domingo, 23 de setembro de 2012

Kirchner e a "democratização" dos meios de comunicação


Kirchner quer (e, pelo visto, vai) limitar o número de licenças concedidas para um mesmo grupo empresarial de mídia para diminuir o poder do Clarin, seu opositor. Seus partidários tratam a "Lei dos Meios" como "democratização" dos meios de comunicação e instituição da "liberdade de expressão" naquele país. Eu, que não confundo democracia popular com regime de liberdade, pergunto: desde quando limitar os meios de livre expressão amplia a liberdade de expressão de alguém? Acaso, atualmente, seria o Clarin a impedir alguém de falar o que pensa na Argentina? Seria o Clarin a verdadeira ameaça à liberdade de expressão na Argentina?

Ora, só o governo tem o poder de limitar a liberdade de expressão de alguém. Ele exerce esse poder justamente quando faz com que quem quer que seja tenha que pedir licença ao todo poderoso Estado para oferecer ao público uma rede de TV ou uma emissora de rádio, por exemplo. Querem mesmo mais liberdade de expressão? Acabem com a necessidade de licenças, de concessões públicas, etc. Tirem as mãos dos governos da mídia!

Ao menos, é o que penso, por mais que muitos preferissem que eu não expressasse ;)

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Direito de ofender 02: a missão


Já escrevi neste blog em defesa da liberdade irrestrita de expressão e não mudei de opinião. Observem a imagem acima. Agora, eu os convido a compararem os danos potenciais provocados pelo ato de atirar uma pedra, como a que o jovem fanático tem em mãos, aos danos provocados pelos autores do vídeo que desencadeou os mesmos protestos. Onde estão, afinal, os danos sofridos pelos seguidores de Maomé?

sábado, 1 de setembro de 2012

Por que debater? Com quem debater?


Acho que o que mais mudou em mim com a passagem para a idade adulta, ou com o envelhecimento, se quisermos evitar eufemismos, foi a perda do ímpeto para o debate. Quando eu era adolescente, a minha diversão favorita era polemizar um tema qualquer com quem quer que fosse. Meus professores sofriam! Hoje em dia, para espanto de quem me conheceu naquela época, eu nem sequer divulgo este humilde blog no meu Facebook para evitar entrar em polêmicas gratuitas. Claro, o próprio blog tem um espaço para comentários, mas, felizmente, ele não atrai exibicionistas e patrulheiros como o Facebook.

Eu fico então me perguntando o que mudou daquela Andrea adolescente, que discutia tudo com todos, para esta Andrea adulta (ou velha), que quer discutir tão pouco com tão poucos. Acima de tudo, eu percebo que não existe mais em mim uma preocupação acentuada com a opinião alheia. Não é só o fato de eu ter entendido que o debate, apenas raramente, tem o poder de mudar o que o outro pensa. É, acima de tudo, o fato de eu não ter mais a mínima vontade de mudar o que o outro pensa. Aliás, deve ser por isso que muitos acusam os libertários de irracionalistas ou subjetivistas. Não me parece próprio de um libertário fazer proselitismo e buscar a uniformização dos pontos de vista. De fato, quanto mais eu envelheço, mais libertária me torno e, na mesma medida, menos me importa o que vai pela cabeça do outro, desde que (e aqui está uma imensa restrição) ele me permita viver em paz e externar em paz minhas próprias opiniões diferentes das dele. Em suma, eu não sinto mais aquela necessidade de fazer com que o outro admita estar errado, e muito menos de fazê-lo diante de alguma plateia.

Todavia, por outro lado, é claro que, para além do confronto de egos e mesmo de alguma crença edificante na possibilidade de transformação política por meio do debate, o confronto de ideias tem uma função inerente à produção do conhecimento. Isso, se não nos tornarmos completos relativistas, posição que não me parece decorrer do "live and let live" libertário. Quer dizer, se existe validade objetiva, como validade universal para todos, ainda que não nos importe que o outro viva enganado, contanto que seu engano não seja imposto a nós pela força, nós ainda procuraremos o debate como um meio de testarmos nossas posições, para vermos se, afinal, não somos nós os enganados. O problema é que, com o tempo, você percebe que não é qualquer um que pode ser seu interlocutor em um debate no qual você procura testar a validade de suas posições.

