terça-feira, 7 de outubro de 2014

Libertarianismo e federalismo


Certos ideais políticos, por sua própria natureza, não são exequíveis por meio da prática da política partidária. É verdade que, no Brasil mesmo, temos partidos socialistas extremistas, que negam a legitimidade do regime democrático, porém, valem-se dele para divulgar suas ideias. Talvez, a médio ou longo prazo, essa possa até ser uma alternativa também para libertários. Seja lá como for, parece-me que a principal atuação política de um libertário deva ser o convencimento de que soluções estatais nunca são as melhores soluções para nossos problemas, seja do ponto de vista moral ou do ponto de vista pragmático. Em suma, em vez de fundar um partido, parece fazer mais sentido que o libertário dê sua contribuição a um movimento que auxilie mais e mais pessoas no entendimento de que, não, a vida não é o voto. Penso que a religião cívica precise ser abandonada para que surja uma nova sociedade verdadeiramente livre.

Contudo, este post consiste em uma reflexão sobre o tipo de ideal que poderia ser coerentemente perseguido no âmbito da política partidária para facilitar a transição entre o regime democrático e uma sociedade livre. Aliás, antes de mais nada, para não pressupor que o leitor é um profundo conhecedor de minhas irrelevantes ideias, permita que eu esclareça o que entendo por uma sociedade livre. Vejo assim toda sociedade em que indivíduos não são coagidos a tomar parte de quaisquer empreendimentos cooperativos, ou seja, sociedades em que as associações são todas voluntárias. Isso significa que, em vez do direito ao voto, uma sociedade livre reconheceria o direito do indivíduo não-agressivo de não aderir a um governo a menos que ele assim desejasse. A consequência prática seria o fim dos impostos, dado que toda contribuição teria que ser voluntária, e a permissão de governos concorrentes dentro de um mesmo território. 

Enfim, agora, deve ficar mais claro por que eu disse acima que o caminho para tal sociedade não é a política partidária. Não se trata aqui de um projeto eleitoralmente concorrente para um governo democrático, mas do fim da própria democracia, no sentido em que a maioria não teria nenhuma legitimidade para legislar sobre uma minoria. Em uma sociedade livre, cada adesão a um governo teria que ser conquistada pelo convencimento efetivo daquele indivíduo. Para cobrar a adesão do indivíduo a um governo, não bastaria dizer que o indivíduo poderia ter votado no chefe daquele governo e, se não o fez, foi porque não quis.

Voltando agora ao ponto central do post, dentro do regime democrático, há Estados mais e menos nocivos à liberdade, ou seja, há Estados que se intrometem mais e há Estados que se intrometem menos na condução da vida dos indivíduos. Da mesma maneira, há Estados que permitem que os indivíduos que compõem uma mesma comunidade local gerenciem suas vidas e há Estados que centralizam e uniformizam todas as decisões.

Curiosamente, a história da federação norte-americana oferece boas razões para que defensores da liberdade defendam um poder central intervencionista, contra poderes locais. O federalismo que os pais fundadores dos Estados Unidos tentaram proteger a todos custo, antes de aceitarem uma mesma constituição, caiu em desgraça na guerra civil daquele país. Ocorreu que o poder central precisou interferir no direito dos estados para libertar escravos. Desde então, quando se usa essa expressão - "direto dos estados" - nos EUA, implica-se a defesa do racismo. 

Por motivos diferentes, mas também por influência da história americana, a defesa de maior autonomia dos estados na federação brasileira também é moralmente mal vista por nossas bandas. Em geral, nossa peculiaridade é que, quando se fala em um verdadeiro federalismo, lembra-se de movimentos separatistas, que, via de regra, são atrelados ao preconceito contra o povo nordestino. Com isso, prospera um projeto de governo que centralizou as decisões como nunca se viu antes na história desse país. Não se trata apenas de enfraquecer estados e municípios do ponto de vista orçamentário, como se a esfera federal fosse menos suscetível a casos de corrupção e má gestão de verba pública. Trata-se de uniformizar um modelo de sociedade, por exemplo, através da educação, com um MEC cada vez mais poderoso. A ideia de um mesmo exame garantir a admissão em universidades de norte a sul de um país continental é apenas a ponta do iceberg. O fato é que temos um governo que vê Brasília como o único cérebro do país. As demais regiões - consideradas corruptas ou simplesmente inaptas - devem apenas implementar decisões tomadas em Brasília. 

Ora, não há problema, dirão, que toda decisão relevante para esta nação seja tomada em Brasília, porque, afinal, todos estamos representados em Brasília. Será? Supondo, em prol do argumento, a legitimidade do conceito de representação política, quem está mais próximo de você: o vereador do seu município ou o deputado federal que sua cidade elegeu? Aliás, meu caro, sua cidade elegeu algum deputado federal? Se elegeu, responda-me quantos votos foram necessários para a eleição do deputado federal de sua região e quantos votos são necessários para a eleição de um vereador em seu município. Agora, diga-me em qual eleição o seu voto tem mais valor (tomando por valor o poder de influenciar o resultado da eleição): a eleição de um deputado federal ou a eleição de um vereador?

Parece-me claro que, quanto mais local o poder, maior o poder de cada indivíduo. Isso, é verdade, não impede que vizinhos sejam déspotas para com uma minoria local. Todavia, a possibilidade de que o voto da maioria viole direitos individuais é um problema inerente à democracia, e não ao federalismo, como a história pode ter feito parecer.

Do mesmo modo que indivíduos podem se associar para formar uma comunidade política local, o federalismo é uma associação de associações. Assim, não se pode respeitar o indivíduo sem respeitar cada associação. Naturalmente, assim como no caso do indivíduo, respeito implica, primeiramente, o reconhecimento do direito de deixar a associação. Portanto, sim, um libertário deve sempre defender direitos separatistas. Isso é diferente, entretanto, de defender a efetiva separação. Ao defender, por exemplo, o direito do indivíduo de não aderir a um governo, sem que ele tenha que deixar o território daquele governo, eu não defenderia que os indivíduos não continuassem como membros dos governos que lhe reconhecem o direito de saída (se existissem, claro!). É como uma esposa que defenda o direito ao divórcio, ainda que ela própria não pretenda se divorciar. São coisas diferentes! O ponto é que, se o indivíduo tem o direito de deixar uma associação, uma associação de indivíduos também deve ter o direito de deixar uma federação.

