sábado, 25 de agosto de 2012

Conhecimento e interesse ou a diferença entre um cientista e uma testemunha


Já faz tempo que eu li um artigo em que o autor defendia basicamente que, se repórteres de jornais são proibidos terminantemente de aceitar dinheiro de qualquer setor econômico ou organização sobre o qual escrevam matérias (isso nos EUA, imagino, não sei se se aplica ao Brasil), o mesmo deveria se aplicar ao meio acadêmico. Em suma, segundo a tese, o cientista cuja pesquisa seja financiada por uma organização interessada nos resultados da mesma teria um conflito de interesses. No mesmo espírito, outro dia, me lembrei da minha vontade de abordar o tema aqui no blog quando um jornalista disse que deveríamos tomar os resultados de uma pesquisa sobre os benefícios do cacau com um "grain of salt", porque a pesquisa fora financiada por fábricas de chocolate.

Ora, este tipo de comparação entre a atividade do cientista e aquela do jornalista me parece distorcer profundamente o que é próprio do ofício do primeiro. Vejamos. Um jornalista é enviado para fazer uma matéria acerca das condições de trabalho em uma fábrica na China. Para tanto, ele será o primeiro a receber acesso irrestrito às instalações da fábrica. Então, a mesma fábrica paga pela matéria. Você acreditará na matéria? Não parece razoável defendermos a credibilidade dessa matéria nessas circunstâncias, porque se espera do jornalista que ele faça um relato do que teve a oportunidade de observar com exclusividade. Por mais que ele possa documentar a experiência em fotos e vídeos, não haverá outra equipe que não a dele próprio presente, de forma que ele escolherá o que registrar, o que mostrar e como editar. Em outras palavras, a matéria se torna um testemunho do jornalista no qual podemos escolher se vamos nos fiar ou não. Agora, esse modelo de prática é completamente avesso à natureza da atividade científica.

Se me permitem usar de outro exemplo antes de ir ao ponto, em um julgamento, quando o júri é selecionado, defesa e acusação efetuam essa seleção justamente buscando por conflitos de interesse através da aplicação de questionários, por exemplo. Por que isso acontece? Porque o jurado não precisa justificar o seu voto pela condenação ou absolvição do réu. O jurado simplesmente se posiciona frente às evidências. Embora possa haver apelo a uma corte superior, caso o júri tenha seguido todos os procedimentos indicados pelo juiz, não se pode propriamente questionar sua decisão. Como o nome diz, a decisão do júri é o "veredito". É verdade, porque foi dito pelo júri em circunstâncias apropriadas.

No mesmo contexto jurídico, note que o advogado, ao interrogar uma testemunha, pode invalidar seu testemunho perante o júri se deixar claro que ela tem um conflito de interesse, ou seja, que interessa a ela que o réu seja condenado ou simplesmente que seja um fato aquilo que ela alega ter presenciado. Por outro lado, o júri sabe que o advogado, por sua vez, é pago para sustentar o que sustenta, mas, nem por isso, desconsidera seus argumentos. E seria sensato um jurado acusar um advogado de ter um conflito de interesses por receber altos honorários para argumentar em prol das teses que sustenta perante ele? Parece-me óbvio que não. Pois eu digo que o cientista está muito mais para um advogado de tribunal do que para uma testemunha, como era aquele jornalista na fábrica, ou para um jurado.

Em poucas palavras, o cientista precisa argumentar, montar o seu caso perante o júri popular do mundo esclarecido.  Por isso mesmo (desculpe, ANDES), não pode existir ciência sem PUBLICAÇAO. O cientista é como o advogado que sustenta uma tese para que outro a acate ou não. Ele não é e, acima de tudo, não deve ser visto como um jurado com o poder de simplesmente declarar a verdade que temos que acatar como réus. Da mesma forma, ele também não é uma testemunha em quem simplesmente acreditamos e cuja palavra acatamos assim que se mostra que ele não teria razões para mentir. Por que é assim? Porque, em matéria de ciência, não se trata, em absoluto, da sinceridade do cientista. Assim como a crença do advogado na inocência do seu cliente deve ser irrelevante para o júri.

