domingo, 14 de abril de 2013

Meiwes, Gosnell e minhas angústias libertárias


Aristóteles recomendava que testássemos nossas teorias sobre ética e política comparando-as com os juízos costumeiramente feitos a respeito dos mesmos objetos. Esse procedimento que, já desde a antigüidade, revela os compromissos do empirismo com o senso comum pode ser questionado, dado o modo como variações de tempo e espaço afetam os juízos de valor cotidianos. Porém, nem por isso os conflitos entre meu libertarianismo e meus escrúpulos morais deixam de me causar profundo desconforto.

Da primeira vez que me deparei com esse tipo de situação angustiante, o responsável foi Armin Meiwes. Meiwes, o famoso canibal alemão, não se limitou, afinal, a devorar sua vítima. Ele se certificou de obter o seu consentimento. Ora, para um libertário, todo contrato realizado livremente, ou seja, todo contrato isento de fraude e coação firmado entre dois agentes intelectualmente capazes, deve ser respeitado. Sendo assim, sob uma legislação libertária, Meiwes, uma aberração que, honestamente, eu gostaria de ver executada, teria que ter saído livre da corte. 

Claro, também sob uma legislação libertária, cidadãos que compartilhassem da minha repugnância por Meiwes poderiam discriminá-lo, negando-se a estabelecer qualquer tipo de relação com ele, portanto, mesmo relações comerciais/profissionais. Em suma, Meiwes poderia ser expulso de cinemas privados, ser proibido de frequentar condomínios privados e assim por diante. Contudo, o que importa é que ele não poderia ser impedido de continuar praticando sua perversão monstruosa, desde que continuasse encontrando quem consentisse em participar dela. É isso que tanto me angustia. Porém, resignei-me à consequência de minha posição política e "esqueci" o assunto.

Agora, por mais que a mídia liberal norte-americana não tenha dado o devido destaque ao assunto, chegou ao meu conhecimento o caso Kermit Gosnell. Gosnell, para quem não quiser abrir o link, é um "médico" que, ao que todas as evidências indicam, induzia partos para assassinar os bebês na sequência. Na verdade, há muito tempo, eu já me confrontava com reflexões que esse caso torna tão prementes.

De um ponto de vista libertário, a vida não é o direito mais fundamental. Se fosse, uma barata, por exemplo, teria direito à vida, o que, voltando ao teste de Aristóteles, parece contrariar os valores comumente aceitos em nossa sociedade, ou ao menos as minhas intuições morais mais básicas. O direito mais fundamental teria que ser então aquele que é fundante de todos os demais direitos. Diria Kant, em um de seus momentos mais libertários, que só há um direito inato: o direito à liberdade, entendida como independência do arbítrio de outro. Decorre que só tem direito à vida quem pode ser qualificado como um agente livre. 

Ora, da mesma forma que o feto abortado pelos meios mais comuns e legalizados em certos lugares, o bebê recém nascido não é um agente livre. A liberdade pode até ser um direito inato, no sentido em que não é adquirido por algum contrato positivamente firmado, mas certamente não é um direito inato, no sentido em que já nasceríamos como sujeitos ou agentes cujas decisões pudessem ser ou não impedidas por outros agentes.

É típico da raça humana, pelo contrário, que sua prole trilhe um longo caminho de desenvolvimento fora do útero da mãe. Em outras palavras, o agente livre nasce muito depois do parto. Por vezes, ele nem sequer nasce, já que nada garante que aquele indivíduo que compartilha de nossa herança genética evoluirá algum dia para um indivíduo capaz de calcular riscos e possíveis benefícios como resultados de suas ações, agindo ou deixando de agir em conformidade com o resultado desse cálculo, que é a competência mínima que esperamos de um agente para classificá-lo como livre. Com essa última consideração, por sinal, podemos estender a condição jurídica dos fetos não apenas para crianças muito pequenas como ainda para doentes mentais e afins.

Mas então como um libertário poderia justificar a condenação legal do infanticídio promovido por Gosnell? Ele também deveria sair livre da corte (se considerarmos apenas essa acusação) e se juntar a Meiwes como um pária a quem não podemos impedir de fazer o que faz? Tendo em vista que, segundo o libertarianismo, apenas indivíduos são portadores de direitos, não uma coletividade qualquer, como a espécie, eu não vejo como evitar a conclusão. Um pratica sua perversão com agentes livres que consentem com elas, outro as pratica com indivíduos que não podem ser considerados livres ou não-livres, porque não são agentes juridicamente capazes em sentido algum. O libertarianismo parece deixar os juízes de mãos atadas em ambos os casos...