Naturalmente, na realidade, não se reconhece o primeiro direito acima, tampouco se reconhecerá o segundo. Como proceder então, na realidade, para que uma federação diminua o poder tirânico exercido sobre as associações que ela coage a permanecerem como parte dela? Creio que Nozick nos dê bons subsídios para pensarmos no assunto, quando discute o princípio da equidade no cap. 05 de Anarquia, Estado e Utopia, ainda que o ponto dele seja a associação de indivíduos, não a federação de associações. No caso, dois pontos do argumento dele me interessam aqui, neste cenário em que sabemos que os estados não serão autorizados a deixar a federação, o que é imoral, mas, infelizmente, é real.

O primeiro ponto (adaptando) é que, se uma associação precisa arcar com um ônus, restringindo sua autonomia em nome de um benefício que ela supostamente colhe da participação na federação, então o benefício tem que ser maior do que o ônus. Obviamente, seria abertamente agressora a federação que admitisse que obriga um determinado estado a arcar com um prejuízo por ser parte sua, mas, mesmo assim, não vai permitir que esse estado deixe a federação. 

É fácil ver, porém, que será difícil encontramos um critério objetivo que prove que, sob qualquer ótica, o benefício de participar de uma federação cobre o custo implicado por isso. Tendemos a pensar em benefícios econômicos. Porém, os indivíduos de uma associação podem sentir tamanho mal-estar por terem que obedecer leis cunhadas fora da comunidade restrita com a qual eles se identificam que isso poderia ser o bastante para dizermos que o benefício de ser parte da federação não cobre o custo. Assim, esse primeiro ponto não nos ajuda muito, porque ele nos remete novamente à necessidade de consultarmos a associação sobre seu desejo de permanecer como membro da federação. Só ela pode medir o custo e o benefício, afinal!

O segundo ponto (também adaptado), talvez, nos ajude um pouco mais. Os benefícios podem cobrir os custos da inclusão na federação, mas podem fazer isso no limite, a ponto de ser quase indiferente para o estado se ele participa ou não da federação. Contudo, podem haver outros estados que, em sua própria avaliação, colhem muito mais benefícios e não estão minimamente dispostos a deixar a federação. Nesse caso, sempre partindo do pressuposto de que os estados não têm permissão para deixar a federação, é justo cobrar de cada estado o mesmo ônus?

Pensemos em termos puramente materiais para facilitar a comparação. Suponha que dois estados possuem o mesmo direito de reivindicar ajuda da guarda nacional em caso de transtornos domésticos. Porém, só um desses estados possui uma ampla rede de universidades federais em seu território, enquanto o outro tem que usar parcos recursos próprios se quiser se equiparar ao primeiro estado em termos da oferta proporcional de um número vagas de ensino superior para sua população. É justo que os dois estados arquem com o mesmo ônus para fazerem parte da federação? 

Parece-me, enfim, que uma regra mínima de moralidade em uma federação seria a repartição igualitária de custos e benefícios. A violação dessa regra faz valer uma política redistributiva entre estados que só faria sentido em casos bem claros de restituição. Por exemplo, durante as décadas 1 e 2, o estado A recebeu mais benefícios do que o estado B. Logo, para que haja retificação da injustiça, durante as décadas 3 e 4, o estado B receberá mais benefícios do que o estado A, na mesma proporção. Não basta provar qual estado precisa de mais recursos para justificar a desigualdade na distribuição dos benefícios e a igualdade na distribuição do ônus (ou vice-versa), a menos que você esteja disposto a demonstrar que um estado tem o dever de prover o outro, ainda que ele nada tenha tirado desse último. Boa sorte com isso!

No mais, como dito acima, quanto mais a federação delegasse aos estados em termos de legislação, tanto melhor, dada a maior proximidade entre os vereadores e deputados estaduais com relação à população que os elege. Você pode objetar a essa ponderação, observando que as pessoas se lembram com mais facilidade de quem votaram na esfera federal.  Mas isso ocorre, exatamente porque as pessoas nem sabem quais as parcas atribuições dos poderes municipal e estadual, e, quando sabem, reconhecem, com razão, que eles quase nada podem sem os repasses federais. Daí a importância do deputado federal, como uma espécie de soldado responsável por trazer (de volta?) para casa uma pequena parte dos muitos recursos concentrados na união. Inverta-se a lógica e o eleitor saberá, não apenas o nome, como o endereço do seu vereador. Já seria alguma coisa...

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Contra Hobbes

 

Hobbes é bem conhecido por sua defesa da racionalidade da guerra preventiva. De fato, logo no início do capítulo XIII do Leviatã, ele defende a razoabilidade da antecipação do ataque como um requerimento da auto-conservação.

there is no way for any man to secure himself so reasonable as anticipation; that is, by force, or wiles, to master the persons of all men he can so long till he see no other power great enough to endanger him: and this is no more than his own conservation requireth, and is generally allowed.

A razoabilidade da antecipação do ataque está diretamente relacionada à ausência do poder estatal. Em outras palavras, tratar-se-ia do que a razão recomenda quando o único poder a ser temido é o poder singular de outro indivíduo. A ideia é que, desejosos que somos das mesmas coisas (escassas) e equivalentes que somos em poder (enquanto indivíduos), nunca podemos nos assegurar de que não seremos atacados. Assim, devemos aumentar o nosso poder sobre os demais sempre que possível:

such augmentation of dominion over men being necessary to a man's conservation, it ought to be allowed him.

O que me interessa em especial neste post, porém, é um argumento similar que Hobbes desenvolve no capítulo seguinte, sobre contratos. Segundo esse argumento, não seria recomendado pela razão que fizéssemos primeiro a nossa parte em um contrato, na expectativa de que a outra parte também desempenhasse o que lhe cabe, a menos que houvesse um poder comum forte o bastante para obrigar esse desempenho.