Verdade e sinceridade são pretensões distintas do uso da linguagem. 2 e 2 são 4 ainda que o matemático não acredite nisso. Não nos importa de modo algum saber se o matemático acredita honestamente nos cálculos que faz. Sua crença simplesmente não é parte da demonstração. Já no banco das testemunhas, é preciso jurar sinceridade e é esse o sentido daquele "a verdade e nada mais do que a verdade". Para um testemunho, sim, a sinceridade é o fator chave. A testemunha não tem que argumentar e convencer o júri de nada. Ela só precisa relatar o que viu, ouviu, etc... (ou, melhor dizendo, o que ela acredita ter visto, ouvido...) para que os advogados façam o uso que bem entenderem desse relato contra ou a favor de teses.

Um outro ponto essencial à ciência se revela aqui quando comparamos as testemunhas aos cientistas notando as diferenças entre ambos. A sinceridade da testemunha importa, porque a pessoa está sentada naquele banco da corte por ter informações privilegiadas. Ela, por exemplo, presenciou um assassinato. Trata-se de um fato singular perante o qual a sua posição de observador foi única e não pode vir a ser ocupada por um de nós a posteriori. Já o cientista depende de uma coisinha chamada "reprodutibilidade". É parte integrante da atividade científica que um possa reconstruir os passos do outro e obter os mesmos resultados. É por isso que não há ciência sem método. O método nada mais é do que uma receita para que o outro chegue ao mesmo resultado. É por essa razão que o velho Kant dizia que não há gênios na ciência. Você pode ter feito uma importante descoberta científica, mas ela não será científica se o mais medíocre dos seus colegas não for capaz de confirmá-la seguindo os mesmos procedimentos. Seu colega não vai simplesmente se fiar na veracidade do seu relato quanto ao que se passou no laboratório.

Dito tudo isto, meus amigos, fiquei bem feliz em saber dos benefícios do cacau... Até que se prove o contrário ;)


quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Brasil: um país de analfabetos


De repente, alguns parecem ter acordado para dois fatos: 1) O Brasil pode ter a sexta economia do mundo, mas está longe do desenvolvimento, porque os resultados de seu sistema educacional não está nem entre os 50 melhores do mundo, sendo que não se industrializa um país de analfabetos funcionais; 2) O Brasil pode encher a boca para dizer que empresta o "B" para os BRICS, porém, não é páreo para China, Rússia e Índia em termos de crescimento econômico, sendo que ao menos China e Índia parecem ter tomado a dianteira no que se refere à educação, o que sugere que essas, sim, são as potências de amanhã.

Feito o diagnóstico, todo mundo tem sua solução: cortar disciplinas do ensino médio (etapa onde a desgraça é completa), fundir disciplinas, encher as escolas de pedagogos, destinar 10% do PIB para educação, etc... Pois, a mim, o problema da educação no Brasil parece ser muito mais cultural. Até por isso, eu me torno cada vez mais pessimista. Enquanto discutem como a escola poderia concorrer com o shopping center e o vídeo-game pelo interesse dos jovens, eu me pergunto por que deveria.

É verdade que as escolas são péssimas, mas falta ao brasileiro médio, da classe média, a noção de que estudar implica em se auto-impor sacrifícios pessoais no que diz respeito a suas inclinações mais imediatas em nome de benefícios futuros. Em outras palavras, quantos jovens vocês conhecem que passam madrugadas e finais de semana estudando? Eu só os conheço justamente nos cursos de ponta das boas universidades ou nos cursos preparatórios para o ingresso neles. De resto, pensamos o momento do estudo como aquele momento em sala de aula em que o professor deve entreter o aluno para que ele aprenda se divertindo. Distribuem iPads para jovens que jamais topariam meter a cara nos livros na hora da balada. Eis, por sinal, a síntese do problema e também do fracasso das soluções.

domingo, 12 de agosto de 2012

O erro é tratarmos de modo igual os desiguais





Volto ao tema da greve dos professores universitários federais. Desta vez, o que chama minha atenção é um certo consenso no discurso que a condena. Em poucas palavras, podemos dizer que os professores são acusados de "chorarem de barriga cheia", como se fala popularmente. A todo momento, somos bombardeados com observações sarcásticas que inflacionam o salário médio dos professores universitários federais e debocham de sua insatisfação. Com isso, todos nos perguntamos: o professor universitário federal ganha bem ou ganha mal?

