sábado, 30 de março de 2013
Reflexões de Páscoa
Ontem, minha TL no Twitter ficou em polvorosa com o comentário de alguém a respeito do suposto comunismo de Jesus Cristo. Muito bem, não acho que Jesus Cristo tenha sido propriamente um comunista, mas, no final das contas, devo confessar que sei bem poucas coisas sobre Jesus Cristo. Porém, uma coisa vou confessar, sempre achei o cristianismo o principal inimigo do individualismo, o grande fator que impede que a última doutrina tenha verdadeira influência sobre nossa cultura ocidental. Em poucas palavras, em nossa cultura, individualismo é sinônimo de maldade e coletivismo é sinônimo de bondade, o que eu credito na conta do cristianismo.
Estava refletindo sobre isso por estes dias. Qual o grande ideal do cristianismo segundo muitos de seus seguidores? A caridade, quer me parecer! Ora, mas a caridade cristã está justamente enraizada em um certo modo de compreensão da humanidade. A humanidade é vista pelo cristão como uma única família. Somos todos irmãos criados à imagem e semelhança de um único Pai. É dessa visão criacionista de mundo que surge a ideia de caridade como uma vida de obrigação mútua: você não deixa um irmão passar fome, ainda que a desgraça dele não tenha sido causada por você. É próprio do conceito cristão de família que se assumam as consequências dos pecados de outrem. No fim, qual é nosso grande exemplo? Jesus Cristo, um inocente que morreu para salvar os pecadores!
Agora, note que esse conceito de humanidade como uma grande família em que um membro cuida do outro não é um conceito meramente dado, observável, por exemplo, um conceito meramente baseado em nossa comunidade genética. Na natureza, animais da mesma espécie estraçalham uns aos outros a todo momento. Para ser breve, uma espécie não é sinônimo de uma família ou mesmo de um único rebanho. Portanto, era preciso uma ideologia que, através de uma mitologia, convencesse a humanidade de que ela é uma família só. Seria temerário afirmar que isso tem impactos profundos sobre nossa visão a respeito da caridade?
Dizer-se ateu é fácil. Não pensar como um cristão é bem mais difícil. Como é então a caridade para alguém que se desnuda das crenças mitológicas que converteram espécie em família? Eu arriscaria dizer que, primeiramente, caridade não é dever. Em segundo lugar, perante um ideal individualista, que, talvez, resgate valores gregos pré-cristãos de auto-suficiência, também não é recomendável que ela seja praticada indistintamente. Se a auto-suficiência do indivíduo é o ideal, e não um palavrão, a caridade deve seguir o dito popular de não dar o peixe, mas ensinar a pescar. Desse ponto de vista, a caridade, em suma, pode bem ser um veneno social quando ela gera dependência.
Claro, há o caso dos hipo-suficientes. O que fazer quanto a quem não tem condições fisiológicas de pescar seu próprio peixe? Na natureza, observe que animais desse tipo são deixados para trás mesmo pelos rebanhos. Ah, mas isso não é humano! Não é humano, ou não é cristão? Não seria a humanidade justamente uma invenção cristã? Penso que sim. No entanto, talvez também seja por razões fisiológicas que sintamos compaixão e ajudemos aos hipo-suficientes. Isso não me importa tanto. O que me importa é frisar que esse tipo de ajuda àquele que, para você, é verdadeiramente o "outro" seria uma resposta a um sentimento (biologicamente fundado ou culturalmente inculcado), e não um dever racionalmente fundado.
Feliz Páscoa!
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Eu costumo dizer que o problema do coletivismo cristão não é o cristianismo propriamente dito, e sim o que seus seguidores fazem os outros pensarem que se trata de fundamento cristão. Conheço a fundo pelo menos uma doutrina cristã cujo ideal, digamos assim, é a "caridade". Se cristão lê e ouve isso superficialmente, vai seguir (ainda mais se entrar a história do inferno!) fazendo assistencialismo sem sequer questionar que as ferramentas que usa para tal só servirão para aquietar (e temporariamente) a situação dos "ajudados". Mas aí, quando vc resolve estudar a doutrina mais a fundo, percebe que caridade deliberada não cabe dentro do cristianismo. Trata-se justamente de "ensinar a pescar e não dar o peixe" e, mais além, de conscientizar da condição na qual os desfavorecidos se encontram. Portanto, existe uma grande diferença entre os princípios do cristianismo e o que sai da boca (e dos movimentos assistencialistas) de muitos de seus seguidores em nome do cristianismo. Por isso eu falo... "Ô Jesus, deleta tudo e desenha no papel, porque olha...". E por essas e outras eu não me surpreendo quando vejo reflexões bem colocadas como as suas, Andréa. Pode por na conta dos cristãos.
ResponderExcluirDani
Andrea.
ResponderExcluirBrilhante!
Presumivelmente todo e qualquer dever moral tenha uma base biológica. Mas se isso concorresse com a possibilidade de afirmarmos que o melhor uso ético do nosso livre arbítrio é não sermos indiferentes ao sofrimento alheio, então eu me inclinaria a desdenhar da biologia. Se esse não for o caso, acho que a avaliação moralmente negativa que faço de uma pessoa indiferente ao sofrimento alheio tem a ver com sua liberdade (sua condição de ser moral), não com sua mera condição de ser natural (meramente biológico). Agora, no limite, o teu ponto é fascinante e talvez incontestável. A ideia de que se posso ajudar alguém, devo ajudar é furada. Posso ajudar o miserável da Guiné-Bissau, mas não estou nem aí para ele (não movo uma palha para ajudá-lo). Posso ajudar o miserável do interior do Piauí, mas também não estou dando a mínima para ele. E também acho razoável que, se algum piauiense souber de algum sofrimento meu, permaneça absolutamente indiferente.
Ah, parece-me que a caridade é considerada uma ação eticamente recomendável por religiões historicamente anteriores ao surgimento do cristianismo. Bem, mas talvez isso não tenha a mínima importância para o teu ponto. É mais uma ressalva histórica e não filosófica.
Muito obrigada pelos comentários!
ResponderExcluirEu sou ignorante quanto a isto, Aguinaldo, mas é bem razoável supor que outras mitologias cumpram o mesmo papel do cristianismo de fundar deveres de caridade. Realmente, para o meu ponto, só importa o cristianismo pelo seu impacto particular em nossa cultura.
Prezada Andrea,
ResponderExcluirProcurava por outra Faggion e encontrei você. Não por acaso, li seu blog e me encantei: perfeito.
Ser ateu é fácil, pela simples negação e falta de compromisso em buscar o que o próprio Universo evidencia. Estar livre da concepção judaico-cristã da Gênese e do papel do homem no Universo é algo bem mais complexo, por estar há 5 mil anos enfurdado em nossa cultura.
É claro que o coletivismo aluna o indivíduo, que em primeira instância é a célula humana, única capaz de produzir câmbios em si por própria determinação, extrair da experiência um conhecimento e exemplificar, estimular ou inspirar a que outros façam o mesmo.
Brilhante, mais uma vez. Já foi para o meu bookmark.
Saudações,
Marcelo Damasceno