If a covenant be made wherein neither of the parties perform presently, but trust one another, in the condition of mere nature (which is a condition of war of every man against every man) upon any reasonable suspicion, it is void: but if there be a common power set over them both, with right and force sufficient to compel performance, it is not void. For he that performeth first has no assurance the other will perform after, because the bonds of words are too weak to bridle men's ambition, avarice, anger, and other passions, without the fear of some coercive power; which in the condition of mere nature, where all men are equal, and judges of the justness of their own fears, cannot possibly be supposed. And therefore he which performeth first does but betray himself to his enemy, contrary to the right he can never abandon of defending his life and means of living.

Quero chamar sua atenção, em especial, para as últimas linhas, que refletem o caráter normativo ou prescritivo do ponto de Hobbes: na ausência do Leviatã, se um agente A beneficia outro agente B na expectativa de ser por ele também beneficiado, A trai seu próprio interesse, contraria um direito que ele não pode abandonar, a saber, o direito de defender a própria vida. Pelo que vejo, a justificativa para essa alegação é a falta de uma garantia de que B cumprirá sua parte. É claro que é possível que B cumpra sua parte. Mas, não havendo tal garantia, quando A cumpre primeiro a sua parte, ele arca com um custo para sua auto-conservação que bem pode não lhe render qualquer fruto. Daí que seja dito por Hobbes que, no estado de natureza, aquele que confia no outro trai a si mesmo.

Tendo sempre em vista que o fundamento de todas as nossas obrigações naturais, bem como o único fim de nossos atos voluntários é a auto-preservação, a prescrição da razão, no estado de natureza, é que não façamos contratos, mas sim ataquemos, sempre que tivermos uma oportunidade. Ora, como esse estado de coisas, por si mesmo, acaba contrariando nosso interesse de auto-preservação, devemos alterar essa lógica pelo único meio possível: a criação de um poder comum que puna o início de violência e obrigue o cumprimento de contratos.

Há vários pontos do argumento de Hobbes dos quais discordo. Por exemplo, Hobbes desconsidera por completo a possibilidade de que seres humanos sejam sujeitos autônomos dignos de respeito, a ponto de poder haver uma proibição moral de que sejam usados como simples meios no interesse de minha auto-preservação, ou de minha leitura do interesse deles próprios. Essa consideração poderia alterar toda a lógica que nos conduz aos braços do Leviatã, pois, por mais prudente que fosse a submissão a ele, supondo que seres humanos sejam moralmente invioláveis, eles não poderiam ser submetidos a um poder maior com base em um argumento prudencial.

Ademais, posso conceber um direito natural de auto-preservação, mas não uma obrigação. Por que eu teria o dever de viver? Por que eu não poderia escolher o estado de natureza simplesmente alegando que prefiro liberdade à segurança? Note que a pressuposição da busca por auto-preservação é o que fundamenta as prescrições racionais em Hobbes. Não vejo qual a justificativa da maior racionalidade da própria busca por segurança. Em vez disso, vejo apenas a afirmação dogmática de que tal fim seria natural.

Por fim, ainda que concedamos 1) que seres humanos não tenham valor moral e, portanto, possam ser submetidos a um Leviatã em nome de interesses de auto-preservação, e; 2) que a própria auto-preservação seja uma obrigação; ainda percebo algo que não fecha no argumento de Hobbes. Não é mesmo racional firmar um contrato na ausência do Leviatã? É claro que Hobbes tem razão quanto à possibilidade de que o outro não cumpra sua parte. Mas ele parece exagerar ao extremo essa probabilidade, minimizando demais as motivações egoístas para que alguém cumpra um contrato mesmo sem ter sanções legais a temer.

Posso mostrar como obtemos sucesso cotidiano fazendo cálculos diferentes dos cálculos prescritos por Hobbes. Hobbes não nos pediu para que atentássemos a exemplos do cotidiano dentro do Estado ao imaginarmos como seria o estado de natureza? Pois bem, ofereço dois exemplos banais e convido meu leitor a pensar em outros tantos a partir de sua própria experiência.

Em Fortaleza, queria comprar um shorts em uma feira de artesanato. Naturalmente, a feirante não dispunha de um provador. Como ela também não aceitava cartão e eu estava sem dinheiro, ela sugeriu que eu levasse o shorts para o hotel, provasse e voltasse depois com o shorts ou o dinheiro. Quando eu voltei com o dinheiro, ela me contou que sempre age assim, sendo que, vez ou outra, as pessoas levam muitas roupas e não aparecem mais. Ela simplesmente decidiu não tomar esses casos como regra e, com isso, segundo ela mesma, tem tido mais ganhos do que perdas. Por que ela estaria traindo a si mesma ao negociar assim?

Já hoje, ocorreu o inverso. Levei uma roupinha da Mel para trocar e o Pet Shop não tinha outra peça para pronta entrega. Deixei a roupinha lá, sem nenhum comprovante, e vou esperar que me liguem quando a roupinha chegar. Se não ligarem, não tenho como registrar nenhuma queixa contra a loja perante o Leviatã. Mesmo se tivesse, não compensaria o trabalho.

Bom, o que quero dizer com isso é que o cotidiano está repleto de exemplos de contratos que cumprimos mesmo sabendo que não há possibilidade de "enforcement". Em outras palavras, depois de nos beneficiarmos do contrato, nós ainda fazemos a nossa parte, conscientes de que não sofreríamos uma punição legal se não a fizéssemos. Ou, então, quando do outro lado, nós confiamos que o outro cumprirá sua parte depois de termos feito a nossa.