Naturalmente, para respondermos a essa pergunta, o mais natural seria investigarmos quanto ganha um professor universitário no setor privado. Contudo, como já comentei em outra postagem deste blog, o Estado exerce tão forte influência e controle sobre o "mercado" de trabalho do professor, com tantas universidades públicas de grande porte espalhadas pelo país, por exemplo, que fica difícil saber o quanto um professor universitário receberia no Brasil tivéssemos uma economia de livre mercado.

Podemos pensar então em compararmos o salário de um professor universitário com o salário médio de um servidor público federal em geral. O problema, neste caso, é que, ao contrário do que ocorre com o servidor médio, exige-se do professor universitário uma formação de excelência, que implica em cerca de 10 anos de formação só em nível universitário. Ora, se o professor universitário não receber remuneração proporcional à formação que se lhe exige, naturalmente, os outros cargos tornar-se-ão mais atraentes por implicarem em um investimento menor em formação.

Assim, chegamos a um impasse: sabemos que o professor universitário deve ganhar o bastante para que alguém se motive a investir tanto na própria formação a fim de ocupar a função, mas como podemos fixar o valor de um salário quando não há valor de mercado no qual nos basearmos?

O conjunto de circunstâncias me faz pensar que a definição do salário do professor, bem como de qualquer outro profissional cuja profissão seja monopolizada pelo Estado, recai sobre uma mera disputa de força entre governo e sindicatos. Nesta disputa, o governo tem a vantagem retórica de poder comparar o salário dos professores ao salário médio nacional do setor privado, comparando alhos com bugalhos e jogando a população contra os professores, como se eles fossem os únicos ou mesmo os maiores responsáveis pela estatização de sua profissão, ou como se eles pudessem simplesmente mudar de emprego sem mudar de profissão e abandonar a carreira.

Como resolver o impasse? Claro que, de acordo com minhas convicções, o ideal seria a privatização das universidades e a total desregulamentação do setor. Aí, sim, todos os salários seriam justos, porque seriam o pagamento resultante de contratos livremente negociados em uma economia de mercado, do que nunca se pode reclamar com razão. Todavia, como eu sempre gosto de lembrar, essa solução não está no horizonte nem de governo nem de sindicalistas. Logo, precisamos ao menos de um paliativo.

No caso, quer me parecer que o melhor tapa buracos para a situação seria permitirmos ao menos um arremedo da livre negociação de contratos individuais: critérios produtivistas (e, portanto, discriminadores) de remuneração.

Quando uma universidade contrata um professor, ela tem em vista uma função para ele. Na verdade, são basicamente três funções: pesquisa, ensino e extenção. Pois bem, que cada professor seja remunerado de acordo com o grau de excelência de sua produtividade nesse tripé que sustenta uma universidade.

Suponha que duas pessoas sejam contratadas para plantarem batatas. Se uma delas produz mais e melhores batatas, é razoável que ela o faça em virtude da expectativa de alguma distinção com relação ao que produz menos batatas ou piores batatas. A bem da verdade, se o contratante confere o mesmo tratamento e reconhecimento a todos os contratados, desconsiderando o desempenho de cada um, é natural que a produção de todos seja nivelada por baixo. Quem produziria mais se a perspectiva é de recompensa igual?

Respondendo à pergunta do parágrafo acima: o professor que ama o que faz produz mais do que aquele que faz somente pela recompensa. Contudo, como poucos trabalham por amor, o resultado é que muitos trabalham menos do que deveriam e poderiam se fossem devidamente motivados por ganhos financeiros proporcionais à sua produtividade.

Em suma, não me parece que a discussão mais relevante seja: quanto deve ganhar um professor universitário? Mas, sim: quais devem ser as diferenças salariais entre os professores universitários de modo que eles sejam motivados a uma produtividade cada vez maior? Por sinal, eu iria além e defenderia a vinculação entre produtividade e estabilidade, de tal forma que professores não poderiam escolher a completa estagnação, como alguns escolhem mesmo que isso implique a abdicação de maiores ganhos financeiros.

