segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

A resposta de Nozick a Rothbard


Não sei se o próprio Nozick respondeu às críticas de Rothbard à sua defesa do Estado e fico grata desde já ao leitor que me esclarecer a respeito. Por sinal, foi através de um gentil leitor que travei conhecimento com a própria crítica de Rothbard, que vocês podem acessar aqui. Neste post, eu vou brincar de vestir as armas de Nozick para responder a Rothbard.

Como serei um tanto dura com Rothbard, antes de mais nada, gostaria de expressar minha admiração por ele. Na verdade, mais do que de admiração, trata-se de identificação. Há auto-declarados “libertários” que, a julgar por seus argumentos, se tornariam socialistas no ato se provassem a eles que todos ficariam com a barriga mais cheia com menos liberdade. Inclusive, gosto de dizer que esses "libertários" não acreditam no princípio da não agressão, mas sim no "princípio da barriga cheia". Esse não é o caso de Rothbard. O fato dele ser libertário por princípio moral aflora a cada linha passional de seu texto. Eu gosto disso! Aprecio gente de caráter, o que, para mim, é sinônimo de gente comprometida com princípios (que não o da "barriga cheia").

Dito isso, no entanto, devo observar que, com exceção de alguns pontos fracos bem captados,  a leitura que Rothbard faz de Nozick me parece tão equivocada que tendo a creditar seus equívocos a esse mesmo entusiasmo moral. É como se, ao ter diante de si um dos objetivos anunciados de Anarquia, Estado e Utopia - a justificativa de um Estado mínimo - Rothbard não tivesse nenhum interesse em verdadeiramente entender o ponto de seu oponente, mas apenas o firme propósito de refutá-lo para pôr a salvo seu anarco-capitalismo. Porém, se tivesse realmente se empenhado em compreender as teses de Nozick, duvido que Rothbard, ao fim do processo, teria ainda alguma preocupação em refutá-lo. Vejamos por que sustento tal tese.

Para começar, gostaria de mencionar um ponto em que Rothbard e eu estamos de acordo contra Nozick. Eventualmente, mencionarei outros no decorrer do texto. De fato, Nozick parece se fiar demais em um argumento que é meramente conjectural. É impossível provar a priori (ou por meros conceitos, sem recurso à experiência) que, em uma sociedade anarco-capitalista, surgiria uma agência protetora dominante ou um sistema unificado de agências do tipo. Nozick pode apenas conjecturar sobre como clientes e executivos calculariam seus interesses em um mercado do tipo. Ele não pode demonstrar logicamente que o livre mercado tomaria um ou outro rumo.

Todavia, eu não estou certa do impacto dessa observação sobre a tese geral de Nozick. Se fizermos o que Rothbard não fez, ou seja, se lermos o texto de Nozick com a lupa, notaremos que, já na p. 05 da edição original de Anarquia, Estado e Utopia, Nozick afirma que basta a ele mostrar que o Estado "would be an improvement if it arose [seria um avanço se surgisse]", acrescentando que "this would provide a rationale for the state’s existence; it would justify the state [isso traria uma razão para a existência do estado; justificaria o estado]". Em suma, ainda que Nozick pareça ter a convicção indevida de que uma agência dominante ou um sistema unificado emergiria da livre concorrência entre as agências, uma leitura cuidadosa mostra que o argumento dele apenas requer que seja provado que, longe de cometer uma violação contra qualquer direito individual, a emergência de uma agência dominante ou a formação de um sistema unificado de agências seria benéfica aos direitos individuais. 

Nozick quer refutar a tese anarquista de acordo com a qual: "any state necessarily violates people’s moral rights and hence is intrinsically immoral [qualquer estado necessariamente viola direitos morais das pessoas e, portanto, é intrinsecamente imoral]". Trata-se, como se vê, de um objetivo meramente conceitual, e não histórico: defender a compatibilidade lógica entre a existência de um Estado e o respeito a direitos morais dos indivíduos. Daí que Nozick não recorra à história para mostrar que Estados reais, de fato, teriam emergido sem violência. Basta que Estados possam emergir e se manter sem violência para que anarquistas não possam condenar o Estado enquanto tal como agressor por definição.

Seja lá como for, aqui, Rothbard pode ainda discordar, alegando que, ao contrário do que pensa Nozick, a concentração de poder seria uma ameaça à liberdade individual. Contudo, ambos os filósofos estão de acordo quanto à probabilidade (e à necessidade) de que os conflitos entre as agências de proteção não sejam resolvidos pela força. É, grosso modo, do interesse egoísta de todos por soluções pacíficas que Nozick deriva a ideia de um sistema unificado ou de uma agência dominante. 

E será que o Código de Leis Básico de Rothbard, ao qual todos os juízes obedeceriam, não contaria como o sistema unificado de Nozick? Se todas as agências seguissem um mesmo código, como se fosse sua constituição, elas não formariam uma federação de agências? Note-se que Nozick não menciona um Supremo Tribunal Federal. Tudo que ele diz (p. 16) é que: "Thus emerges a system of appeals courts and agreed upon rules about jurisdiction and the conflict of laws. Though different agencies operate, there is one unified federal judicial system of which they all are components. [Assim, emerge um sistema de cortes de apelação e acordos sobre regras sobre jurisdição e o conflito de leis. Embora diferentes agências operem, há um sistema judicial federal unificado do qual elas são todas componentes]". Por isso, deixo registrada aqui minha suspeita de que a divergência entre Rothbard e Nozick quanto ao ponto seja muito mais terminológica do que conceitual.

Então, a esta altura, já começamos a perceber que Rothbard e Nozick não estão tão distantes como pensa o primeiro. Agora, precisamos entender que, quando Nozick se refere a um monopólio por parte da federação das agências ativas em um dado território, ele não está, de modo algum, criminalizando a concorrência como Rothbard o acusa de fazer. Prova desta minha leitura, pode, por exemplo, ser encontrada na p. 113, quando Nozick discute o interesse dos clientes em manterem seu contrato com a agência dominante/agência membro da federação. Eles são livres para deixarem qualquer agência da federação ou a única agência dominante, conforme for, e escolherem se querem contratar uma agência independente ou se defenderem por conta própria. Aliás, como uma curiosidade a esse respeito, observem o quão raras são as aparições do termo "cidadão" na primeira parte de Anarquia, Estado e Utopia, e comparem com o número de aparições do termo "cliente". Para Nozick, ao fim e ao cabo, somos clientes do Estado, exatamente porque decidimos ficar sob suas leis pelas razões a respeito das quais ele especula. Não somos coagidos a tanto. 

Outra prova do que estou dizendo quanto à falsidade da acusação de que Nozick criminalizaria a concorrência encontra-se às pp. 109-110 da obra em questão, quando Nozick afirma expressamente que o Estado não poderia interferir se os independentes estiverem satisfeitos com os procedimentos de justiça aplicados entre eles, tese exatamente oposta à que Rothbard atribui a Nozick: "the protective association would have no proper business interfering if both independents were satisfied with their procedure of justice. [a associação protetora não teria nada que interferir se ambos os independentes estivessem satisfeitos com seus procedimentos de justiça]." Na verdade, Nozick parece admitir que mesmo os clientes, em comum acordo, podem solicitar à agência dominante (vulgo Estado) que não interfira no conflito deles.

Por fim, esta passagem da p. 109 é taxativa contra a interpretação de Rothbard de acordo com a qual o Estado de Nozick criminalizaria agências concorrentes: "Other protective agencies, to be sure, can enter the market and attempt to wean customers away from the dominant protective agency. They can attempt to replace it as the dominant one. [Outras agências protetoras, com certeza, podem entrar no mercado e tentar tomar clientes da agência protetora dominante. Elas podem tentar substitui-la como a agência dominante]."