Primeiramente, seu interlocutor tem que ser alguém que ao menos saiba aparentar um sincero interesse pela validade das teses em jogo, admitindo a possibilidade de sua própria falibilidade a respeito delas, e, portanto, estando aberto à perspectiva do outro. Esse alguém estará disposto a se engajar com você pela solução de um problema, em vez de simplesmente estar inclinado a lutar contra suas teses. Lembro-me de uma vez em que uma colega, a quem muito respeito, se desculpou por ser muito enfática na defesa de suas posições, dizendo que, na verdade, ela estava tentando convencer a si própria, e não a mim, por não estar tão certa do que estava dizendo. Gosto dela até hoje por conta dessa declaração. Sempre cito também o exemplo de outra colega, por quem nutro o mesmo respeito, que, certa vez, ao final de um debate muito caloroso, nem se lembrava mais de qual tinha sido sua posição inicial. Em suma, como essa colega, temos que nos desapegar do conteúdo de nossas teses e nos apegarmos apenas à verdade. Veja bem, "verdade", aquela ideia regulativa, digamos assim, que orienta todo debate sem ser propriedade de nenhum dos debatedores. Afinal, por que debateríamos se houvesse apenas o ponto de vista privado de cada um?

Agora, em segundo lugar, preciso notar que boa vontade não basta. Por mais que a pessoa esteja aberta a ouvir seus argumentos para considerar honestamente a validade deles, e não apenas para encontrar a melhor estratégia retórica para neutralizá-los, vocês já devem ter notado que, muitas vezes, um entendimento parece simplesmente impossível. Aqui, entra em cena um aspecto essencial de qualquer debate: o ponto de partida ou os valores fundamentais, assim por dizer, adotados por cada debatedor. Não adianta debater com uma pessoa incapaz de perceber, reflexivamente, em que se fundamentam as suas próprias teses. Para ser sincera, eu tenho me cansado de debates, notadamente, por este motivo. Estou um tanto farta de ter que explicar para a própria pessoa o que está pressuposto no discurso dela e, acima de tudo, estou muito farta de gente incapaz de perceber que todo discurso parte de certos pressupostos que não podem ser, de antemão, tomados como verdades absolutas.

O que quero dizer com isso é que o seu argumento pode ser muito bom e pode parecer extremamente natural, mas isso, sempre, do seu ponto de vista ou a partir de teses mais elementares que precisam ser acolhidas. Em 99% dos debates sobre política que presencio, ridiculariza-se a posição do adversário com base em premissas questionáveis que nunca chegam, de fato, a serem questionadas, sendo que, se o fossem, meu amigo, dariam o maior trabalho do mundo para serem provadas ("como se prova um primeiro princípio?", eis uma pergunta com a idade da filosofia).

Em suma, no mais das vezes, o seu argumento pressupõe toda uma carga de valores que não é compartilhada pelo seu interlocutor, mas você nem sequer se dá conta disso, porque você nem sequer parou para analisar quais são os princípios do seu próprio discurso e, muito menos, quais são aqueles que orientam o discurso do seu oponente. Na grande maioria das vezes, jamais haverá um acordo em um debate, simplesmente porque jamais haverá um acordo sobre esses pressupostos mais gerais e fundamentais.

Mas o que fazer então? Não estaríamos fadados ao relativismo, já que, no contexto que descrevo, cujo conhecimento deveria ser trivial para filósofos, cada um teria o direito de se ater aos seus princípios últimos, julgando a partir deles e, consequentemente, discordando de juízos feitos a partir de outros princípios?  Bom, são duas coisas distintas. Primeiro, é muito válido, eu diria até fundamental, debatermos com quem parte dos mesmos princípios que nós. Um dia, em um desses congressos, um "inimigo infiltrado" (brincadeirinha, gosto dele) acusou kantianos de só ficarem "acertando o reloginho". Ele quis dizer que debatemos entre nós para vermos quem é mais kantiano, ou seja, quem defende as posições que representariam com mais consistência o kantismo. Pois muito bem, fazemos muito disso mesmo. Mas é bom que se faça, porque não é nada trivial que saibamos o que de fato decorre dos princípios que aceitamos como fundamentais. A coerência interna é um dever de todo ser pensante... hmm tá bom, de todos aqueles que aceitam a validade do princípio de não-contradição... e é muito mais difícil de ser obtida do que parece. Em segundo lugar, mesmo que não possamos provar a validade de primeiros princípios exatamente por serem primeiros princípios, ao debatermos com quem não compartilha dos mesmos princípios com relação a nós, temos a melhor ocasião de fazer essa descoberta relativa a tais princípios. Eventualmente, podemos mesmo encontrar algum modo de defendê-los. Eu, por exemplo, considero o libertarianismo superior a outras doutrinas políticas, porque ele é capaz de tolerar que as pessoas se organizem politicamente como bem entenderem, até mesmo em comunas, desde que seja por adesão voluntária. O oposto não se aplica: libertários temos sempre que ser obrigados a seguir sistemas alheios.