Com um plano de carreira fortemente pautado por cobranças de produtividade, ainda que os professores se julgassem mal remunerados, dificilmente seria tão fácil para o governo retratá-los como uma classe privilegiada perante o restante da população. O que estaria em jogo, no fundo, não seria nem mais uma classe, mas os indivíduos que a compõe. Há que se tratar de modo desigual os desiguais. O mercado saberia muito bem disso.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Platão, Kant, Bruce Wayne e nosso exibicionismo moral


O final do penúltimo filme do Batman já havia me feito lembrar de Platão de duas maneiras. Primeiro, porque contam uma mentira para o povo em nome da manutenção da ordem justa na cidade de Gotham, o que, naturalmente, nos remete à estratégia platônica da criação de toda uma mitologia para ser ensinada ao povo para que cada grupo respeite o lugar social que lhe caberia em uma cidade justa. Mas isso me importa menos. O que achei mais interessante foi o fato do Batman ter terminado o filme, não apenas sendo justo, mas parecendo injusto.

Sabemos que, para Platão, o "supra-sumo da injustiça é parecer justo sem o ser", o que seria o caso do promotor criminoso cujos crimes foram assumidos pelo Batman. Já o Batman seria então aquele personagem platônico que, "sem cometer falta alguma", teve "a reputação da máxima injustiça". Sempre nas palavras da República de Platão, a pedra de toque da justiça seria o fato desse alguém se recusar a "vergar-se ao peso da má fama e suas consequências", continuando a ser justo, mesmo parecendo injusto.

Ora, claro que, quando Platão nos pergunta qual deles - o justo com aparência de injusto ou o seu oposto - foi o mais feliz, ele formula seu problema dentro de um quadro conceitual bem diferente do kantiano. Porém, quer me parecer que, também para Kant, o mesmo modelo funcionaria como pedra de toque da justiça: continua em jogo saber se o homem justo continuaria a ser justo mesmo que não pudesse colher benefícios de sua justiça, isto é, mesmo que ele não tivesse a aparência de homem justo, que, sem dúvida, mesmo em uma sociedade corrupta e corrompida como a nossa, ainda tem lá suas vantagens.

É neste contexto filosófico em que poderíamos falar da discussão em torno da pureza do móbil moral que a trilogia do Batman cumpre um papel relevante nos nossos tempos. Eu fico imaginando se o imbecil que atualiza o status do Facebook dizendo que foi doar sangue, por exemplo, não fica envergonhado ao sair do cinema após ver o Batman. É impressionante como as redes sociais, sobretudo, o Facebook, fizeram aflorar um exibicionismo moral como poucas vezes deve ter existido. Todo mundo quer ser herói! Um vai salvar os gansos do foie gras, outro vai acabar com o aquecimento global andando de bicicleta... e por aí vai. Cada um faz propaganda da própria vida como um exemplo a ser seguido para a salvação da humanidade.

Enquanto isso, o Batman, que é o Batman, nem sequer salva o planeta, ao contrário do meu amigo do Facebook, que avisa que faz xixi no banho pelo bem das gerações futuras. Batman apenas salva Gotham, e olha lá. Acima de tudo, o herói é o próprio Bruce Wayne, na medida em que, quando o Batman finalmente ganha a fama de justo, então ele se recusa a se aproveitar dela. Diz que o Batman deve ser um símbolo, e não um homem.

Para completar meu regozijo com a trilogia, a grande vilã do último filme, desculpem o spoiler, é... ha ha ha... uma ambientalista, super preocupada com um mundo sustentável, energia limpa e blá blá blá. Adorei! Melhor que isso, só mesmo o capanga da vilã usando um discurso revolucionário esquerdista, típico dos vilões reais da América do Sul: "o poder para o povo, para os oprimidos". O que, como era de se esperar, significa o poder para ele mesmo e a tirania sobre todos os que se voltarem contra ele.

Enfim, deixa eu contar também o fim do filme, o Bruce Wayne vai lá, acaba com a revolução em Gotham, diz que o verdadeiro herói é aquele que tem o gesto mais simples, como o de colocar um casaco nos ombros de uma criança, depois, explode uma bomba atômica longe da cidade e... pasmem, não atualiza o perfil dele no Facebook para contar nada disso ;)