Aqui, é fundamental observar que a agência dominante (ou a federação de agências) é denominada Estado por ser a única forte o bastante para garantir a seus clientes que eles não serão penalizados injustamente, ou ao menos que quem os punir injustamente não ficará impune. É só isso. O mesmo direito, na verdade, assiste aos independentes da mesma maneira, mas só a agência dominante (ou a federação) é forte o bastante para aplicá-lo. Por isso, Nozick insiste tanto que se trata de um monopólio de fato, não de direito (por exemplo, p. 109): "the right includes the right to stop others from wrongfully exercising the right, and only the dominant power will be able to exercise this right against all others. [o direito inclui o direito de impedir outros de exercerem erroneamente o direito, e somente o poder dominante terá condições de exercer esse direito contra todos os outros]."

Vejam, aqui, temos um outro ponto essencial a tratarmos. Rothbard nega a existência desse direito universal, que, no entanto, apenas o mais forte conseguiria fazer valer. Para lidarmos com isso, deve ser notado que temos aqui, a princípio, um outro ponto de minha convergência com Rothbard: eu concordo com ele quanto ao fato de Nozick cometer um grave equívoco ao defender que ações de risco podem ser proibidas, desde que aqueles que tenham suas ações proibidas sejam devidamente recompensados, nos casos em que a proibição os deixa em desvantagem social. Eu estou com Rothbard quando ele defende que ações de risco não podem ser proibidas, sob pena de abrirmos as porteiras para todo tipo de violação de direitos. Afinal, qual ação não representa qualquer risco de violação de direitos dos outros? Ainda que Nozick enfrente esse tipo de objeção, confesso que, mesmo com a lupa, não encontrei um bom argumento a ser usado em sua defesa, assim como não fui capaz de pensar em um por conta própria.

Porém, se Rothbard tivesse usado o mínimo de caridade hermenêutica - aquele princípio salutar de acordo com o qual lemos nosso adversário procurando os pontos fortes de seu argumento, em vez de apenas explorarmos seus pontos fracos - ele teria notado que, totalmente à parte da proibição das ações de risco, Nozick tem um bom argumento para defender a tese segundo a qual é parte do direito que tenhamos também o direito de impedir execuções equivocadas do direito, sendo esse, como já dito, um direito que assiste igualmente a todos, mas que uma agência dominante estaria em condição privilegiada para levar a efeito. Trata-se de um argumento baseado no princípio epistêmico, que passo a expor e defender.

Muito bem, eis a formulação do referido princípio, encontrada na p. 106: "If someone knows that doing act A would violate Q’s rights unless condition C obtained, he may not do A if he has not ascertained that C obtains through being in the best feasible position for ascertaining this. [Se alguém sabe que fazer A violaria os direitos de Q a menos que a condição C estivesse realizada, ele não pode fazer A se ele não se certificou que C se realiza, estando na melhor posição viável para se certificar disso]."

Para entendermos o que está em jogo aqui, consideremos o seguinte cenário. O carro de meu vizinho foi furtado de sua garagem durante a madrugada. Eu sou cliente da agência dominante, o que não é o caso de meu vizinho. Meu vizinho, por sua vez, alega ter consultado os serviços de uma vidente, que, lendo suas cartas, teria revelado a ele que eu fui a autora do furto de seu carro, um episódio inédito na carreira dessa vidente Assim, sob essa alegação, ele leva o meu próprio carro como reparação do furto sofrido por ele, admitindo que, se eu não tivesse primeiramente furtado seu carro, ele não teria o direito de levar meu próprio carro, já que esse ato, sim, então se constituiria em um furto. Para completar o cenário, suponha ainda que eu sou realmente culpada pelo furto de que sou acusada. Porém, minha agência não sabe disso, sendo que meu vizinho não dispõe de qualquer evidência ou razão para desconfiar de mim, exceto pelo testemunho da vidente baseado no jogo de cartas, jogo este que, jamais, outrora desvelou qualquer crime. Nessas circunstâncias, a minha agência tem o direito de punir meu vizinho por ter levado meu carro? 

Note que, se sua resposta for "não", como parece ser a resposta de Rothbard, a minha agência se torna completamente inócua para mim, já que eu posso vir a sofrer qualquer agressão, sem que ela puna o agressor, desde que o agressor, por um motivo qualquer, alegue estar ele próprio me punindo. De repente, o meu agressor teve uma revelação em sonho sobre minha identidade secreta de serial killer, por exemplo. Ora, mesmo para além de qualquer questão operacional da minha agência, que ficaria sempre de mãos atadas se quisesse me proteger sem violar direitos alheios, de fato, o direito natural parece requerer que eu possa comprovar a culpa de alguém, para além de toda dúvida razoável, antes de lhe aplicar uma punição qualquer. Afinal, que eu seja uma ladra não pode autorizar moralmente alguém a tirar de mim os bens que furtei, a menos que se possa provar que sou uma ladra, como reza o princípio epistêmico.

Parece então que a sensatez requer que, uma vez que acreditemos em direitos, incluamos dentre eles o direito de impedirmos a aplicação do direito a todo aquele que não comprovou a culpa do réu para além de toda dúvida razoável. Do contrário, todo e qualquer direito poderia ser violado mediante simples alegações falsas de direito por parte do agressor.

Agora, se você aceita 1) o princípio epistêmico e suas implicações, e 2) a possibilidade de uma federação de agências protetoras (ou uma agência dominante), então, você deve aceitar 3) que independentes podem ser impedidos de executar o direito dentro de um território sem que isso implique, necessariamente, na violação de seus direitos. 

Porém, nunca poderíamos insistir demais que a) o mesmo direito assiste aos independentes com relação à agência dominante e que b) a agência dominante/federação só tem esse direito com relação à proteção de seus próprios clientes, pois, como afirma Nozick, a agência/federação possui apenas os direitos que seus clientes escolheram transferir a ela. Fala-se em monopólio de fato, e não de direito, porque o independente que acreditar que a agência não provou, além de toda dúvida razoável, a culpa de um réu condenado será impotente para agir, embora tenha o direito de impedir a execução da pena.

Estamos diante então de uma grande ameaça à liberdade quando permitimos o surgimento de uma agência dominante? Ora, talvez, haja o risco de violação de direitos aqui, mas lembre-se que foi Rothbard quem se levantou contra a proibição de ações de risco! Assim, segundo Rothbard, não poderíamos impedir que a maioria das pessoas se tornassem clientes de uma mesma agência, alegando que isso colocaria em risco os direitos da minoria (Nozick lida muito bem com essa questão, mesmo tendo que aceitar a premissa da proibição das ações de risco, mas seu argumento é muito sutil para que eu o exponha aqui). 

Ademais, também é preciso que mantenhamos em mente que os clientes estariam moralmente autorizados para romperem com a agência dominante/federação, caso julgassem injustos os procedimentos da agência dominante ou federação. Suponha, por exemplo, que seja a agência dominante/federação a agir aleatoriamente em processos penais, sem que a prática seja permitida pelo contrato do cliente. O cliente estaria tão moralmente obrigado a continuar na condição de cliente de um Estado injusto quanto você está moralmente obrigado a renovar um contrato de telefonia que não o serviu. 

Ah, mas quem vai proteger o cliente que acusa a agência dominante/membro da federação de não cumprir o contrato, ou, simplesmente, o cliente que quer exercer o direito de não renovar o seu contrato? Talvez, ninguém tenha força para isso. Mas o ponto é que uma agência que se comportasse com tal violência perante seus próprios clientes seria, para a filosofia de Nozick, uma agência agressora ilegítima da qual seríamos vítimas, e não o Estado moralmente justificado.

