sábado, 27 de julho de 2013

Libertarianismo e pobreza: somos cruéis?


Tivemos hoje a primeira reunião do grupo que montei para o estudo da filosofia política de Robert Nozick. Como eu já esperava, dada a qualidade de meus alunos e colegas, e o caráter instigante do texto de Nozick, a discussão foi ótima. Eu, ao menos, tirei enorme proveito.

Claro, como também era esperado, um dos pontos que gerou o debate mais acalorado foi a situação dos pobres em uma sociedade libertária, ou seja, uma sociedade onde não haverá programas estatais de combate à pobreza ou uma rede social de amparo à população carente. Talvez sob a influência dos discursos libertários de cunho mais político do que filosófico que tenho lido ultimamente, mandei logo a resposta padrão, falando da suposta eficiência do livre mercado para fazer com que, a longo prazo, mesmo os mais pobres vivam confortavelmente, e dos supostos problemas econômicos gerados pelos gastos públicos. Foi aí que meu querido amigo Aguinaldo protestou contra meu rompante consequencialista, expressando sua preferência pelo argumento normativo pautado pelo princípio da não-agressão: não se pode roubar de um para dar a outro.

Desde então, fiquei pensando nisso e estava convicta de que tinha uma boa resposta para o Aguinaldo. Assim que sobrou um tempinho, tratei de escrever a ele, não por ter alguma ânsia de fazê-lo pensar como eu, mas porque, sempre que converso com Aguinaldo, eu organizo melhor minhas ideias e, de uma forma ou de outra, evoluo em relação ao meu ponto de partida. A coisa foi mais ou menos assim:

"Sobre o encontro de hoje, eu fiquei pensando sobre sua recusa completa do consequencialismo. Eu costumo observar que é preciso separar e compreender bem a independência das duas linhas argumentativas. Mas eu não estou tão convencida de que podemos ter argumentos minimamente convincentes se nos mantivermos estritamente no plano deontológico dos argumentos a priori. Note, porém, que eu estou falando da nossa capacidade de convencimento, não de uma carência lógica. Eu não acho que o argumento normativo precise de alguma espécie de complementação empírica. O que eu acho é que podemos chegar a uma situação em que a pessoa concede que nosso argumento normativo é perfeitamente válido, porém, opta por recusar sua premissa, e, talvez, essa recusa seja razoável mesmo.

Vou tentar explicar o que tenho em mente. O Charles [outro amigo e colega que participa do grupo] disse que todo mundo aceita o princípio da não-agressão, ou seja, que ninguém defende a agressão. Mas isso não é verdade. Pensemos no seguinte cenário.

Recusamo-nos a fazer uso dos argumentos da escola austríaca de economia [por misturarem axiomas com constatações empíricas], nos atemos aos filósofos morais propriamente e, assim, concedemos ao nosso adversário que o Estado poderia gastar sem gerar pobreza em larga escala a longo prazo, assim como concedemos que o livre mercado não tende necessariamente a gerar sociedades onde os mais pobres, em geral, vivem confortavelmente. Nós provamos, pura e simplesmente, que a situação de livre mercado é uma situação moralmente irretocável.

Muito bem, nós temos então que admitir a possibilidade da existência de extrema miséria em larga escala convivendo com a formação de uma elite econômica muito rica. Agora, nós não podemos provar a priori que as pessoas farão caridade nessa sociedade. Você concede então um cenário em que há miséria e as pessoas vão morrer sem amparo, afinal, mesmo que você se importe com isso, sem poder contar com outros para ajudar, você não resolverá o problema sozinho. Então, surge a seguinte consideração: será que não é razoável aceitar uma agressão aos mais ricos, desde que essa agressão não mude bruscamente sua situação econômica, se o objetivo dessa agressão é salvar a vida de alguém muito pobre? Não é razoável permitir que milionários sejam minimamente agredidos para que os pobres sejam maximamente beneficiados, ao deixarem de perder a própria vida? Suponha que eu tire R$200,00 ao mês dos muitos ricos para comprar remédios para os muitos pobres. Eu estou cometendo uma agressão mínima para provocar um benefício essencial.

Claro, você vai dizer, meu argumento é utilitarista. Mas eu acho que você nem precisa ser propriamente utilitarista para aceitá-lo. Veja que não estou dizendo que, no computo total, ao final do processo, haverá mais felicidade na sociedade do que havia antes. Eu acho perfeito o argumento do Nozick de que a infelicidade de um não é compensada pela felicidade do outro, porque os indivíduos vivem vidas separadas, não são recortes de um todo contínuo. A questão é que quer me parecer que qualquer pessoa razoável permitiria uma pequena agressão a um indivíduo para salvar a vida de outro ou poupar-lhe um grande dano. Por exemplo, eu dou um esbarrão em você para evitar que o outro quebre a perna. É razoável, não é? Eu acho que 90% das pessoas vão abandonar a premissa da não-agressão em sentido absoluto ao se darem conta disso. Imagine o seguinte [aqui, eu achei que ia mandar muito bem]: você não tem R$200,00 para comprar um remédio para uma criança que vai morrer se não tiver acesso a esse remédio; você pede esses R$200,00 ao Bill Gates e a outros; todos se recusam a ajudar; surge a oportunidade de você roubar esses R$200,00 da carteira do Bill Gates; você rouba, compra o remédio e salva a vida da criança; o Bill Gates te denuncia a autoridades (sejam públicas ou privadas); você é punido por roubo. Isso é justo?

...Caramba [aqui, eu me dei conta de que estava falando besteira], espera, acho que é justo, sim. Estou pensando enquanto escrevo. Desculpe por isso! Ocorre que, para que o Estado possa roubar uns trocados do Bill Gates para salvar a vida da criança, você também tem que poder fazer isso no estado de natureza. O Estado não pode ter a licença de fazer algo que você não teria licença para fazer no estado de natureza. Mas imagine uma sociedade onde uns poderiam decidir pelos outros como usar suas propriedades: "olha, você tem muito, portanto, vou tirar um pouquinho só de você e entregar para esse aqui que tem pouco demais". É, acho que uma pessoa razoável não aceitaria isso, não. Eu poderia, por exemplo, tomar o dinheiro que você vai gastar em cerveja hoje à noite [isso é só uma conjectura muito provável, eu não sei se o Aguinaldo vai tomar cerveja hoje à noite] para comprar um casaco para alguém que vi passando frio. Eu justificaria esse ato dizendo que sua dor ao perder a cerveja só hoje não seria nada em comparação com a dor de quem passa uma noite inteira de frio, e pode até morrer desse frio. Mas ninguém razoável aceitaria que cabe a mim (ou a qualquer outro) decidir que a cerveja não é nada para você e o frio é muito para o outro, ou seja, que cabe a mim (ou a qualquer outro) decidir por você se, como e quando usar seus recursos para ajudar o outro. Então... é isso, podemos ficar sem a escola austríaca mesmo. Eu tive uma pequena febre consequencialista que já passou hehehe"

Foi isso! Agradeço ao Alan pela pergunta, a todos pelo debate e ao Aguinaldo por ter puxado minha orelha sobre minha resposta. Posto aqui o texto, porque pode ser uma reflexão útil a quem também se angustia com essas questões. No fim, libertários não somos cruéis. Somos apenas dolorosamente coerentes ;)



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