E nós não agimos assim, necessariamente, por sermos bons, embora escrúpulos morais e laços afetivos possam ter seu papel aqui. Nós agimos assim, por exemplo, porque queremos seguir firmando esse tipo de contrato. É do nosso interesse egoísta que contratos assim sejam realizados e, mais ainda, que confiem que vamos fazer nossa parte neles. Infelizmente, essa é uma possibilidade que Hobbes mal contempla. Nesta passagem, é que ele me parece chegar mais perto dela:

The force of words being (as I have formerly noted) too weak to hold men to the performance of their covenants, there are in man's nature but two imaginable helps to strengthen it. And those are either a fear of the consequence of breaking their word, or a glory or pride in appearing not to need to break it. This latter is a generosity too rarely found to be presumed on, especially in the pursuers of wealth, command, or sensual pleasure, which are the greatest part of mankind. The passion to be reckoned upon is fear.

Ora, eu não falava acima de um interesse em parecer não precisar quebrar pactos por orgulho. Eu falava do interesse pragmático de querer celebrar novos pactos no futuro. É esse interesse que parece ter escapado a Hobbes justamente no capítulo que ele dedica à lógica dos contratos. A sanção para aquele que não faz sua parte após ser beneficiado pelo outro é não mais poder buscar ajuda nesse outro ou naqueles que tiveram ciência do seu comportamento.

Pelas considerações acima, penso que Hobbes está simplesmente errado ao generalizar e tratar todo e qualquer contrato de confiança como contrário ao nosso interesse racional na ausência do Leviatã. No caso, a feirante de Fortaleza me parece mais sábia do que esse grande filósofo que legou um preconceito tão arraigado na filosofia política que o sucedeu. Talvez, os filósofos devessem seguir o conselho do próprio Hobbes e observar melhor o cotidiano. Veriam que trancamos nossos bens, sim, mas também selecionamos pessoas em quem confiamos, mesmo quando a espada do Leviatã não pode alcançá-las por nós.

 

 

quarta-feira, 21 de maio de 2014

O Estado de Bem-Estar Social como uma Confusão Conceitual


No último encontro de seu grupo de pesquisa, Aguinaldo comentava como Kant é necessário para a organização de sua vida mental. Essa constatação não poderia ser mais verdadeira para mim. Discordando ou não de Kant quanto ao conteúdo de teses, o fato é que ele oferece o referencial teórico, o quadro conceitual pelo qual consigo me orientar no pensamento, elaborando questões e buscando respostas para elas. O que tenho em mente fica claro se tivermos em vista, por exemplo, a importante distinção entre deveres perfeitos e imperfeitos. Aliás, é esse o ponto: Kant sempre tem em mãos uma distinçãozinha que evita que caíamos em desgraça, ou seja, em confusão.

É verdade, porém, que a distinção nem sempre é ela mesma tão clara. Muita bibliografia já foi produzida, por exemplo, sobre o cerne da diferença entre deveres perfeitos e imperfeitos. Obviamente, não é minha intenção entrar em debates hermenêuticos neste espaço. É a intuição fundamental da distinção que me interessa. Entendamos, então, por deveres perfeitos, os deveres relativos a práticas de ações que podem ser diretamente especificadas a partir de um procedimento formal. Isso implica em deveres estritos, que não deixam margem para o juízo moral do agente. Por exemplo, não se pergunta para com quem temos o dever de não cometermos fraude, ou quais assassinatos não devemos cometer. Tendo em vista uma investigação que Nozick desenvolve muito proximamente ao espírito da ética kantiana da qual quero me apropriar livremente aqui, podemos dizer que deveres perfeitos dizem respeito aos deveres que temos de não respondermos ao valor da pessoa humana como se ele fosse um desvalor. Em outras palavras, deveres perfeitos são deveres de não tratarmos o valor como se ele fosse algo que pudesse ser destruído. Comportamentos destrutivos ou agressivos à pessoa humana são, portanto, comportamentos absolutamente reprováveis.

Agora, há deveres imperfeitos, no sentido não de deveres que podemos deixar de lado, mas no sentido de deveres que comportam uma latitude para a decisão do agente quanto aos casos de aplicação. Por exemplo, provavelmente, você acredita que tenhamos algum dever de cooperação ou, simplesmente, de caridade. No entanto, da aceitação desse preceito, não decorre que tenhamos o dever de ajudarmos a toda e qualquer outra pessoa, em todas e quaisquer circunstâncias, com relação a todas e quaisquer necessidades suas. Quer dizer, não fica determinado o que devemos fazer com relação a quem, pois uma coisa é termos um dever lato de beneficência e outra coisa é termos o dever estrito de darmos R$100,00 ao mendigo João que nos aborda no semáforo da esquina X. Quanto a esses deveres, cabe nossa ponderação pessoal com respeito a quem devemos ajudar, em que circunstâncias, com o que... Por isso, do seu dever lato de beneficência não decorre um direito meu de ser assistida por você.

A natureza desses deveres imperfeitos também ficará mais clara se eu continuar abusando de Nozick. São deveres para que eu responda ao valor da pessoa humana como algo de valor, procurando mantê-lo em existência. Naturalmente, se eu não faço isso, isto é, se eu me omito e deixo de evitar que o valor seja destruído, isso não implica que eu mesma tenha destruído o valor. Por isso, são deveres profundamente diferentes com relação aos deveres perfeitos. Não tomar interesse pelo valor como algo de valor não é o mesmo que agir no sentido de destruí-lo como se ele não tivesse valor ou fosse mesmo algo de nocivo. A indiferença por uma pessoa não é idêntica a uma atitude pela qual eu a tome por uma coisa e a use como tal. Eu nunca posso usar pessoas como se fossem coisas, mas, por vezes, posso ser indiferente a elas, como quando passo por estranhos na rua sem sequer atentar para a existência deles. A minha indiferença não colabora para a manutenção do valor das pessoas, mas também não é destrutiva desse valor.