Foi essa necessidade interna à teoria de Nozick de que a agência sempre satisfizesse seus clientes, por sinal, o grande ponto que escapou a Rothbard. Por isso, por exemplo, Rothbard acusa Nozick de não ter uma teoria para a cobrança de impostos ou para procedimentos democráticos. Quanto a essas críticas, eu apenas pergunto a Rothbard: Que impostos? Que democracia? Para a teoria, trata-se de clientes satisfeitos de uma empresa, e nada mais! Da mesma forma, não se trata de alienar os direitos de gerações futuras. Um filho nem sequer herdaria algum direito, possuído pelo pai, de ser protegido pela agência protetora da qual o último teria sido cliente, a menos que o pai tivesse deixado como herança exatamente o título de proteção pago. De outra forma, o filho teria que pagar por essa proteção, como qualquer outro, ou seria um independente.

A propósito, esse é outro ponto interessante. Nozick, com base no equivocado princípio de compensação por proibição de ações de risco que causam desvantagens, acredita que a agência dominante/federação deve ajudar o independente carente a pagar por seus serviços de proteção, quando ele é proibido de executar a justiça contra um membro da agência. Mas isso é algo muito diferente de se dizer que todos os habitantes de um dado território ficam cobertos pelos serviços de proteção da agência dominante/federação que atua naquele território. Aquele independente que fosse agredido por outro independente não teria direito a qualquer proteção por parte da agência dominante/federação. Tampouco teria esse direito aquele independente que entrasse em conflito com o cliente da agência dominante/agência membro da federação, negando-se a pagar pelo montante do valor da proteção que ele teria condições de pagar. Consultem a p. 113 de Anarquia, Estado e Utopia quanto a esse ponto.

É por todas as considerações feitas acima que digo que, na ânsia de refutar qualquer justificativa do Estado, Rothbard discutiu com um espantalho que ele mesmo criou, não com Nozick. Ainda que Nozick tenha cometido falhas pontuais - notadamente quanto ao princípio da compensação - que vício moral, afinal, Rothbard poderia denunciar em um Estado utópico que permite desfiliação e concorrência? Qual direito seria violado por esse Estado? O direito de consultar videntes ou folhas de chá (exemplo de Nozick) para descobrir culpados e poder executar penas?

Parece-me que o triunfo de Nozick foi ter obtido sucesso em mostrar que um determinado Estado pode emergir sem violar qualquer direito individual e, portanto, que o Estado não é intrinsecamente imoral. Agora, se um rothbardiano quisesse lançar uma última cartada, bastaria perguntar: isso que Nozick justificou tem alguma coisa a ver com o que mais alguém neste mundo já chamou de Estado?




terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Podcast: Esse tal de libertarianismo

Livre Intercâmbio Podcast - Episódio 02: Esse tal de libertarianismo

Prezados amigos leitores, compartilho com vocês o podcast gravado com meu amigo Alexandre Costa, também libertário. Espero que gostem! Achei muito bacana gravar essa conversa, apesar de preferir bem mais escrever, para não deixar tantas pontas soltas na argumentação.

Falando nisso, agradeço a todos por terem dedicado um pouco do tempo de vocês para a leitura de textos meus em 2013 e desejo um excelente 2014! Continuemos divulgando a ideia de um mundo mais livre, portanto, mais justo!

domingo, 29 de dezembro de 2013

Anarco-capitalismo posto em prática



Escrevo este post farta com o mesmo tipo de objeção que motivou um famoso opúsculo de Kant: aquelas baseadas no dito popular segundo o qual algo pode funcionar em teoria, mas não na prática. Ocorre que, via de regra, se alguém se diz anarquista, parece estar mais suscetível do que qualquer outro a essa linha de crítica. Isso acontece, em grande parte, dada a ignorância generalizada sobre as tantas variações possíveis de anarquismo. Mais especificamente, costumam assimilar todo e qualquer anarquismo àquele defendido por Godwin, baseado na promessa de um aperfeiçoamento da natureza humana. Em poucas palavras, pensam o anarquismo como a ausência de leis e a negação de qualquer instituição hierárquica, de tal forma que apenas a virtude moral poderia sustentar uma sociedade anarquista. Certamente, não é nada disso que está em jogo para o anarco-capitalista. 

O anarco-capitalismo, diferentemente das vertentes coletivistas do anarquismo, não considera que estruturas hierárquicas baseadas na propriedade privada sejam estruturas coercivas, ou "de dominação", como os coletivistas gostam de dizer. Para o anarco-capitalismo, se outro não usou a violência ou a ameaça de violência para obter seu consentimento para sua adesão a uma determinada forma de cooperação, isso basta para que essa forma de cooperação seja vista como voluntária e, portanto, como legítima. Assim, é perfeitamente possível no anarco-capitalismo que uma empresa cresça exponencialmente, com executivos assumindo o comando de empregados em posição hierárquica inferior. Inclusive, isso é o bastante para que anarquistas coletivistas denunciem o anarco-capitalismo como uma forma inautêntica de anarquismo (talvez, porque eles acreditem ter a propriedade privada do termo "anarquismo").

A observação acima, aliás, me faz lembrar de uma situação que me foi relatada certa vez. Em uma universidade pública, um professor que se dizia anarquista lecionava para um aluno que se dizia adepto da mesma posição política. Assim, no dia em que o professor devolveu ao aluno um trabalho devidamente avaliado, o último fez questão de rasgá-lo acintosamente, perante todos os demais colegas da classe. Com o gesto, o aluno quis dizer que anarquistas não poderiam aceitar qualquer forma de autoridade. 

Ora, nada seria mais incorreto do ponto de vista do anarco-capitalismo. Tanto aluno quanto professor assinaram um contrato com a universidade por livre e espontânea vontade. Por meio desse contrato, ambos aceitaram as regras da instituição. Por isso, seria perfeitamente legítimo que qualquer uma das partes sofresse sanções por não cumprir o contrato assinado. Em suma, ao rasgar o trabalho, o aluno rasgou o contrato que ele próprio assinou.

No anarco-capitalismo, assume-se que, eventualmente, as pessoas, de fato, rasgarão contratos. Além disso, pessoas também podem tiranizar outras pessoas, ou seja, colocá-las sob um poder com o qual elas não consentiram em contrato algum. Nesses casos, o anarco-capitalismo assume que há um uso legítimo a ser feito da força. Dessa maneira, nota-se que o anarco-capitalismo não é: 1) uma teoria baseada em um otimismo excessivo quanto à natureza humana, 2) uma teoria baseada na ausência de órgãos de execução do direito. O anarco-capitalismo é, sim, uma teoria que nega que o direito à execução do próprio direito possa ser monopolizado por uma pessoa ou por um grupo de pessoas. Assim, há leis, há tribunais, mas não há Estado em sentido weberiano, porque a própria execução da justiça é vista como um serviço prestado em uma concorrência efetiva ou sempre, ao menos, possível.

Feitos esses esclarecimentos iniciais, passemos, finalmente, à nossa questão: como o anarco-capitalismo poderia ser posto em prática? Ao contrário de alguns, eu não penso que o Estado poderia ou deveria ser pura e simplesmente dissolvido, com todo seu patrimônio sendo revertido à condição de coisa a ser apropriada. Parece-me mais sensato que a elite governante simplesmente enviasse uma carta de alforria a cada cidadão. 

Nessa carta, o não mais Estado nos informaria que não cobraria mais impostos, daí a alforria, pois ninguém mais o serviria de forma compulsória. Na mesma carta, porém, a nova instituição nascida do Estado informaria estar vendendo seus serviços. Ela poderia fazer isso em um pacote único, incluindo, saúde, educação, segurança, etc... Ou poderia vender pacotes diferentes por preços diferentes. O importante é que ela daria a oportunidade das pessoas escolherem se quereriam ou não continuar como seus membros. A carta ainda deveria deixar claro que, em caso da opção pela ruptura completa com a instituição, o ex-membro não mais gozaria de quaisquer serviços estatais, incluindo a proteção à sua vida. Porém, aqui temos um ponto delicado: O ex-membro ajudou a financiar a estrutura da qual ele não mais usufruirá. 