Enfim, posso sintetizar o que venho dizendo em poucas palavras: é muito bom discutir, mas apenas com gente: 1) tolerante a ponto de realmente dar ouvidos aos outros; e 2) inteligente a ponto de 2 a) saber reconhecer seus próprios princípios e 2 b) saber admitir que eles não precisam, necessariamente, ser princípios aceitos pelo outro. Como está cada vez mais difícil encontrar gente que reuna esses atributos, mesmo na academia, discuto cada vez menos.




sábado, 25 de agosto de 2012

Conhecimento e interesse ou a diferença entre um cientista e uma testemunha


Já faz tempo que eu li um artigo em que o autor defendia basicamente que, se repórteres de jornais são proibidos terminantemente de aceitar dinheiro de qualquer setor econômico ou organização sobre o qual escrevam matérias (isso nos EUA, imagino, não sei se se aplica ao Brasil), o mesmo deveria se aplicar ao meio acadêmico. Em suma, segundo a tese, o cientista cuja pesquisa seja financiada por uma organização interessada nos resultados da mesma teria um conflito de interesses. No mesmo espírito, outro dia, me lembrei da minha vontade de abordar o tema aqui no blog quando um jornalista disse que deveríamos tomar os resultados de uma pesquisa sobre os benefícios do cacau com um "grain of salt", porque a pesquisa fora financiada por fábricas de chocolate.

Ora, este tipo de comparação entre a atividade do cientista e aquela do jornalista me parece distorcer profundamente o que é próprio do ofício do primeiro. Vejamos. Um jornalista é enviado para fazer uma matéria acerca das condições de trabalho em uma fábrica na China. Para tanto, ele será o primeiro a receber acesso irrestrito às instalações da fábrica. Então, a mesma fábrica paga pela matéria. Você acreditará na matéria? Não parece razoável defendermos a credibilidade dessa matéria nessas circunstâncias, porque se espera do jornalista que ele faça um relato do que teve a oportunidade de observar com exclusividade. Por mais que ele possa documentar a experiência em fotos e vídeos, não haverá outra equipe que não a dele próprio presente, de forma que ele escolherá o que registrar, o que mostrar e como editar. Em outras palavras, a matéria se torna um testemunho do jornalista no qual podemos escolher se vamos nos fiar ou não. Agora, esse modelo de prática é completamente avesso à natureza da atividade científica.

Se me permitem usar de outro exemplo antes de ir ao ponto, em um julgamento, quando o júri é selecionado, defesa e acusação efetuam essa seleção justamente buscando por conflitos de interesse através da aplicação de questionários, por exemplo. Por que isso acontece? Porque o jurado não precisa justificar o seu voto pela condenação ou absolvição do réu. O jurado simplesmente se posiciona frente às evidências. Embora possa haver apelo a uma corte superior, caso o júri tenha seguido todos os procedimentos indicados pelo juiz, não se pode propriamente questionar sua decisão. Como o nome diz, a decisão do júri é o "veredito". É verdade, porque foi dito pelo júri em circunstâncias apropriadas.

No mesmo contexto jurídico, note que o advogado, ao interrogar uma testemunha, pode invalidar seu testemunho perante o júri se deixar claro que ela tem um conflito de interesse, ou seja, que interessa a ela que o réu seja condenado ou simplesmente que seja um fato aquilo que ela alega ter presenciado. Por outro lado, o júri sabe que o advogado, por sua vez, é pago para sustentar o que sustenta, mas, nem por isso, desconsidera seus argumentos. E seria sensato um jurado acusar um advogado de ter um conflito de interesses por receber altos honorários para argumentar em prol das teses que sustenta perante ele? Parece-me óbvio que não. Pois eu digo que o cientista está muito mais para um advogado de tribunal do que para uma testemunha, como era aquele jornalista na fábrica, ou para um jurado.