Enfim, agora, por mais que eu tenha deixado possíveis questões em aberto acima, afinal, isto não é um livro de filosofia, já posso delinear meu ponto sobre o Estado de Bem-Estar Social. Os seus proponentes tomam deveres imperfeitos como se fossem perfeitos. É como se eu tivesse o dever estrito de manter o valor de todos, do mesmo jeito que tenho o dever estrito de não destruir o valor de ninguém. Ora, como eu poderia colaborar para manter o valor de todos? Parece claro que um tal dever estaria além da capacidade humana. E é por isso mesmo que o proponente do Estado de Bem-Estar Social não acredita que associações voluntárias possam fazer as vezes do Estado no tocante à beneficência. Só o Estado pode tirar um pouco de todos e criar um fundo disponível para o benefício de todos. Mas se a ação beneficente fosse voluntária, note que eu, necessariamente, teria que escolher a quem ajudar, com qual causa colaborar e com quanto. É essa dinâmica do dever imperfeito que o proponente do Estado de Bem-Estar Social não aceita. Ele quer implantar aqui a dinâmica estrita dos deveres perfeitos.

Para defender seu caso contra a distinção entre deveres perfeitos e imperfeitos, o advogado do Estado de Bem-Estar Social carrega nas tintas e imagina casos extremos em que qualquer sujeito julgaria estar diante de uma instância de aplicação do dever imperfeito. Por exemplo, imagine que você seja o único transitando por um dado caminho à noite. O lugar é deserto e você o procurou exatamente porque queria ficar sozinho. Você está, portanto, ciente de que as chances de mais alguém passar por ali são mínimas. Trata-se também de uma época de inverno rigoroso, sendo que o frio vai se intensificando conforme a noite cai. Então, você ouve o choro de um bebê e percebe, à beira do caminho, que ele foi abandonado ali à própria sorte. Ora, se você não socorrer o bebê, é muito provável que ele não resista até o amanhecer. O que você deve fazer? 

É claro que essa decisão não é como a decisão de doarmos R$10,00, R$50,00 ou nada para um determinado pedinte no semáforo. O contexto reúne circunstâncias tão extremas que facilitam o juízo moral do agente. Sabemos que devemos cumprir o dever imperfeito ajudando o bebê. Mas, veja bem, nem por isso, ele seria então um dever perfeito. A diferença não foi anulada. A minha omissão no caso de um bebê que não coloquei no mundo não é equivalente a um ato meu visando assassiná-lo. Eu não seria responsável pela morte dele simplesmente por ter o poder de evitá-la e escolher não fazê-lo. Apenas era um caso claro em que eu tinha que cumprir o dever de manter o valor da pessoa humana em existência. Era um caso claro em que a resposta apropriada ao valor não poderia ser a indiferença. Mas esse caso atípico, excepcional não pode ser convertido em uma regra que anule a latitude própria dos deveres imperfeitos. No máximo, inclusive, a atenção para com casos assim poderia vir a justificar a criminalização da omissão de socorro, mas não a imposição da cooperação social em geral.

Mas será que é apenas pela sua latitude inerente que deveres imperfeitos não podem ser objeto de imposição? Quero encerrar esse texto dizendo que há algo mais aqui. Como Nozick bem nota na última entrevista que deu em vida, aquela que gostam de esquecer pelo fato dele se reafirmar nela como libertário, quando impomos o que estou chamando aqui de deveres imperfeitos estamos ferindo o que estou chamando aqui de deveres perfeitos. A imposição de que alguém responda positivamente ao valor, mantendo-o em existência, implica em tratar esse alguém como sendo ele próprio algo sem valor, algo que pode, portanto, contra sua vontade, ser o mero recurso ou instrumento de minha própria boa ação. Por isso, a única forma consistentemente moral de respondermos positivamente ao valor é a cooperação voluntária, não o Estado de Bem-Estar Social ou algo que o valha.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Orange is the new black, ou por que cadeia não é melhor que linchamento


Depois de House of Cards mostrando a política pelo que ela é, o Netflix faz mais um ponto pela causa da liberdade. Falo de Orange Is The New Black. É inevitável assistir a série e pensar na hipocrisia de quem se choca com linchamentos para acusados de crimes violentos, enquanto tolera o encarceramento de indivíduos que não cometeram violência alguma. Uma coisa não é melhor do que a outra do ponto de vista da violação dos direitos individuais. 

No entanto, para dizer a verdade, o que mais me faz refletir quando veja a série nem é o modo como o Leviatã encarcera uma mera comerciante e a transforma em alguém que, agora sim, precisa praticar violência para sobreviver. Nisso, eu sempre penso quando vejo um noticiário qualquer. O erro terrível que me angustiou enquanto eu acompanhava a primeira temporada da série foi o próprio encarceramento como pena. E isso, justamente, porque a série não mostra condições materiais terríveis na prisão. Pelo contrário, a violência dos carcereiros contra as presidiárias não é um ponto explorado. Não há estupros (exceto por um caso forjado para incriminar um carcereiro) ou espancamentos, por exemplo. As condições de limpeza também parecem razoáveis. Não há super lotação. A comida não nos lembra dos casos do Maranhão. Em suma, parece que estamos diante do melhor que um presídio poderia ser, dadas as circunstâncias. E é assim que você nota como o cárcere, por si só, é aviltante para a dignidade humana.

Muita gente acredita que basta que a dor física não seja infringida e, pronto, a pena é digna. Eu não entendo o porquê dessa concepção. A autonomia do ser humano, a meu ver, é muito mais atingida quando ele perde o direito de decidir quando ir ao banheiro, o quanto comer, enfim, como conduzir cada mísero detalhe de sua vida, do que quando ele é submetido a um castigo físico passageiro. Em outras palavras, quer me parecer que uma chibatada nas costas seja menos humilhante do que ter que pedir autorização para tomar um banho. O cárcere, em suma, foi planejado para poupar o corpo, mas tirar do indivíduo exatamente a capacidade que o torna humano: a autonomia.