Em nossa cultura, todos nos revoltamos ao pensarmos nos escravos negros libertos com uma mão na frente e outra atrás. É uma clara injustiça que um ex-escravo não receba uma compensação para dar início à sua nova vida, dada a riqueza que ele ajudou a gerar e deixará para trás. Agora, é o momento em que você diz: muito bem, o Estado não tem como compensar a todos os membros que queiram partir, e nem teria como averiguar o valor exato de cada compensação. Bom, infelizmente para você, também é o momento em que eu respondo que seu argumento valeria igualmente contra a libertação histórica dos escravos negros. 

O argumento moral sempre se sobrepõe a qualquer consideração consequencialista e o caso da libertação dos escravos negros é prova de que todos concordamos com isso. Você pode até ser um liberal que argumentará que a libertação dos negros, de fato, trouxe benefícios econômicos, e só por isso ocorreu. Porém, dificilmente, você argumentaria que os negros não deveriam ter sido libertados caso isso não fosse o caso. Portanto, Mises é irrelevante para o debate acerca da justiça. Por sinal, não devemos misturar economia com justiça, como muitos de vocês, liberais e marxistas, estão tão acostumados a fazer. 

Mas, voltando ao ponto do pagamento das compensações, e assumindo que a impossibilidade de pagá-las jamais poderia ser um motivo para defendermos a manutenção da escravidão, na verdade, há uma forma razoável do ex-Estado proceder. Ele poderia estabelecer um período de tempo dentro do qual aqueles que decidissem se dissociar ainda poderiam gozar de algum benefício, mesmo sem contribuir. Talvez, aquele que resolvesse partir devesse receber o direito de escolher o serviço do qual gostaria de gozar gratuitamente dentro daquele período.

Que fique claro que tenho em vista, não uma indenização pelos anos de privação da liberdade (que também poderia vir a ser o caso), mas uma mera compensação pela riqueza que ficará em poder da associação quando o membro partir. Assim, o ex-Estado teria que ser competente o bastante para financiar a oferta temporária do serviço gratuito com a venda dos demais serviços. 

Agora, você pode pensar que os que decidem ficar estarão sendo escravizados para a oferta desse serviço "gratuito". Todavia, não é o caso, primeiramente, porque caberá a eles decidir se ficam ou partem, e, em segundo lugar, porque, se decidirem ficar, saberão que herdarão um patrimônio que não construíram sozinhos, daí a compensação aos dissidentes.

Agora, suponha que seu temor se realize e que o ex-Estado comece a ter que se desfazer desse patrimônio para as contas fecharem. Suponha ainda que os serviços, cada vez mais precários, levem a uma perda cada vez maior de clientes, portanto, a necessidades crescentes de pagamento de compensações. Ora, isso não é problema algum para o anarco-capitalista, porque é aqui que entra a concorrência. 

O ex-Estado, marcado pela necessidade de pagar por seu passado, pode ou não ter competência suficiente para se valer da condição de partida, por outro lado, privilegiada de primeira associação do mercado. É certo, afinal, que muitos - por exemplo, todos aqueles que tremem ao ouvirem a expressão "anarco-capitalismo" - escolherão ficar! Isso será o bastante para manter a associação? Só o mercado responderá, ou seja, só a satisfação dos clientes. 

Mas que horrível essa ideia de um "Estado" ter que satisfazer clientes, não? Enfim...

Agora, quero tratar de outro ponto. Por que diabos algum Estado escreveria aquela carta que o forçaria, afinal, a ter que satisfazer aqueles a quem ele pode muito bem continuar simplesmente extorquindo? Calma, anarco-capitalistas não sairão por aí quebrando bancos, com camisetas enroladas na cabeça, para mudar o mundo. Se o anarco-capitalismo fosse difundido enquanto ideologia a ponto de se tornar o pensamento hegemônico em uma sociedade - uma ideia tão óbvia quanto a ideia de que os escravos negros precisavam ser libertados no matter what - o Estado é que teria que se manter exclusivamente pela força bruta, o que não é possível. 

As pessoas subestimam a dependência estatal da adesão voluntária. Por exemplo, vocês acham que a Coréia do Norte ainda estaria de pé se a maior parte do seu povo resolvesse marchar para a fronteira com a Coréia do Sul? Um muro foi capaz de deter os alemães? Uma sociedade que gosta de se dizer livre não pode ser uma sociedade de pessoas que, de forma hegemônica, se consideram vítimas de seus governantes. Por isso, os argumentos dos anarco-capitalistas, se difundidos, podem fazer muito mais estragos do que as marretas dos black blocs. 

É preciso deixar claro, porém, que uma coisa não levaria à outra. Alguém convencido de argumentos anarco-capitalistas jamais sairia cometendo agressões. A atitude revolucionária do anarco-capitalista, como é bem sabido, é a resistência pacífica. Por exemplo, o governo o proíbe de vender cachorro-quente em um carrinho. Você desobedece. O agente do governo vem confiscar seu carrinho. Você luta se ele o agredir, corre se puder, etc... Em uma sociedade convencida de que hierarquias devem brotar apenas do consentimento, os outros vão ajudá-lo a esconder seu carrinho ao menos sempre que isso não implicar em sofrer uma sanção. A troco de que, no final, o governo insistiria em perseguir seu carrinho? No final, enviar a carta não seria a saída até mais inteligente, do ponto de vista da sobrevivência da instituição?

Mas, Andrea, quem disse que as pessoas se convencem por argumentos? Elas apenas, por exemplo, aprenderam a acreditar que escravidão é errado, do mesmo jeito que poderiam ter se acostumado a acreditar que escravidão é certo. E o governo? Quem diz que faz o que é mais racional do ponto de vista de seus próprios interesses? Nossa presidente mal consegue articular duas sentenças! 

Agora, sim, eu aceito seu argumento. De fato, apenas uma pequenina parcela da humanidade consegue refletir sobre seus próprios princípios e fazer o mínimo de esforço para viver de forma coerente com eles. É muito provável então, você dirá, que, por isso, o anarco-capitalismo sempre triunfe nos discursos teóricos, sem jamais alcançar a prática. 

Contudo, aqui, ainda parece estar escapando um ponto àqueles que gostam de denunciar utopias. A validade de um princípio moral, Kant me ensinou, não requer que o mundo, de fato, esteja de acordo com ele. Mas, sim, que você possa agir de acordo com ele. Pois bem, meu amigo, você pode muito bem agir tomando a obediência a leis positivas por si só como um conselho prudencial, em vez de um imperativo categórico. É esse todo o ponto do anarco-capitalismo! Em outras palavras, você pode colocá-lo em prática, sem esperar que a Dilma faça isso por você. 

Por sinal, existe um imperativo em Kant que é compreendido por poucos. Diz, mais ou menos, assim: "aja como se a humanidade progredisse sempre para o melhor". Claro que o melhor, para Kant, infelizmente, não era o anarco-capitalismo, mas sim um ideal de República. Mas eu posso me apropriar exatamente do que ele tinha em mente com aquele imperativo: É seu dever viver já de acordo com seu ideal, como se a humanidade estivesse progredindo para aquele ideal. Em poucas palavras, seja o escravo que ousou saber e ainda fazer uso público de sua razão.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Deus morreu! Mas por que não o Estado?


Calma, antes de mais nada, calma. Quando eu digo que Deus morreu, refiro-me apenas ao fato de que os filósofos profissionais, via de regra, não se ocupam mais da demonstração de sua existência. Foi-se o tempo em que os grandes nomes da filosofia se debruçavam sobre estratégias lógicas das mais diversas para provar a existência de um ser absoluto diferente do mundo e seu criador. Talvez, ainda haja quem faça isso. Todavia, por mais que a filosofia seja marcada pela ausência do consenso, a imensa maioria dos filósofos acadêmicos entende que a questão da existência de Deus deva pertencer ao domínio do insolúvel. 