Em poucas palavras, o cientista precisa argumentar, montar o seu caso perante o júri popular do mundo esclarecido.  Por isso mesmo (desculpe, ANDES), não pode existir ciência sem PUBLICAÇAO. O cientista é como o advogado que sustenta uma tese para que outro a acate ou não. Ele não é e, acima de tudo, não deve ser visto como um jurado com o poder de simplesmente declarar a verdade que temos que acatar como réus. Da mesma forma, ele também não é uma testemunha em quem simplesmente acreditamos e cuja palavra acatamos assim que se mostra que ele não teria razões para mentir. Por que é assim? Porque, em matéria de ciência, não se trata, em absoluto, da sinceridade do cientista. Assim como a crença do advogado na inocência do seu cliente deve ser irrelevante para o júri.

Verdade e sinceridade são pretensões distintas do uso da linguagem. 2 e 2 são 4 ainda que o matemático não acredite nisso. Não nos importa de modo algum saber se o matemático acredita honestamente nos cálculos que faz. Sua crença simplesmente não é parte da demonstração. Já no banco das testemunhas, é preciso jurar sinceridade e é esse o sentido daquele "a verdade e nada mais do que a verdade". Para um testemunho, sim, a sinceridade é o fator chave. A testemunha não tem que argumentar e convencer o júri de nada. Ela só precisa relatar o que viu, ouviu, etc... (ou, melhor dizendo, o que ela acredita ter visto, ouvido...) para que os advogados façam o uso que bem entenderem desse relato contra ou a favor de teses.

Um outro ponto essencial à ciência se revela aqui quando comparamos as testemunhas aos cientistas notando as diferenças entre ambos. A sinceridade da testemunha importa, porque a pessoa está sentada naquele banco da corte por ter informações privilegiadas. Ela, por exemplo, presenciou um assassinato. Trata-se de um fato singular perante o qual a sua posição de observador foi única e não pode vir a ser ocupada por um de nós a posteriori. Já o cientista depende de uma coisinha chamada "reprodutibilidade". É parte integrante da atividade científica que um possa reconstruir os passos do outro e obter os mesmos resultados. É por isso que não há ciência sem método. O método nada mais é do que uma receita para que o outro chegue ao mesmo resultado. É por essa razão que o velho Kant dizia que não há gênios na ciência. Você pode ter feito uma importante descoberta científica, mas ela não será científica se o mais medíocre dos seus colegas não for capaz de confirmá-la seguindo os mesmos procedimentos. Seu colega não vai simplesmente se fiar na veracidade do seu relato quanto ao que se passou no laboratório.

Dito tudo isto, meus amigos, fiquei bem feliz em saber dos benefícios do cacau... Até que se prove o contrário ;)


quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Brasil: um país de analfabetos


De repente, alguns parecem ter acordado para dois fatos: 1) O Brasil pode ter a sexta economia do mundo, mas está longe do desenvolvimento, porque os resultados de seu sistema educacional não está nem entre os 50 melhores do mundo, sendo que não se industrializa um país de analfabetos funcionais; 2) O Brasil pode encher a boca para dizer que empresta o "B" para os BRICS, porém, não é páreo para China, Rússia e Índia em termos de crescimento econômico, sendo que ao menos China e Índia parecem ter tomado a dianteira no que se refere à educação, o que sugere que essas, sim, são as potências de amanhã.

Feito o diagnóstico, todo mundo tem sua solução: cortar disciplinas do ensino médio (etapa onde a desgraça é completa), fundir disciplinas, encher as escolas de pedagogos, destinar 10% do PIB para educação, etc... Pois, a mim, o problema da educação no Brasil parece ser muito mais cultural. Até por isso, eu me torno cada vez mais pessimista. Enquanto discutem como a escola poderia concorrer com o shopping center e o vídeo-game pelo interesse dos jovens, eu me pergunto por que deveria.

É verdade que as escolas são péssimas, mas falta ao brasileiro médio, da classe média, a noção de que estudar implica em se auto-impor sacrifícios pessoais no que diz respeito a suas inclinações mais imediatas em nome de benefícios futuros. Em outras palavras, quantos jovens vocês conhecem que passam madrugadas e finais de semana estudando? Eu só os conheço justamente nos cursos de ponta das boas universidades ou nos cursos preparatórios para o ingresso neles. De resto, pensamos o momento do estudo como aquele momento em sala de aula em que o professor deve entreter o aluno para que ele aprenda se divertindo. Distribuem iPads para jovens que jamais topariam meter a cara nos livros na hora da balada. Eis, por sinal, a síntese do problema e também do fracasso das soluções.

domingo, 12 de agosto de 2012

O erro é tratarmos de modo igual os desiguais





Volto ao tema da greve dos professores universitários federais. Desta vez, o que chama minha atenção é um certo consenso no discurso que a condena. Em poucas palavras, podemos dizer que os professores são acusados de "chorarem de barriga cheia", como se fala popularmente. A todo momento, somos bombardeados com observações sarcásticas que inflacionam o salário médio dos professores universitários federais e debocham de sua insatisfação. Com isso, todos nos perguntamos: o professor universitário federal ganha bem ou ganha mal?