Por essa razão, defendo que o cárcere seja adotado, não como pena, mas como proteção da sociedade em casos extremos, quando o indivíduo, por exemplo, mostra-se um assassino ou estuprador em série. Mas também não estou defendendo o retorno de penas físicas. Penso que a melhor maneira de punir um indivíduo que não represente um perigo real para a integridade física dos demais seja o trabalho: ele causou um mal, terá que produzir um bem proporcional. Por exemplo, um indivíduo que roubou o equivalente a 50 mil reais teria que reparar esse prejuízo e, posteriormente, como pena, trabalhar por um tempo proporcional ao dano causado. O saldo negativo teria que se tornar um saldo positivo proporcional. Afinal, se apenas zerássemos a conta, não haveria punição, mas só reparação. Naturalmente, como não penso que o indivíduo deva ser apartado da sociedade e como ele precisaria se sustentar nela. Eu penso esse trabalho comunitário, digamos assim, para seu tempo livre. E se ele se recusasse? Bem, então, eu penso que ele deveria ser tratado como se trata hoje um fugitivo de um presídio. Em último caso, poderiam usar munição letal contra ele.

Penas alternativas como o trabalho comunitário também têm inúmeras vantagens, se pensarmos de uma forma mais consequencialista. Um detento perde seu contato com a realidade. O mundo dele passa a ser o aquário da prisão. É óbvio que o retorno será muito difícil, para muitos, até impossível. É melhor para todos que a sociedade veja alguém que, episodicamente, violou um direito como uma pessoa qualquer que, nem por isso, representa um risco maior que qualquer outro. Isso só acontece se a pessoa não é retirada do convívio com as demais. A prática de um crime não deveria significar a perda de todos os outros direitos, a anulação da pessoa enquanto tal, mas apenas a necessidade de uma restrição temporária à sua liberdade, até que você retribua com um bem o mal que fez.

Pelos mesmos motivos, eu defenderia que o trabalho penal fosse praticado na companhia de outros empregados comuns, e não de outros condenados. Por sinal, não me parece que reunir condenados em um mesmo espaço seja uma ideia minimamente inteligente. Além da possibilidade de que o detento adquira novas habilidades criminosas e conheça futuros comparsas, muitas vezes, ele ainda estará recebendo uma pena maior do que a privação da liberdade de ir e vir, já que, além de ser submetido às ordens do sistema em si, ele ainda poderá ser submetido às ordens dos demais. 

Eu não conheço caso de presídio eficiente no que tange à proteção de um detento quanto aos desmandos de outro, sendo que ninguém foi condenado a isso. Na verdade, eu não vejo sequer vontade para o enfrentamento do problema, visto que grande parte da população acredita que direitos humanos não devem se aplicar a condenados. Aliás, é interessante notarmos que, uma vez presidiários, o ladrão de galinha e o maior dos facínoras passam a ser o mesmo diante da sociedade. É interessante a esse respeito a cena de Orange Is The New Black, em que um carcereiro experiente ensina a mais jovem que ela não deve se referir a detentas pelos nomes, mas apenas como "detentas", porque, para o sistema, as detentas devem sentir que são todas iguais. Isso mostra o desejo de aniquilação da personalidade. Esse projeto, infelizmente, é bem sucedido, porque nós, aqui fora, também passamos a pensar em todos eles, lá dentro, como iguais.

Enfim, posso estar errada. Como não sou especialista, já devem existir milhões de propostas melhores do que a minha. Meu objetivo com este post é apenas te convidar a refletir um pouco sobre o absurdo do sistema penitenciário estatal, que massacra milhões mundo afora, em vez de ficar aí choramingando apenas por algumas notícias isoladas de linchamento. E veja que eu nem falei das condições das cadeias e presídios do Brasil, que fazem as instalações da série parecerem um palácio...

domingo, 30 de março de 2014

Pode um argumento ser coercivo?

Desde que me mudei para a UEL, com muito gosto, tenho lecionado uma disciplina chamada "filosofia e argumentação" para várias turmas do curso de direito. Assim que assumi as primeiras turmas, em uma conversa informal, eu comentava com um amigo o modo como vejo as diferenças essenciais entre a maneira como o advogado faz uso de um argumento e a maneira como um filósofo o faz. Para o advogado, dizia eu, é essencial a persuasão de um outro. Como é trivial constatar, mais do que ele próprio estar convencido, o advogado deve convencer. Em suma, sua missão é causar a existência de uma crença na mente de uma ou mais pessoas, crença esta que, curiosamente, nem precisa ser compartilhada por ele próprio. Já o filósofo, dizia eu para protesto veemente de meu amigo, não precisa ter a menor preocupação com a persuasão.

Naquele momento, eu não tinha em mente algum juízo de valor negativo sobre um filósofo que tentasse persuadir alguém sobre uma tese filosófica. Apenas me parecia uma tarefa alheia à sua atividade. Mas, nisso, ocorreu a meu amigo uma tese bastante exótica de Nozick, autor que eu mesma ainda não lia à época. Segundo meu amigo, Nozick acreditaria que a tentativa de persuasão por meio de argumentos contaria como uma forma de coerção. Confesso que nem dei muito bola para essa ideia até alguns dias atrás, quando, por acaso, deparei-me com esse texto de Nozick. E não é que achei que ele faz mesmo algum sentido?

Além de examinar o vocabulário usado em debates na língua inglesa, mostrando as metáforas de força, Nozick atenta para o fato de que, em uma tentativa de prova, visamos fazer com que o outro tenha que consentir com a verdade de uma proposição, quer ele queira ou não. É por isso que, conforme ensino aos meus alunos do direito, ao provarmos algo para alguém, não partimos de proposições escolhidas aleatoriamente, mas sim de proposições que sabemos serem aceitas por nosso interlocutor. A intenção é que ele não possa recusar a proposição que queremos que ele aceite, dado que ele aceita nossa premissa. É assim que, metaforicamente falando, nós o forçamos a consentir com o que queremos.

Ora, neste ponto, você dirá que isso não conta como coerção em qualquer sentido relevante por duas razões: primeiro, o instrumento utilizado é a razão do próprio ouvinte; segundo, mesmo que a lógica o obrigue a assentir com a verdade de uma conclusão (dado o fato dele ter aceito a verdade da premissa), ele ainda é livre para se recusar a acreditar. Naturalmente, Nozick concorda que não se trate aqui propriamente de coerção. Ele diz que persuadir alguém, afinal, não é o mesmo que sequestrá-lo para operar à força seu cérebro, colocando nele uma crença. Porém, há espaço para a analogia com a coerção física. Primeiro, é você quem está conduzindo o processo propositadamente. Daí sua escolha da premissa apropriada à prova: aquela que seu ouvinte aceita. Segundo, há, sim, uma punição para quem não aceita a conclusão, aceitando a premissa: a pessoa será tachada de "irracional".