Eu confesso que, quando comparo essa situação atual com os debates filosóficos da Idade Média e início da Idade Moderna, fico pensando se não chegará também o dia em que o Estado morrerá, ou seja, o dia em que os filósofos profissionais entenderão que não é possível justificar racionalmente a autoridade política, entendida como um direito especial que uma pessoa ou um grupo teria para exigir a obediência de todos os demais. Inclusive, como todos bem sabemos, as duas questões - Deus e autoridade política - já apareceram conectadas na história da filosofia.

Claro que a simples existência de Deus não seria suficiente para resolver o problema desse direito especial que caracteriza a autoridade política. Explico. Ainda que Deus exista, isso não significa que ele tenha assinalado alguém para governar aos demais. Ele poderia ter criado a todos rigorosamente iguais, como queria Locke contra Filmer. Na verdade, ainda que Deus exista e que tenha assinalado alguém para nos governar, como queria Filmer, isso ainda não significa que sejamos capazes de identificar o seu escolhido. Por isso, afirmo que, mesmo que fosse possível resolvermos o problema da existência de Deus, nem por isso, já estaria resolvido o problema da autoridade política. 

Porém, a existência de Deus, se pudesse ser provada, ao menos poderia doar algum sentido à ideia de um escolhido, isto é, à ideia de um portador de direitos especiais. A autoridade política seria, ao fim e ao cabo, a autoridade do representante de Deus na Terra. Por isso, uma vez que não se podia mais aceitar que o poder absoluto dos reis era diretamente derivado do poder do ser absoluto que nos criou a todos, surgiu, para a filosofia, o problema da justificativa racional do dever de obediência ao Estado. Se não se trata de uma extensão do dever de obediência a Deus, por que diabos teríamos que obedecer a um homem exatamente igual a qualquer um de nós?

Foi aqui, para não deixar o Estado morrer com Deus, que a filosofia inventou um outro ente tão metafísico quanto: o povo. Desde a morte de Deus, não se governa mais em Seu nome, mas em nome do... povo. Na verdade, a autoridade política nem sequer se apresenta mais como um direito especial que alguém teria de governar aos demais, mas sim como o povo governando a si mesmo. Eis o mito da democracia substituindo o mito de todas as religiões.

Mas qual o referente do conceito "povo"? Só poderia ser a soma completa dos indivíduos efetivamente existentes em um dado território em um dado tempo. Mas então uma decisão só seria uma decisão do "povo" se fosse uma decisão empiricamente unânime, coisa que jamais se viu em qualquer democracia. Se um único indivíduo se mostra contrário a uma decisão, já não se trata mais de uma decisão do "povo", mas sim de uma decisão da maioria. É aqui que a filosofia não pode se furtar à tarefa de justificar o direito da maioria de submeter a minoria à sua autoridade. Sem essa justificativa, a democracia é apenas o governo da força, como qualquer tirania.

Agora, por que a união de indivíduos em uma maioria conferiria a essa maioria direitos especiais, portanto, direitos que eles não possuiriam como indivíduos separados? Certamente, a união faz a força, mas por que faria o direito? Você aceitaria que um indivíduo, considerado isoladamente, não tem o direito de lhe obrigar a deixar de ingerir uma substância tóxica nociva à sua própria saúde. Agora, se todos os outros indivíduos da sua comunidade, exceto por você, concordarem que você não deve ingerir essa substância, então eles passam a ter o direito de lhe obrigar a não ingeri-lá. Por quê? Não seria mais razoável aceitar que eles passariam apenas a ter força para lhe obrigar?

Talvez, você acredite que o direito da maioria emana do fato deles terem lhe concedido o direito a também dar seu voto. Veja só, seus vizinhos se reúnem para decidir se você pode continuar ingerindo sódio e vendo pornografia no computador, mas eles são democráticos, então eles deixam você votar também. Isso significa que a autoridade política não está mais personalizada em João ou José. Ela é pura e simplesmente concentrada na maioria numérica, seja lá quem for que a componha. 

Neste ponto, eu recoloco a pergunta. A menos que você tenha dado seu consentimento ao princípio da maioria, como eu fiz pontualmente, por exemplo, ao aceitar ser membro de um departamento em uma universidade, por que uma maioria teria direitos especiais sobre você? Quem escolheu o princípio da maioria como um princípio de legitimidade? Circularmente, a maioria? Você só evita o círculo se puder explicar por que o mero fato da maioria tornaria legítima a mesma imposição que seria ilegítima caso partisse de uma minoria. Dizer que eu poderia ter sido parte da maioria, se eu tivesse votado (como me foi permitido) e se um número suficiente dos outros tivesse votado comigo, não resolve o problema. Se eu não concordei em jogar o jogo, então não basta dizer que as regras, em tese, permitiriam a minha vitória, para que você tenha o direito de me forçar a aceitar a sua vitória.

Então é isso. Até que me provem a legitimidade do princípio da maioria (sem circularidade), eu seguirei acreditando que o filósofo libertário está para a filosofia política contemporânea assim como o "insensato" estava para a filosofia medieval cristã. Talvez, um dia, vocês que aceitaram que Deus é apenas uma questão de fé, ou seja, de uma decisão subjetiva de acreditar, também aceitem que o Estado é apenas uma questão de força. A filosofia não pode acabar com o fanatismo, mas pode, ao menos, parar de lhe prestar homenagens servis.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

O que significa o direito de ser livre?


Costumo dizer a meus alunos que há duas maneiras (não excludentes) de criticarmos um argumento. Podemos aceitar as premissas do adversário, ao passo que procuramos mostrar que a inferência feita a partir delas é logicamente inválida. Nesse caso, procuramos mostrar que as premissas não bastam para justificar a alegação feita pelo nosso oponente, de modo que a conclusão ainda poderia ser falsa, mesmo que as premissas fossem verdadeiras. Mas também podemos aceitar a validade do raciocínio do nosso oponente, negando então que o ponto de partida (a premissa) seja aceitável. Tenho notado que, via de regra, os colegas com quem discuto minhas posições libertárias Brasil afora tendem mais a recusar minha premissa, no caso, a redução de todo o direito a um direito irrestrito à liberdade não agressiva, do que a tentar invalidar meus argumentos anti-estatistas construídos a partir dessa premissa.

Para que compreendam melhor o ponto, saibam que eu entendo o famoso princípio libertário de não agressão como um princípio de não coerção. Coerção, por sua vez, eu entendo como todo uso da força, ou ameaça de uso da força, pelo qual se procura evitar que um agente escolha um determinado curso de ação, a princípio, disponível para ele. Em outras palavras, coerção é uma restrição que um agente impõe pela força ao arbítrio de outro. Já o direito à liberdade, eu entendo como um direito à ausência de coerção.

É verdade que circunstâncias também podem restringir o arbítrio de um agente, mas eu argumento que esse fato é absolutamente irrelevante do ponto de vista jurídico, de tal forma que não faria sentido algum falarmos em violações de direitos no contexto de restrições impostas por circunstâncias. 

Considere o seguinte. Você está fazendo uma trilha desconhecida no meio de uma mata fechada. De repente, você sofre uma queda, fratura a perna e não consegue mais retomar a caminhada. Você está preso na mata. Agora, em outro cenário, você está fazendo a mesma trilha, mas, em vez de meramente sofrer uma queda, você cai em uma armadilha montada por um sociopata caçador de seres humanos. Ele o impede de retomar a caminhada. Nos dois casos, a restrição à sua liberdade é a mesma. Porém, você há de convir que, apenas no segundo caso, faz sentido dizer que um direito seu foi violado, não é mesmo? E por que é assim? Porque apenas no segundo caso a sua liberdade foi tolhida pela força de um outro agente, quer dizer, por outro arbítrio, e não pela natureza ou pelo contexto.

