domingo, 21 de abril de 2013

Darwin, altruísmo e liberalismo

Nesta manhã de domingo, deparei-me com uma leitura interessante, como costuma ser o caso de material compartilhado por meu amigo Walter Valdevino. Trata-se do artigo "Antropologia de Darwin: os fundamentos materiais da moral", publicado na Folha.

Não sei o que vocês acham das tentativas de naturalização da moral, mas nem é esse meu maior interesse no artigo. O que me chama a atenção de modo especial é que o autor parece estar cometendo o erro comum de atribuir ao liberalismo uma oposição ao altruísmo e até mesmo à cooperação social. 

Outro lugar comum que me parece equivocado no mesmo sentido é a ideia de que o liberalismo seria ainda antagônico à tese segundo a qual, biologicamente (ou historicamente, que seja), a coletividade precederia a individualidade. Na verdade, eu nem sequer acredito que alguém precise de Darwin para perceber que, na natureza, o indivíduo se sacrifica o tempo todo na luta pela geração e manutenção da sua família/seu clã (eu não chegaria a dizer "espécie", já que o indivíduo pode se sacrificar justamente em combate com outro membro da mesma espécie, sendo os benefícios do combate para a manutenção da espécie como um todo apenas indiretos).

Agora, ainda que a formiguinha operária morra pela sua rainha etc e tal, o liberalismo clássico continua sendo apenas uma teoria da justiça que diz que, seja lá quais forem os mecanismos da gênese da individualidade, só o indivíduo porta direitos e deveres, pois são indivíduos que agem e sofrem ações. A coletividade simplesmente não é agente moral! Portanto, moralmente, o indivíduo precede a coletividade.

Ademais, nada há de anti-liberal na cooperação altruística. Por sinal, outro amigo, Aguinaldo Pavão, já mencionava a importância de atentarmos para a diferença entre individualismo e egoísmo, outro dia, em seu blog. Para um liberal em sentido clássico, basta que a cooperação não seja uma imposição totalitarista, o que ela sempre é quando advém da coação estatal.

Lembremo-nos, afinal, de que só há espaço moral para o surgimento de um Hitler, quando acreditamos com ele que o indivíduo pode (até mesmo deve) ser sacrificado em nome da coletividade a que pertence. Lembremo-nos também de que não condenamos cada alemão do passado e do futuro pelos crimes nazistas, mas apenas os indivíduos concretos que os cometeram.

domingo, 14 de abril de 2013

Meiwes, Gosnell e minhas angústias libertárias


Aristóteles recomendava que testássemos nossas teorias sobre ética e política comparando-as com os juízos costumeiramente feitos a respeito dos mesmos objetos. Esse procedimento que, já desde a antigüidade, revela os compromissos do empirismo com o senso comum pode ser questionado, dado o modo como variações de tempo e espaço afetam os juízos de valor cotidianos. Porém, nem por isso os conflitos entre meu libertarianismo e meus escrúpulos morais deixam de me causar profundo desconforto.

Da primeira vez que me deparei com esse tipo de situação angustiante, o responsável foi Armin Meiwes. Meiwes, o famoso canibal alemão, não se limitou, afinal, a devorar sua vítima. Ele se certificou de obter o seu consentimento. Ora, para um libertário, todo contrato realizado livremente, ou seja, todo contrato isento de fraude e coação firmado entre dois agentes intelectualmente capazes, deve ser respeitado. Sendo assim, sob uma legislação libertária, Meiwes, uma aberração que, honestamente, eu gostaria de ver executada, teria que ter saído livre da corte. 

Claro, também sob uma legislação libertária, cidadãos que compartilhassem da minha repugnância por Meiwes poderiam discriminá-lo, negando-se a estabelecer qualquer tipo de relação com ele, portanto, mesmo relações comerciais/profissionais. Em suma, Meiwes poderia ser expulso de cinemas privados, ser proibido de frequentar condomínios privados e assim por diante. Contudo, o que importa é que ele não poderia ser impedido de continuar praticando sua perversão monstruosa, desde que continuasse encontrando quem consentisse em participar dela. É isso que tanto me angustia. Porém, resignei-me à consequência de minha posição política e "esqueci" o assunto.

Agora, por mais que a mídia liberal norte-americana não tenha dado o devido destaque ao assunto, chegou ao meu conhecimento o caso Kermit Gosnell. Gosnell, para quem não quiser abrir o link, é um "médico" que, ao que todas as evidências indicam, induzia partos para assassinar os bebês na sequência. Na verdade, há muito tempo, eu já me confrontava com reflexões que esse caso torna tão prementes.

De um ponto de vista libertário, a vida não é o direito mais fundamental. Se fosse, uma barata, por exemplo, teria direito à vida, o que, voltando ao teste de Aristóteles, parece contrariar os valores comumente aceitos em nossa sociedade, ou ao menos as minhas intuições morais mais básicas. O direito mais fundamental teria que ser então aquele que é fundante de todos os demais direitos. Diria Kant, em um de seus momentos mais libertários, que só há um direito inato: o direito à liberdade, entendida como independência do arbítrio de outro. Decorre que só tem direito à vida quem pode ser qualificado como um agente livre. 

Ora, da mesma forma que o feto abortado pelos meios mais comuns e legalizados em certos lugares, o bebê recém nascido não é um agente livre. A liberdade pode até ser um direito inato, no sentido em que não é adquirido por algum contrato positivamente firmado, mas certamente não é um direito inato, no sentido em que já nasceríamos como sujeitos ou agentes cujas decisões pudessem ser ou não impedidas por outros agentes.

É típico da raça humana, pelo contrário, que sua prole trilhe um longo caminho de desenvolvimento fora do útero da mãe. Em outras palavras, o agente livre nasce muito depois do parto. Por vezes, ele nem sequer nasce, já que nada garante que aquele indivíduo que compartilha de nossa herança genética evoluirá algum dia para um indivíduo capaz de calcular riscos e possíveis benefícios como resultados de suas ações, agindo ou deixando de agir em conformidade com o resultado desse cálculo, que é a competência mínima que esperamos de um agente para classificá-lo como livre. Com essa última consideração, por sinal, podemos estender a condição jurídica dos fetos não apenas para crianças muito pequenas como ainda para doentes mentais e afins.

Mas então como um libertário poderia justificar a condenação legal do infanticídio promovido por Gosnell? Ele também deveria sair livre da corte (se considerarmos apenas essa acusação) e se juntar a Meiwes como um pária a quem não podemos impedir de fazer o que faz? Tendo em vista que, segundo o libertarianismo, apenas indivíduos são portadores de direitos, não uma coletividade qualquer, como a espécie, eu não vejo como evitar a conclusão. Um pratica sua perversão com agentes livres que consentem com elas, outro as pratica com indivíduos que não podem ser considerados livres ou não-livres, porque não são agentes juridicamente capazes em sentido algum. O libertarianismo parece deixar os juízes de mãos atadas em ambos os casos...