8 comentários:

  1. Acho que o maior problema do libertarianismo é não lidar com a produção de bens públicos (em sentido econômico). Como demonstra a teoria dos jogos, indivíduos racionais perseguindo seus próprios interesses podem chegar a um resultado que é insatisfatório para ambos (penso aqui no dilema dos prisioneiros, que é o exemplo clássico). Conter a violência, garantir direitos de propriedade e assegurar o cumprimento dos contratos não evita, por exemplo, a tragédia dos comuns. Enfim, fora isso, tem essa dimensão que você colocou. Como aceitar o infanticídio ou um contrato em que alguém autoriza ser devorado (o que me parece ser contrário a qualquer sistema de direito que coloque o ser humano como seu valor-fonte)?

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    1. Eu acho um erro considerar o libertarianismo como uma teoria da decisão racional. É uma teoria da justiça. Em outras palavras, ainda que a decisão que eu tomo (fumar, por exemplo) possa me trazer prejuízos, isso não implica imediatamente que outro tenha o direito de fazer escolhas por mim, ou seja, ainda sou eu que preciso decidir se fico calada ou se testemunho contra meu comparsa ;)

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  2. Sim, mas o ponto do dilema dos prisioneiros não é necessariamente estabelecer que devemos impor aquilo que alguém estabeleceu que é o melhor (não fumar, no seu exemplo). É demonstrar que a cooperação pode ser vantajosa para ambos, e isso só se torna possível com mecanismos de coordenação entre os indivíduos (no caso da teoria dos prisioneiros, a busca individual do que é melhor acaba por resultar na imposição do pior cenário para ambos). Parece-me difícil escapar da conclusão que o Estado night-watchman (que acho muito sedutor) pode acabar condenando os indivíduos a viverem num cenário de subótimo paretiano (em que é possível melhorar as condições de todos sem piorar a de ninguém, mas isso não acontece), mesmo que não seja isso que eles desejem. O paradoxo é que, nesse cenário de interferência mínima para que os indivíduos busquem seus interesses, a opção do indivíduo por aquilo que mais o beneficie acaba por não ser uma possibilidade. Enfim, compreendo seu ponto de ser uma teoria da justiça, só estou trazendo algumas questões que também me angustiam no libertarianismo, hehe. (alguém deveria escrever um livro sobre angústias libertárias, se é que já não existe :p)

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    1. Obrigada pelo esclarecimento. Na verdade, eu não creio que algum libertário negue que a cooperação seja vantajosa. O libertarianismo não prega um atomismo social. Ele apenas requer que a cooperação se dê livremente, como no livre mercado. Por isso, eu disse que, ainda que a cooperação seja o melhor para os prisioneiros e ainda que, por conta própria, eles possam não perceber isso, de acordo com a teoria da justiça libertária, ninguém pode impor a ambos os prisioneiros que cooperem entre si. Assim, em suma, o que importa para qualquer teoria da justiça é se a imposição de mecanismos de cooperação é ou não é legítima, e não se a cooperação é ou não é o meio mais eficiente de garantirmos a realização de fins individuais.

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  3. Andrea, eu que agradeço pelo nosso curto debate. Sou fã do blog.

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  4. Olá Andrea Faggion.

    Muito pertinente sua publicação, parabéns.

    Esse é o tipo de fato que coloca a prova as ideias da liberdade.
    Se for proibido o tipo de contrato voluntário proposto por Meiwes, nossas aflições seriam apaziguadas, por outro lado, seria uma prerrogativa para a proibição arbitrária de uma infinidade de contratos celebrados voluntariamente.

    Acho que é pertinente comentar, que tanto os juristas convencionais (juspositivistas) quanto os libertários ficam angustiados mediante esse tipo de contrato (acredito, que a maioria dos seres humanos ficariam), entretanto para os juspositivistas, a aplicação de sua moral (a proibição do canibalismo voluntário), mediante à coerção estatal, está de acordo com suas prerrogativas.

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