Assim, como bem definiu Kant, a liberdade que consiste em um direito moral não diz respeito à independência de constrangimento das circunstâncias, mas sim, justamente, à independência de restrições ao nosso arbítrio impostas à força pelo arbítrio de outro agente. 

Naturalmente, dado que um direito, em sentido moral, além de corresponder a um dever, deve ainda ter validade recíproca, a independência de coerção do arbítrio de outro a que temos direito não pode valer incondicionalmente. Há uma condição para o exercício de nosso direito à liberdade assim concebida. Todavia, trata-se de uma condição que brota internamente da própria ideia de um direito universal à independência de coerção por parte do arbítrio de outro. Essa condição é apenas que nossa própria ação não seja ela mesma, primeiramente, uma coerção para o arbítrio de um outro. Em suma, não podemos reclamar o direito de não sofrermos coerção apenas quando nós mesmos, primeiramente, estamos usando nossa liberdade de modo coercivo. É assim que falo em um direito irrestrito ao uso não agressivo (não coercivo) da liberdade.

Muito bem, é claro que eu preciso justificar essa premissa, antes de extrair conclusões anti-estatistas dela. Ela mesma consiste em uma alegação considerável para a qual eu assumo o ônus da prova. Entretanto, curiosamente, meus oponentes não se interessam tanto em desafiar minhas razões para reclamar esse direito. Eles preferem, em vez disso, constatar um caráter algo anêmico nessa minha premissa. Ela simplesmente pecaria por ser fraca demais, ou reducionista demais, na medida em que eu reduziria todo o direito a um simples direito de não ser forçado a nada por outro. Falam então em um conceito maior, mais forte, mais rico... da liberdade a que teríamos direito. Isso me dá a entender que eles pensam que o conceito de liberdade deles engloba o meu e o estende. Bom, eu acredito que não seja bem assim.

Note que, juridicamente, quando falamos em um direito, estamos, automaticamente, postulando obrigações que podem ser impostas pelo uso da força. Alegar um direito é sempre alegar o direito de exigir seu respeito por parte dos demais agentes. Eu penso dispensá-los de sua obrigação de respeitar meu direito. Mas isso cabe a mim. A rigor, um Robinson Cruzoe não teria direito algum, porque ele não teria ninguém a quem opor direitos. Dito isso, fica claro que o conceito de uma coerção legítima, uma autorização para o uso da força, é, como dizia Kant, sinônimo do conceito de direito.

Decorre dos esclarecimentos do último parágrafo que só não é contraditório dizermos que temos direito à liberdade (entendida como ausência de coerção), portanto, que estamos autorizados a usar a força em nome dessa liberdade (para protegê-la como direito), quando (e somente quando) estamos exercendo coerção contra uma coerção prévia. Como Kant diz em um de seus momentos mais brilhantes, a resistência que se opõe a uma resistência à liberdade colabora com ela. Em síntese, coerção de uma coerção é um favorecimento da liberdade, do mesmo jeito que, matemática e logicamente, a negação de uma negação equivale a uma afirmação.

Quero com isso dizer que, sempre que uma coerção for praticada para além da supressão de uma coerção prévia, teremos a pura e simples coerção de um arbítrio por parte de outro, o que viola o suposto direito, alegado por mim, à liberdade como independência da coerção do arbítrio de outro. Por consequência, - é aqui onde eu queria chegar - meu oponente não pode dizer que tem um conceito de liberdade como direito que é mais amplo, rico... do que o meu. Na verdade, ele tem um conceito de direito à liberdade oposto ao meu, pois, sempre que ele fizer valer pela força o direito mais amplo que ele alega ter, ele necessariamente violará o direito minimalista que eu alego ter. 

Muito bem, o meu oponente tem um conceito de direito à liberdade, de acordo com o qual posso ser coagida a fazer x ou a deixar de fazer x, mesmo quando, ao não fazer x ou ao não deixar de fazer x, eu não coajo ninguém. Em nome de sua concepção de direito à liberdade, o meu oponente me faz fazer à força aquilo com o que eu não consinto. Será então que, realmente, faz sentido que ele se apresente como um defensor da liberdade, assim como eu, apenas tendo um conceito mais "rico" dela? Particularmente, acho muito curioso esse conceito de liberdade que permite que uma arma seja apontada para mim para que eu faça o que não quero fazer. Será que não seria mais honesto - e mais produtivo para o debate - que o meu oponente assumisse que, para ele, há valores superiores à liberdade, em nome dos quais podemos violar o direito à liberdade sempre que for preciso, como o combate à fome, por exemplo?

Sabe, há momentos na filosofia em que precisamos "morder a bala" [bite the bullet], como dizem os anglófonos. Em outras palavras, nós precisamos aceitar que, ao defendermos determinados valores, podemos estar nos comprometendo com consequências indesejáveis. No meu caso, morder a bala significa aceitar que, como defendo o direito irrestrito à liberdade não agressiva, não posso, ao mesmo tempo, defender que uma pessoa rica seja forçada a amparar um miserável. No caso do meu adversário, como ele defende que os miseráveis sejam amparados pelo Estado com recursos públicos, ele precisa aceitar que ele defende a iniciativa de violência em nome de determinados fins. Não se pode ter o melhor de dois mundos!

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Teria Nozick sido o maior dos anarco-capitalistas?


Sabe quando você lê uma obra de ficção até o final e o desfecho o surpreende de tal maneira que você precisa atribuir um novo sentido a tudo que leu até ali para encaixar aquela conclusão em um todo coerente? Foi assim que eu me senti finalizando a leitura mais rigorosa que fui capaz de fazer da primeira parte de Anarquia, Estado e Utopia

Logo no prefácio dessa obra, Nozick havia declarado sua posição no debate político: ele defenderia o Estado mínimo, entendido como um Estado limitado às funções de proteção contra violência e fraude. Foi por essa razão que, aqui mesmo, eu o classifiquei como um liberal clássico, reservando o termo libertário aos anarco-capitalistas, para maior organização de minha leitura pessoal do debate. 

Também a segunda parte da obra de Nozick, devotada à crítica da teoria da justiça de John Rawls e outras igualmente proponentes de maior intervenção estatal, apresenta a posição do autor como aquela segundo a qual o Estado não deve ir além do mínimo, o que, em termos de configuração final da sociedade na prática, não nos diz muito quanto a diferenças essenciais entre a concepção de Estado de Nozick e aquela de qualquer liberal clássico.

Neste post, pretendo explicar por que não acho mais que seja simples assim, ou seja, por que passei a considerar indevida a classificação de Nozick como um combatente das fileiras do liberalismo clássico ou um mini-arquista em sentido próprio.

Confesso que, desde o início de minha leitura da primeira parte de Anarquia, Estado e Utopia, eu me preparei para presenciar um fracasso filosófico retumbante. Explico. Nozick se comprometeu com a premissa tipicamente libertária, de acordo com a qual a associação entre os indivíduos não produz novos direitos. Em outras palavras, conforme essa tese, um grupo de indivíduos não possui qualquer direito que não possa ser reduzido à soma dos direitos individuais de seus membros. Assim, os direitos civis já seriam todos direitos naturais. 

Ora, por outro lado, via de regra, entendemos a autoridade política constitutiva do Estado como a alegação de um direito especial por parte de um grupo de indivíduos: apenas os agentes do Estado teriam o direito de executar a justiça dentro de um dado território. Dentro da tradição weberiana, isso pode ser explicado como a alegação de um direito ao monopólio do uso da força dentro de um território. Com isso, para que uma instituição cumprisse ao menos com o requisito mínimo para ser chamada de Estado, constituindo-se, portanto, como Estado mínimo, ela já teria que violar a premissa libertária da inexistência de quaisquer direitos especiais na condição civil. 