Naturalmente, para respondermos a essa pergunta, o mais natural seria investigarmos quanto ganha um professor universitário no setor privado. Contudo, como já comentei em outra postagem deste blog, o Estado exerce tão forte influência e controle sobre o "mercado" de trabalho do professor, com tantas universidades públicas de grande porte espalhadas pelo país, por exemplo, que fica difícil saber o quanto um professor universitário receberia no Brasil tivéssemos uma economia de livre mercado.

Podemos pensar então em compararmos o salário de um professor universitário com o salário médio de um servidor público federal em geral. O problema, neste caso, é que, ao contrário do que ocorre com o servidor médio, exige-se do professor universitário uma formação de excelência, que implica em cerca de 10 anos de formação só em nível universitário. Ora, se o professor universitário não receber remuneração proporcional à formação que se lhe exige, naturalmente, os outros cargos tornar-se-ão mais atraentes por implicarem em um investimento menor em formação.

Assim, chegamos a um impasse: sabemos que o professor universitário deve ganhar o bastante para que alguém se motive a investir tanto na própria formação a fim de ocupar a função, mas como podemos fixar o valor de um salário quando não há valor de mercado no qual nos basearmos?

O conjunto de circunstâncias me faz pensar que a definição do salário do professor, bem como de qualquer outro profissional cuja profissão seja monopolizada pelo Estado, recai sobre uma mera disputa de força entre governo e sindicatos. Nesta disputa, o governo tem a vantagem retórica de poder comparar o salário dos professores ao salário médio nacional do setor privado, comparando alhos com bugalhos e jogando a população contra os professores, como se eles fossem os únicos ou mesmo os maiores responsáveis pela estatização de sua profissão, ou como se eles pudessem simplesmente mudar de emprego sem mudar de profissão e abandonar a carreira.

Como resolver o impasse? Claro que, de acordo com minhas convicções, o ideal seria a privatização das universidades e a total desregulamentação do setor. Aí, sim, todos os salários seriam justos, porque seriam o pagamento resultante de contratos livremente negociados em uma economia de mercado, do que nunca se pode reclamar com razão. Todavia, como eu sempre gosto de lembrar, essa solução não está no horizonte nem de governo nem de sindicalistas. Logo, precisamos ao menos de um paliativo.

No caso, quer me parecer que o melhor tapa buracos para a situação seria permitirmos ao menos um arremedo da livre negociação de contratos individuais: critérios produtivistas (e, portanto, discriminadores) de remuneração.

Quando uma universidade contrata um professor, ela tem em vista uma função para ele. Na verdade, são basicamente três funções: pesquisa, ensino e extenção. Pois bem, que cada professor seja remunerado de acordo com o grau de excelência de sua produtividade nesse tripé que sustenta uma universidade.

Suponha que duas pessoas sejam contratadas para plantarem batatas. Se uma delas produz mais e melhores batatas, é razoável que ela o faça em virtude da expectativa de alguma distinção com relação ao que produz menos batatas ou piores batatas. A bem da verdade, se o contratante confere o mesmo tratamento e reconhecimento a todos os contratados, desconsiderando o desempenho de cada um, é natural que a produção de todos seja nivelada por baixo. Quem produziria mais se a perspectiva é de recompensa igual?

Respondendo à pergunta do parágrafo acima: o professor que ama o que faz produz mais do que aquele que faz somente pela recompensa. Contudo, como poucos trabalham por amor, o resultado é que muitos trabalham menos do que deveriam e poderiam se fossem devidamente motivados por ganhos financeiros proporcionais à sua produtividade.

Em suma, não me parece que a discussão mais relevante seja: quanto deve ganhar um professor universitário? Mas, sim: quais devem ser as diferenças salariais entre os professores universitários de modo que eles sejam motivados a uma produtividade cada vez maior? Por sinal, eu iria além e defenderia a vinculação entre produtividade e estabilidade, de tal forma que professores não poderiam escolher a completa estagnação, como alguns escolhem mesmo que isso implique a abdicação de maiores ganhos financeiros.