Claro, essa punição, diz Nozick, é fraca. Eu observo que ela não viola qualquer direito do seu interlocutor, afinal, seu interlocutor não tem o direito de exigir uma avaliação positiva de sua parte. A persuasão por meio de argumentos, penso eu, difere essencialmente das ameaças juridicamente reprováveis, porque, nas últimas, caso o outro recuse dar seu assentimento ao que quero, eu anuncio minha intenção de agredir, diretamente, sua liberdade, ou, ao menos, sua propriedade. Quer dizer, o juridicamente reprovável é o anúncio da intenção de violação de um direito em caso da pessoa que ameaça ser contrariada. Eu não posso ser juridicamente reprovada se eu, simplesmente, anuncio que não falarei mais com você se você não disser ou fizer o que quero. Nozick não explica o ponto dessa maneira, mas parece-me bem consciente dele ao se limitar a dizer que quem força o outro a ter que aceitar uma verdade por meio de argumentos não está sendo "nice". Ademais, quando ele fala em auto-defesa, para esses casos, ele se limita a mencionar a formulação de contra-argumentos, e não, obviamente, o uso de força física contra quem tenta persuadi-lo.

Enfim, eu ainda não tenho certeza se cabe alguma reprovação moral, ainda que não jurídica, a quem tenta me persuadir da verdade de uma proposição p, em que eu não quero acreditar de bom grado. Mas Nozick tem um ponto, ao menos, em dizer que o objetivo do filósofo não é a persuasão. Gosto da metáfora que ele usa ao dizer que a persuasão é uma matéria do departamento de relações externas da minha mente. O que importa, do ponto de vista do meu próprio sistema de crenças, é o que o outro diz, e não se ele acredita nisso ou não. Concordando com isso, antes de ler esse texto, naquela conversa com meu amigo, eu me lembrei de Trasímaco dizendo a Sócrates para responder o argumento, sem se preocupar em saber se ele, o próprio Trasímaco, acreditava na tese defendida ou não. De fato, como diz Nozick, se o cético me disser que estava brincando, isso não muda em nada o problema que ele me traz.

Mas, se filósofos não são advogados, se seu fim não é persuadir o público quanto à verdade de uma tese, qual é, então, seu propósito? Bom, eu tenho me identificado tanto com Nozick, justamente porque, como digo desde o início, eu escrevo este blog para mim, compartilhando-o com outros que podem ter as mesmas angústias. Certamente, se meu objetivo fosse o convencimento de alguém, eu defenderia minhas posições quando compartilham meus posts em debates de internet (na verdade, eu mesma os compartilharia), ou, ao menos, eu aceitaria convites para publicar meus posts em portais de muito maior repercussão que este humilde blog. Não o faço, porque meu objetivo é a inteligibilidade, e não a persuasão. Aliás, acho que, uma vez, li em Lebrun: "encontrar a inteligibilidade, eis o triunfo do filósofo".

Por sinal, por ver a filosofia como a derrota da ininteligibilidade, e não de uma tese adversária, estou encantada com a obra Philosophical Explanations, ainda mais do que estive com Anarchy, State, and Utopia. Na verdade, Philosophical Explanations explica o que muitos não entenderam em Anarchy, State, and Utopia. A respeito desta última obra, Nozick foi acusado de não provar suas teses, pois ele não provou nela que existiriam direitos individuais. Ora, não entenderam que Anarchy, State, and Utopia já era uma philosophical explanation! Ou seja, Nozick queria explicar como seria possível um Estado se acreditamos que os seres humanos possuem certas características empiricamente determinadas e, ainda, são dotados de direitos individuais invioláveis. Quer dizer, ele visa construir uma teoria que compatibilize conjuntos de proposições que, aparentemente, se opõem. Isso não é pouca coisa! Inclusive, se for uma tentativa bem sucedida, refuta o anarquista, que argumenta ser impossível tal compatibilização.

Interessantemente, Philosophical Explanations também joga luz na minha leitura do resultado da primeira parte de Anarchy, State, and Utopia. Como eu já disse neste blog, o que Nozick compatibiliza com direitos individuais não é o que os próprios anarquistas entendem por Estado. É uma "state-like entity". Em Philosophical Explanations, justamente, ele diz que, por vezes, não podemos explicar como é possível exatamente o que a outra parte argumenta ser impossível, mas apenas algo quase tão bom quanto. Muito bem, eu digo que aquela "state-like entity" de Anarchy, State, and Utopia era, para Nozick, algo quase "tão bom" quanto o Estado, e algo que ele teria conseguido compatibilizar com direitos individuais. Em Philosophical Explanations, Nozick vai um pouco além em suas explicações morais, procurando explicar, por exemplo, que podemos ter valor, e, portanto, direitos individuais, mesmo em um mundo causalmente determinado, um problema clássico da história da filosofia. Bom, de minha parte, o que eu quero é entender coisas assim. Naturalmente, toda ajuda é bem-vinda.

 

sexta-feira, 21 de março de 2014

Desafio Ancap

Já repararam como anarco-capitalistas são odiados por boa parte dos libertários que se declaram mini-arquistas? Claro que sim, a pergunta foi apenas retórica. Eu não dou a mínima para nossa impopularidade e, por isso mesmo, gostaria de brincar com ela lançando aqui uma provocação aos libertários adeptos do Estado mínimo. Como sabem, ancaps temos a imagem que temos por, supostamente, acreditarmos que somos os únicos libertários coerentes. Bom, eu gostaria de mostrar que temos bons motivos para nos considerarmos assim, portanto, que não somos pretensiosos.