Agora, você entende por que eu estava incrédula quanto à capacidade de Nozick de justificar o Estado mínimo sem contradizer a premissa libertária de seu argumento: seria impossível justificar o Estado sem fazer com que, da associação dos indivíduos em sociedade civil, surgisse esse novo direito à exclusividade da execução da justiça.

Verdade seja dita, embora, no início da obra, Nozick tenha explicado o problema do Estado nos termos da tradição weberiana, a menos que algo tenha me escapado, ele não assumiu conosco o compromisso de justificar o Estado entendido nesses termos. Na passagem mais significativa para o ponto, ele diz apenas que:
uma condição necessária para a existência de um Estado é que ele (alguma pessoa ou organização) anuncie que [...] punirá a todos que ele descobrir terem usado a força sem sua permissão expressa. (p. 24)
A partir de então, Nozick pretende mostrar que, para fazerem tal anúncio, os agentes do Estado prescindem de qualquer direito especial. Acontece que o custo desse reconhecimento de que ninguém teria um direito especial de fazer tal anúncio é justamente a perda do direito ao monopólio do uso da força. O que Nozick, de fato, mostrará é apenas que, para que a justiça seja devidamente executada, não basta que o punido seja culpado, mas que saibamos que ele é culpado. A introdução desse princípio epistêmico servirá para demonstrar que qualquer um teria o direito de proibir a execução de uma pena se a culpa do réu não é devidamente comprovada aos olhos do público. É com base nesse direito que, após ter tornado público todos os procedimentos que ela considera especialmente capazes de condenar inocentes, uma organização teria legitimidade moral para punir quem usasse um procedimento diferente dos listados para punir um de seus membros por um crime alegado. 

Acontece que, e isso é fundamental, 1) ninguém fica obrigado a se tornar membro de tal organização; 2) ninguém fica obrigado a permanecer indefinidamente como membro da organização; 3) ninguém fica impedido de fundar outra organização; 4) outros indivíduos e organizações conservam exatamente o mesmo direito de anunciar que punirão quem punir indivíduos com base em procedimentos penais que consideram pouco confiáveis para averiguar a culpa; 5) os agentes de quaisquer organizações podem ser punidos por violações de direitos como quaisquer outros indivíduos. Nozick apenas supõe - e com bons argumentos, creio eu - que a maioria das pessoas faria parte de uma mesma organização ou federação de organizações, que teria mais força para exercer o direito de punir quem executa o direito sem averiguar devidamente a culpa do réu. Assim, haveria um monopólio de fato do direito de executar processos penais contra membros da organização majoritária. Só. Nada mais. 

É isso mesmo que você entendeu: o "Estado" de Nozick opera dentro de uma sociedade da qual fazem parte independentes ou, ao menos, qualquer um pode se tornar independente no momento em que quiser. E, sim, para ser moralmente legítimo, esse "Estado" teria que aceitar a concorrência pelo mercado da justiça dentro do seu próprio território. É por isso que quem leu a Parte I de Anarquia, Estado e Utopia até o fim viu Nozick dizer que, por vezes, em vez de falar em "Estado", para lembrar que ele havia enfraquecido a definição weberiana do conceito, ele falaria em uma "entidade semelhante ao Estado [statelike entity]" (p. 118).

Agora, você deve estar se perguntando: "Ok, parece que Nozick, no final das contas, defendeu uma instituição compatível com o anarco-capitalismo, mas por que isso o tornaria o maior dos anarco-capitalistas?" Muito bem. Era a isso que eu me referia quando disse que, ao chegar ao final do argumento e constatar que Nozick não justifica o que usualmente entendemos por autoridade política, tive que re-significar minha leitura das passagens anteriores. Lembrei-me então que sempre que Nozick havia apresentado problemas inerentes à execução do direito em uma sociedade sem Estado (entendido em sentido weberiano), ele observou, às vezes como quem não queria nada, que o Estado tampouco resolveria aqueles problemas. Por exemplo, você pode dizer que, sem o Estado, não existe consenso quanto ao que seria justo ou injusto para podermos aplicar a justiça. Porém, o Estado tampouco cria esse consenso. Ele apenas impõe um dos conceitos para todos. Ao mostrar como o direito pode ser executado por uma agência privada que, na busca da maximização de seus lucros, acaba agindo com transparência pública e imparcialidade, evitando a guerra, Nozick mostra que, no mínimo, a execução do direito na sociedade anarco-capitalista é tão factível quanto no Estado weberiano. 

Em suma, eu aprendi com Nozick que o executor público do direito não deve ser o Estado weberiano, exatamente porque ninguém tem uma prerrogativa natural sobre os demais para decidir o certo e o errado. É essa a distinção que Nozick faz no capítulo 6, na seção que versa justamente sobre legitimidade, entre uma organização que tem certos poderes apenas porque alguns indivíduos consentiram em transferir seus direitos a ela e uma organização que se julga no direito de que indivíduos transfiram seus poderes a ela. Mais ainda, eu aprendi que o reconhecimento da violência inerente ao Estado weberiano não nos condenaria a nenhum caos social, já que Nozick descreve cenários perfeitamente plausíveis de execução da justiça sem um Leviatã.

Para terminar, eu gostaria de mostrar uma passagem em que Nozick cita Locke e parece confessar seu plano de nos seduzir ao anarco-capitalismo disfarçando-o com o seguro manto da palavra "Estado":
Nós devemos dizer que um Estado que surgiu do estado de natureza pelo processo descrito substituiu o estado de natureza que, portanto, não existe mais, ou nós devemos dizer que ele existe dentro de um estado de natureza e, portanto, é compatível com ele? Sem dúvida, a primeira alternativa se encaixa melhor na tradição lockeana; mas o Estado surge tão gradualmente e imperceptivelmente do estado de natureza de Locke, sem qualquer quebra de continuidade grande ou fundamental, que somos tentados a escolher a segunda opção, a despeito da incredulidade de Locke: "a menos que alguém vá dizer que o estado de natureza e a sociedade civil são uma e a mesma coisa, coisa que eu nunca encontrei alguém que fosse um defensor tão grande do anarquismo para afirmar (§ 94)." (p. 133)
 Parece que Nozick quis ser esse cara...

sábado, 23 de novembro de 2013

Respondendo as questões do NYT


No dia 20 de outubro, o jornal democrata The New York Times publicou uma coluna de opinião em que Amia Srinivasan, basicamente, retrata Nozick como o ideólogo por trás das tentativas mais canalhas de justificativa do status quo. Eu ia parando de ler o artigo no ponto em que a autora chega ao cúmulo de associar o libertarianismo de Nozick a uma "crescente proteção a corporações". Fui mais um pouquinho adiante para ter a infelicidade de ver Nozick sendo culpado até pela "corrente crise econômica". Daí parei.

Resolvi voltar a ler, porque lembrei que os amigos que me mostraram o artigo haviam mencionado algumas questões. Fiquei curiosa para ver quais eram. Pois bem, já que li as questões, vou me dar também ao trabalho de respondê-las.

1. Na ausência de compulsão física direta de uma parte contra outra (ou ameaça disso), qualquer troca entre duas pessoas é necessariamente livre?

Em sua própria resposta, a autora denuncia um equívoco por parte de quem responde positivamente à pergunta, porque essa pessoa estaria negligenciando um tipo de coerção que não é exercido por um agente sobre outro agente, mas sim por parte de circunstâncias, como o fato de um agente ter filhos que passam fome. Bom, Deus dai-me paciência com quem não lê Kant e vamos lá!