Com um plano de carreira fortemente pautado por cobranças de produtividade, ainda que os professores se julgassem mal remunerados, dificilmente seria tão fácil para o governo retratá-los como uma classe privilegiada perante o restante da população. O que estaria em jogo, no fundo, não seria nem mais uma classe, mas os indivíduos que a compõe. Há que se tratar de modo desigual os desiguais. O mercado saberia muito bem disso.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Platão, Kant, Bruce Wayne e nosso exibicionismo moral


O final do penúltimo filme do Batman já havia me feito lembrar de Platão de duas maneiras. Primeiro, porque contam uma mentira para o povo em nome da manutenção da ordem justa na cidade de Gotham, o que, naturalmente, nos remete à estratégia platônica da criação de toda uma mitologia para ser ensinada ao povo para que cada grupo respeite o lugar social que lhe caberia em uma cidade justa. Mas isso me importa menos. O que achei mais interessante foi o fato do Batman ter terminado o filme, não apenas sendo justo, mas parecendo injusto.

Sabemos que, para Platão, o "supra-sumo da injustiça é parecer justo sem o ser", o que seria o caso do promotor criminoso cujos crimes foram assumidos pelo Batman. Já o Batman seria então aquele personagem platônico que, "sem cometer falta alguma", teve "a reputação da máxima injustiça". Sempre nas palavras da República de Platão, a pedra de toque da justiça seria o fato desse alguém se recusar a "vergar-se ao peso da má fama e suas consequências", continuando a ser justo, mesmo parecendo injusto.

Ora, claro que, quando Platão nos pergunta qual deles - o justo com aparência de injusto ou o seu oposto - foi o mais feliz, ele formula seu problema dentro de um quadro conceitual bem diferente do kantiano. Porém, quer me parecer que, também para Kant, o mesmo modelo funcionaria como pedra de toque da justiça: continua em jogo saber se o homem justo continuaria a ser justo mesmo que não pudesse colher benefícios de sua justiça, isto é, mesmo que ele não tivesse a aparência de homem justo, que, sem dúvida, mesmo em uma sociedade corrupta e corrompida como a nossa, ainda tem lá suas vantagens.

É neste contexto filosófico em que poderíamos falar da discussão em torno da pureza do móbil moral que a trilogia do Batman cumpre um papel relevante nos nossos tempos. Eu fico imaginando se o imbecil que atualiza o status do Facebook dizendo que foi doar sangue, por exemplo, não fica envergonhado ao sair do cinema após ver o Batman. É impressionante como as redes sociais, sobretudo, o Facebook, fizeram aflorar um exibicionismo moral como poucas vezes deve ter existido. Todo mundo quer ser herói! Um vai salvar os gansos do foie gras, outro vai acabar com o aquecimento global andando de bicicleta... e por aí vai. Cada um faz propaganda da própria vida como um exemplo a ser seguido para a salvação da humanidade.

Enquanto isso, o Batman, que é o Batman, nem sequer salva o planeta, ao contrário do meu amigo do Facebook, que avisa que faz xixi no banho pelo bem das gerações futuras. Batman apenas salva Gotham, e olha lá. Acima de tudo, o herói é o próprio Bruce Wayne, na medida em que, quando o Batman finalmente ganha a fama de justo, então ele se recusa a se aproveitar dela. Diz que o Batman deve ser um símbolo, e não um homem.

Para completar meu regozijo com a trilogia, a grande vilã do último filme, desculpem o spoiler, é... ha ha ha... uma ambientalista, super preocupada com um mundo sustentável, energia limpa e blá blá blá. Adorei! Melhor que isso, só mesmo o capanga da vilã usando um discurso revolucionário esquerdista, típico dos vilões reais da América do Sul: "o poder para o povo, para os oprimidos". O que, como era de se esperar, significa o poder para ele mesmo e a tirania sobre todos os que se voltarem contra ele.

Enfim, deixa eu contar também o fim do filme, o Bruce Wayne vai lá, acaba com a revolução em Gotham, diz que o verdadeiro herói é aquele que tem o gesto mais simples, como o de colocar um casaco nos ombros de uma criança, depois, explode uma bomba atômica longe da cidade e... pasmem, não atualiza o perfil dele no Facebook para contar nada disso ;)