem sequer percebo o motivo da alegada ofensa antes de saber do pleito e mal acredito que alguém poderia ser tão suscetível depois de saber do pleito.

    Então, para finalizar, eu insistiria nisto: apresentem-me um critério verdadeiramente objetivo do que deve contar como uma ofensa moral. Do contrário, vão ficar insistindo em implicações inválidas entre ofensas morais e prejuízos físicos, onde o elo é meramente acidental.

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  7. Olá Andrea, (Parte I)
    Permita-me fazer, respeitosamente, algumas observações ao seu texto.
    Bom, como você mesmo disse, a definição de ofensa que você elege como ponto de partida de suas reflexões “complica tudo na hora de falarmos em um dever de não ofendermos”, justamente porque ela atrela o ato da ofensa à percepção subjetiva da ofensa. Embora essa seja uma definição possível, não é, a meu ver, a mais adequada para o tratamento da questão. “Ofender” é, gramaticalmente falando, um verbo que indica ação (como você mesmo enfatiza, ao falar do “ato de causar uma mágoa...”), de modo que nomeia, antes de tudo, um ato, não uma percepção. Como tal (como ato), ela pode ser objetivamente percebida e tipificada, independentemente da percepção de quem recebe a ação. Que alguém ofendido não tome o ato como uma ofensa - seja indiferente a ela ou mesmo, por magnanimidade ou religiosidade, perdoe quem o ofendeu - não é razão suficiente para dizer que a ofensa simplesmente não existiu, dado que o ato sempre pode ser objetivamente identificado por outrem, segundo uma interpretação pública (não particular), seja baseada em uma determinada concepção moral (a cristã, por exemplo), em tradições, em princípios legais (como os constitucionais), ou em quaisquer crenças compartilhadas ou “ideias intuitivas básicas”, para usar uma expressão de Rawls. Não é preciso apelar para Heidegger (embora o faça aqui por razões óbvias) para reconhecermos que o nosso “mundo” cotidiano é, sobretudo, uma rede de significações compartilhadas, um “mundo” de interpretações públicas, onde o efetivo é o que é percebido e interpretado enquanto tal, no horizonte de sentido vigente nesse “mundo”. Interessante ter lido recentemente em um artigo que, para Hanna Arendt - visivelmente inspirada em Heidegger, e cujas reflexões incidem, sabidamente, sobre questões políticas - só no “mundo comum” (quer dizer, não no mundo privado, restrito à subjetividade de cada um, mas no mundo “público”), pode-se ter “experiência significativa com a realidade” e só a partir dele podemos se pode assegurar a “objetividade” dos nossos pontos de vista. O que é ofender (e o que não é), portanto, tem a sua significação real delimitada no interior de um “mundo” de significações compartilhadas, antes que na percepção subjetiva individual. Veja que aqui não há nenhum apelo a “conceitos metafísicos”...
    [continua...] Luciano Campos dos Santos

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  8. (Parte II)
    Via de regra, a ofensa é percebida enquanto tal pelo ofendido, e, nesse caso, tem-se não uma “ofensa subjetiva”, mas uma ofensa objetiva, cujos danos reais psicológicos (que não são simples “mágoas” - pense-se nas vítimas de “bullying”, lembradas pelo comentarista anterior...) podem ser muito mais desastrosos que os danos físicos (podem, literalmente, levar à morte – pense-se, p. ex., no caso de graves depressões). Aqui não estamos falando de meras suscetibilidades, que seriam facilmente reconhecidas como tais em uma interpretação pública. Por exemplo, dizer a alguém, que é teísta, que “Deus não existe”, é público e notório que não configuraria ofensa. Isso que dizer apenas que, numa interpretação pública, em um estado não-teocrático, as pessoas não considerariam isso como uma ofensa (acho que nem mesmo o teísta, a não ser por mera suscetibilidade e melindre). Algo bem diferente, por outro lado, é o racismo, que a nossa sociedade (e, felizmente, o Estado) não tolera e considera algo objetivamente ofensivo, mesmo que o ofendido, por qualquer que seja a razão, não se incomode com o ato. A indignação das pessoas em geral, diante de um ato racista, é a manifestação de uma interpretação pública daquele ato como uma ofensa real (as pessoas percebem que houve uma ofensa, sem ter sido elas mesmas ofendidas). Assim sendo, o racismo, por exemplo, não seria uma mera “ofensa subjetiva” e nem seria o caso de dizer que “qualquer ato meu pode ser tipificado como ofensivo, dependendo da interpretação que se escolha dar a ele”...
    Penso também que tomar a violência unicamente como ofensa física seja um reducionismo. Nesse sentido, acho que a Marilena Chauí acerta ao definir a violência de modo mais amplo e incluir nesse conceito: “todo ato de violação da natureza de alguém ou de alguma coisa valorizada positivamente por uma sociedade (é violar); todo ato de transgressão contra aquelas coisas e ações que alguém ou uma sociedade define como justas e como um direito; consequentemente, violência é um ato de brutalidade, sevícia e abuso físico e/ou psíquico contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão, intimidação, pelo medo e pelo terror”. Pelo menos a ideia de violência psicológica aí contemplada vai ao encontro da tipologia da violência adotada pela OMS (Cf: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232006000500007). Se tomarmos essa definição como correta, será forçoso dizer que você não aceita o “início de violência” física, mas aceita a violência nesses outros sentidos. Mas não é função do Estado conter a violência em geral e a “guerra de todos contra todos”? Ademais, não deve o Estado se preocupar com a violência psicológica, dado que ela também compõe o quadro de “um problema global de saúde pública”, conforme aponta o artigo do link acima?
    Se o exposto até aqui é correto, ou pelo menos plausível, a sua pergunta permanece válida, mas não os pressupostos a partir dos quais você traveja a questão. Isto é, pode-se, naturalmente, perguntar se o Estado deve ou não estabelecer leis contra certas formas de ofensa (aqui acrescento: interpretadas socialmente – tácita ou explicitamente - como tais). Além disso, está longe de ser uma certeza apodítica que “o fim do direito [é] a preservação da liberdade meramente externa daqueles arbítrios calculantes” (algo que soa especificamente hobbesiano), e que a “liberdade individual”, tal como você a entende, deve estar acima de qualquer coisa. Acho complicado pensar, atualmente, uma teoria filosófica do Direito, desvinculada de uma teoria da Justiça, e o Direito separado da Ética, como é a sua proposta.
    [continua...] Luciano Campos dos Santos