É claro que, primeiramente, temos que esclarecer o que entendemos por liberdade aqui. Do ponto de vista interno, podemos nos perguntar se quem passa fome ou, mais ainda, sente a dor de ver seus filhos passando fome, ainda é livre para tomar decisões, ou tem seu arbítrio necessariamente determinado por tais inclinações. Não sou especialista no assunto, mas imagino que a fome, em grau extremo, pode muito bem transtornar as faculdades do sujeito a ponto dele não ter mais condições de ser considerado um agente livre e racional. Agora, se o agente ainda é capaz de deliberação, supondo a validade de uma tese metafísica de acordo com a qual seres humanos teríamos um livre-arbítrio, então o fato do agente ter apenas duas opções diante de si (no exemplo da autora, se prostituir ou deixar os filhos passando fome) não o tornaria menos livre.

A liberdade, como bem lembrou o Aguinaldo em uma de nossas reuniões, não é ampliada ou diminuída conforme o número de opções disponíveis para a escolha. Você não é mais livre para escolher em um restaurante com um cardápio mais variado do que o de outro (para roubar também o exemplo do Aguinaldo). Então, OK, reconheçamos que a situação de um agente que precisa escolher entre X e a morte é uma situação indesejável e desfavorável, mas não digamos que, só por isso, isto é, pela escassez de alternativas, o agente não seria livre para escolher entre elas. Não estupremos os conceitos para conseguirmos chegar às conclusões que desejamos!

Agora, em prol do argumento, suponhamos que o agente pressionado por circunstâncias não seja livre. A questão então seria: o que um agente A teria a ver com a escassez de opções que, independentemente dele, se colocam diante do arbítrio de um agente B? É fácil ver por que Kant disse que o nosso único direito inato é um direito à independência da coerção do arbítrio de outro (não da coerção de circunstâncias), desde que a nossa liberdade não seja ela mesma usada de maneira coercitiva primeiramente. Nesse caso determinado por Kant, eu tenho como exigir daquele que me aprisiona que ele me liberte, quer dizer, o meu direito, se existe mesmo, é obviamente correspondido por uma obrigação por parte de outro.

Mas notem que a autora do artigo admite francamente que, em seu exemplo, são circunstâncias que exercem coerção sobre o agente. Pois bem, cabe a ela o ônus de provar que o agente A tem a obrigação de livrar o agente B de circunstâncias adversas e, acima de tudo, deve ser punido se ele não cumprir com essa obrigação. Em outras palavras, a autora precisa demonstrar a legitimidade de uma obrigação e, mais ainda, a legitimidade de um direito ao exercício da coerção para que a obrigação seja cumprida, pois também é possível que haja obrigações meramente éticas, no sentido em que não podemos ser externamente forçados a cumpri-las. Neste debate sobre políticas de Estado, afinal, trata-se sempre de saber com que direito a coerção pode ser exercida por um agente sobre outro. Não está em questão, portanto, meramente determinarmos se não seria virtuoso ajudarmos o agente B a ampliar seu leque de escolhas, mas sim se há uma obrigação tal que A possa ser punido por não fazer isso por B.

Assim, o que a autora defende é que, estando o agente B sob a coação de "circunstâncias", o agente A, que não exerceu nenhuma coerção, deve ser, ele sim, coagido por outro agente, no caso o Estado, a libertar o agente B. Eu, realmente, não vejo como essa tese faria sentido sem toda uma teoria de acordo com a qual se provasse que B, de fato, encontra-se em tais circunstâncias por responsabilidade de A.

2. Qualquer troca livre (não compelida fisicamente) é moralmente permissível?

Li e reli a resposta que a autora considera libertária. Confesso que não entendo o que ela vê de tão chocante nela. No exemplo da autora, o dono de um latifúndio paga pouco para quem cultiva uma parte de suas terras, que, mais tarde, ele vende por muito. Honestamente, exceto pela aceitação da teoria da mais-valia, que, junto com a teoria do valor trabalho, eu recuso, eu não posso ver qual o escândalo aqui. Novamente, ressalto que está em jogo a justiça (obrigações cujo cumprimento pode ser objeto de coerção externa), e não a virtude. Talvez, o latifundiário não seja virtuoso. Mas, certamente, não acho que ele tenha sido injusto, a menos que se prove que seus pais, de quem ele herdou a terra, tenham adquirido essas terras por violência ou fraude.

3. As pessoas merecem tudo que elas podem conseguir, e somente o que elas podem conseguir, através de livre troca?

Bom, isso eu já respondi aqui. Meritocracia não tem nada a ver com meu libertarianismo (e nem com o de Nozick).

4. As pessoas não têm a obrigação de fazer nada que elas não queiram fazer livremente ou tenham se comprometido livremente a fazer?

Esta é a mais divertida. De fato, de acordo com o libertarianismo, sem um contrato prévio livremente estabelecido, eu não tenho obrigações positivas, mas apenas negativas. Quer dizer, eu tenho obrigações gerais apenas de deixar de fazer algo, mas não de fazer algo. No caso, eu tenho, para com todos, independentemente de contrato, as obrigações de não cometer fraude e violência.

Então, vejamos o exemplo da autora, que ilustraria o absurdo da posição libertária. A caminho da biblioteca, eu veria um homem se afogando. Então, eu calcularia que o prazer de salvá-lo não compensaria o transtorno de me molhar e me atrasar. Assim, como eu não assinei nenhum contrato me obrigando a resgatar esse homem, eu o deixo se afogando e sigo meu rumo.

Creio que, agora, mais do que nunca, vale a distinção que eu venho fazendo entre obrigações simpliciter e obrigações cujo cumprimento pode ser objeto de coerção (portanto, de punição em caso de falta com a obrigação). A autora quer mostrar com o exemplo que Nozick precisa estar errado, porque qualquer um discordaria da conduta desse homem que deixou o outro se afogando. Da perspectiva do senso comum, diz ela, a moral de Nozick é absurda. Pois eu digo que ela falha mais uma vez em fazer as devidas distinções.

Eu não sei quem é o porta-voz do tal "senso comum" que a autora evoca com tamanha autoridade. Eu diria, mais modestamente, apenas que muitos concordariam que o homem não fez a coisa certa, supondo que ele fosse um excelente nadador e um homem muito forte. Afinal, a autora despreza até o fato de que muitos poderiam morrer fazendo o que ela parece ver como um gesto tão simples. Por caridade, vou até arrumar o exemplo dela e dizer que a pessoa seguiu seu rumo sem chamar socorro para quem estava se afogando. Muito bem. Eu diria que a pessoa que não faz o mínimo de esforço para socorrer quem está agonizando diante dela não é virtuosa. Mas isso é diferente de dizer que ele deve ser punido por omissão de socorro em um acidente que ele não causou.

Na verdade, assumir que as pessoas podem ser coagidas a prestar socorro, quando esse socorro não representa um custo alto demais, parece ter, sim, implicações que não parecem agradar tanto ao paladar do nosso querido "senso comum". Naturalmente, a autora do artigo não deve estar prioritariamente preocupada com leis que punam a omissão de socorro em acidentes. O meu exemplo, penso eu, é que vai ilustrar melhor o ponto dela e, talvez, colocar de forma mais honesta, diante do tribunal do "senso comum", o que ela quer verdadeiramente defender.

Hoje é sábado. Possivelmente, você está se arrumando para sair com os amigos. Você não é o rei do camarote, mas vai gastar algum dinheiro em cerveja. Um dos seus amigos, porém, toma à força metade do dinheiro que você tinha guardado para a cerveja. Você se exalta diante da explicação de que não vai te fazer mal nenhum tomar metade da cerveja que você tinha planejado tomar. Mas, então, ele explica que agiu por uma boa causa. Ele gastou o valor (que ele dobrou com recursos próprios) em uma doação para um projeto que salva a vida de crianças africanas, investindo em coisas tão básicas como água potável. E o que são umas cervejas a mais diante de quem não tem água potável?

Eu termino este post de respostas libertárias com uma questão libertária para o senhor "senso comum": seu amigo tinha esse direito?