Primeiramente, considere o seguinte: não classificarei alguém como libertário em sentido mínimo, caso ele não aceite o princípio segundo o qual todos os direitos, em última instância, devem ser redutíveis a direitos individuais. Esse princípio já foi textualmente afirmado até por um certo senador republicano que postula a presidência dos Estados Unidos. É a ele que você, libertário, tem em mente quando diz que o Estado não pode lhe forçar a fazer caridade. Muito bem. Tenhamos esse princípio em mente como o nosso mínimo denominador comum.

Agora, façamos o seguinte experimento de pensamento. Em uma certa sociedade, duas agências de proteção ofertam seus serviços: as agências A e B. A e B publicam os mesmos códigos legais, exceto por uma lei L que pertence aos códigos de B, mas não aos códigos de A. Adicionalmente, ambas publicam o mesmo código processual. Em um julgamento conduzido publicamente de acordo com esses códigos, A impõe a um sujeito S, que não é cliente de B, a mesma sanção que B teria imposto em um caso similar sob todos os aspectos relevantes. Sem afirmar o contrário, B anuncia que punirá A de acordo com L, e age de acordo com esse anúncio. Acusação segundo L: A usou a força no mesmo território em que B atua sem ter sua autorização.

Desafio: reduza o direito de B de punir A a um direito individual.

 

domingo, 2 de março de 2014

Anarquia e lei


Muitos anarquistas gostam de dizer que anarco-capitalistas não compartilhariam seu gênero. No que me diz respeito, a suspeita faz todo sentido. A concessão que faço aos anarquistas têm um sentido bem preciso: eu não acredito que uma associação tenha direitos irredutíveis aos direitos individuais de seus membros. A consequência prática dessa rejeição de direitos especiais à coletividade é a rejeição de um direito ao monopólio da execução do direito. Assim, se eu sou anarquista, então Nozick, por exemplo, também é, já que ele não defende qualquer monopólio de direito. Enfim, isso, eu até já venho explicando neste blog.

Ultimamente, eu tenho pensado nos direitos individuais diante do executor do direito. Meu último post, em que tratei de direitos processuais, já é um exemplo dessa minha preocupação recente. Se pensarmos a execução do direito na forma de um silogismo jurídico em que a premissa maior é a lei, enquanto a menor expressa a averiguação do que fez o indivíduo, juntamente com a demonstração de seu grau de responsabilidade pelo ato, então, no último post deste blog, eu tratei da menor. Eu defendi que ninguém tem o direito de executar o direito sem, antes, provar a culpa do réu para além de toda dúvida razoável. Para tanto, eu me baseei no princípio epistêmico de Nozick, segundo o qual não basta que o indivíduo seja culpado para que você tenha o direito de puni-lo, é preciso também que você seja capaz de provar sua culpa. Naturalmente, da rejeição desse princípio decorreria que não teríamos o direito de impedir alguém de praticar violência contra qualquer outro com base em simples alegações desprovidas de qualquer fundamento.

Neste post, eu quero me ocupar da premissa maior daquele silogismo jurídico: a lei. Ora, eu acredito em direitos naturais, portanto, em leis naturais, no sentido kantiano de princípios a priori ou racionais do direito. Em outras palavras, eu acredito que há leis que são dedutíveis de nossa condição moral - da própria dimensão normativa da existência humana como tal - sendo, por conseguinte, independentes de nossa situação social ou de contratos que tenhamos firmado. Aliás, consiste nisso, e apenas nesse aspecto negativo, a sua "naturalidade". Mas, infelizmente, a precisão do conteúdo desse direito natural, mesmo entre jusnaturalistas, está longe de ser incontroversa. 

Certamente, o problema mencionado acima - a ausência de um consenso sobre o conteúdo do direito natural - não é nenhuma peculiaridade do anarquismo. Se postularmos um direito ao monopólio da execução do direito, nada se resolve. Pelo contrário, o problema fica agravado, porque estaremos submetidos a um poder que, de forma alguma, se pautaria por uma lei incontestável. Dito isso, o que podemos fazer para aplicarmos o direito diante da multiplicidade de interpretações do direito?

Parece-me que, em primeiro lugar, é preciso que seja garantida a segurança jurídica, isto é, é preciso que a lei seja publicada antes de ser aplicada. Você não pode aplicar uma punição sem que o punido saiba que está sujeito a ser punido, como se sua interpretação do direito natural fosse auto-evidente. Além de garantir a segurança jurídica, a publicação das leis garante também a possibilidade de que elas sejam contestadas e, eventualmente, aprimoradas. É claro que alguém não poderia ter o direito de evitar uma punição simplesmente alegando não concordar com a lei. A admissão desse tipo de defesa tornaria todo direito inaplicável. O que quero dizer é que não se pode, acima de tudo, criminalizar o próprio debate a respeito da legitimidade das leis públicas. Essa necessária abertura ao debate decorre do próprio fato de ninguém ser o monopolista por direito da interpretação e da aplicação do direito.

Outro aspecto importante da publicidade das leis é a necessidade de que as sanções sejam explicitadas com antecedência. O simples fato de um indivíduo ter violado uma lei, por mais que a consideremos uma expressão correta do direito natural, não dá aos demais o direito de fazerem o que bem entender dele para todo o sempre. Não posso alegar: "João violou uma lei, portanto, João passa a ser um sujeito destituído de direitos perante a sociedade, que pode tratá-lo, doravante, como simples coisa". É preciso que a lei defina a maior e a menor pena a que João se submete ao violar a lei pública para que não valha toda e qualquer ação com respeito a João. Afinal, um simples furto, por exemplo, não poderia aniquilar a personalidade moral de João. O culpado, em suma, continua a ser um portador de direitos, de modo que ele não pode receber nada além da pena cabível. Mas qual a pena cabível? No mínimo, não poderia ser uma pena arbitrariamente definida após a constatação de violação da lei, concordam?

Enfim, são algumas considerações que eu teria, no momento, a fazer dentro desse meu esforço de pensar o direito independentemente do monopólio do direito. Estou convencida, por enquanto, de que a institucionalização do direito não precisa implicar na estatização do direito. Até por isso, note bem que estive usando "lei pública" com um sentido independente de "lei estatal"...