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  9. (Parte III)
    Penso que o Estado efetivamente já trabalha com “uma noção muito minimalista de agentes capazes de calcular o custo e o benefício de seus atos”, e o conceito jurídico de imputabilidade traduz justamente aquela noção. Disso não decorre, entretanto, que o Estado “deveria ter em vista apenas as relações externas entre esses arbítrios calculante”. Além disso, trata-se de perguntarmos: em que sociedade nós todos queremos viver e se podemos contar apenas com a dinâmica das ações (ofensas) e reações (censuras meramente sociais) dos indivíduos supostamente calculadores (agentes supostamente sempre racionais) para que possamos, ainda que muito parcialmente, efetivá-la? Que razão teria uma pessoa para censurar alguém que ofendeu um outro “internamente” (qualquer que seja o conteúdo da ofensa real) se ela também quer ter assegurado o seu direito a ofender, e uma censura ao outro seria, em última análise, uma censura a si mesma, de modo que, ao fim e ao cabo, ninguém censuraria ninguém por nada? Assim sendo, não parece que a tolerância às “ofensas internas” - potencialmente infinitas em conteúdos, intensidades e formas - que seria condição para o asseguramento da “liberdade individual”, não nos conduziria ao paroxismo da insensibilidade? Será que estamos dispostos a isso, sabendo que a insensibilidade à dor alheia já deu provas do mal que pode causar, tendo pavimentado o caminho que levou milhares de pessoas a Auschwitz? Ou teria sido exagero de Adorno afirmar que “se as pessoas não fossem profundamente indiferentes em relação ao que acontece com todas as outras, excetuando o punhado com que mantêm vínculos estreitos e possivelmente por intermédio de alguns interesses concretos, então Auschwitz não teria sido possível”? Note que não se trata absolutamente de “imposição de valores de um grupo a outro”. Adorno, como ele diz enfaticamente, não está pregando valores cristãos, como o amor próximo etc. Um ateu confesso como Rorty, também fala de sensibilidade ao sofrimento alheio, solidariedade, extirpação da crueldade, etc, tendo em vista uma melhor convivência entre as pessoas, de um ponto de vista meramente político-pragmático...

    Concordo com você quando diz que “uma sociedade que começa a lidar juridicamente com questões éticas do tipo já perdeu qualquer capacidade de lidar comunitariamente com valores”. E é justamente por isso, porque uma postura eticamente aceitável em relação aos outros está longe ser uma característica geral (“comunitária”), e ainda pensando nas funções pedagógicas das boas leis, que acredito que o Estado deve, não “se envolver em questões metafísicas” e “determinar o que seria pessoa humana”, mas sim reverberar, em termos de legislação, um senso comum de justiça, que extrapola as noções político-formais de igualdade e democracia para o âmbito das relações sociais, intersubjetivas. E isso nada tem a ver com questões religiosas ou metafísicas, mas políticas e pragmáticas.

    Luciano Campos dos Santos

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