domingo, 30 de março de 2014

Pode um argumento ser coercivo?

Desde que me mudei para a UEL, com muito gosto, tenho lecionado uma disciplina chamada "filosofia e argumentação" para várias turmas do curso de direito. Assim que assumi as primeiras turmas, em uma conversa informal, eu comentava com um amigo o modo como vejo as diferenças essenciais entre a maneira como o advogado faz uso de um argumento e a maneira como um filósofo o faz. Para o advogado, dizia eu, é essencial a persuasão de um outro. Como é trivial constatar, mais do que ele próprio estar convencido, o advogado deve convencer. Em suma, sua missão é causar a existência de uma crença na mente de uma ou mais pessoas, crença esta que, curiosamente, nem precisa ser compartilhada por ele próprio. Já o filósofo, dizia eu para protesto veemente de meu amigo, não precisa ter a menor preocupação com a persuasão.

Naquele momento, eu não tinha em mente algum juízo de valor negativo sobre um filósofo que tentasse persuadir alguém sobre uma tese filosófica. Apenas me parecia uma tarefa alheia à sua atividade. Mas, nisso, ocorreu a meu amigo uma tese bastante exótica de Nozick, autor que eu mesma ainda não lia à época. Segundo meu amigo, Nozick acreditaria que a tentativa de persuasão por meio de argumentos contaria como uma forma de coerção. Confesso que nem dei muito bola para essa ideia até alguns dias atrás, quando, por acaso, deparei-me com esse texto de Nozick. E não é que achei que ele faz mesmo algum sentido?

Além de examinar o vocabulário usado em debates na língua inglesa, mostrando as metáforas de força, Nozick atenta para o fato de que, em uma tentativa de prova, visamos fazer com que o outro tenha que consentir com a verdade de uma proposição, quer ele queira ou não. É por isso que, conforme ensino aos meus alunos do direito, ao provarmos algo para alguém, não partimos de proposições escolhidas aleatoriamente, mas sim de proposições que sabemos serem aceitas por nosso interlocutor. A intenção é que ele não possa recusar a proposição que queremos que ele aceite, dado que ele aceita nossa premissa. É assim que, metaforicamente falando, nós o forçamos a consentir com o que queremos.

Ora, neste ponto, você dirá que isso não conta como coerção em qualquer sentido relevante por duas razões: primeiro, o instrumento utilizado é a razão do próprio ouvinte; segundo, mesmo que a lógica o obrigue a assentir com a verdade de uma conclusão (dado o fato dele ter aceito a verdade da premissa), ele ainda é livre para se recusar a acreditar. Naturalmente, Nozick concorda que não se trate aqui propriamente de coerção. Ele diz que persuadir alguém, afinal, não é o mesmo que sequestrá-lo para operar à força seu cérebro, colocando nele uma crença. Porém, há espaço para a analogia com a coerção física. Primeiro, é você quem está conduzindo o processo propositadamente. Daí sua escolha da premissa apropriada à prova: aquela que seu ouvinte aceita. Segundo, há, sim, uma punição para quem não aceita a conclusão, aceitando a premissa: a pessoa será tachada de "irracional".

Claro, essa punição, diz Nozick, é fraca. Eu observo que ela não viola qualquer direito do seu interlocutor, afinal, seu interlocutor não tem o direito de exigir uma avaliação positiva de sua parte. A persuasão por meio de argumentos, penso eu, difere essencialmente das ameaças juridicamente reprováveis, porque, nas últimas, caso o outro recuse dar seu assentimento ao que quero, eu anuncio minha intenção de agredir, diretamente, sua liberdade, ou, ao menos, sua propriedade. Quer dizer, o juridicamente reprovável é o anúncio da intenção de violação de um direito em caso da pessoa que ameaça ser contrariada. Eu não posso ser juridicamente reprovada se eu, simplesmente, anuncio que não falarei mais com você se você não disser ou fizer o que quero. Nozick não explica o ponto dessa maneira, mas parece-me bem consciente dele ao se limitar a dizer que quem força o outro a ter que aceitar uma verdade por meio de argumentos não está sendo "nice". Ademais, quando ele fala em auto-defesa, para esses casos, ele se limita a mencionar a formulação de contra-argumentos, e não, obviamente, o uso de força física contra quem tenta persuadi-lo.

Enfim, eu ainda não tenho certeza se cabe alguma reprovação moral, ainda que não jurídica, a quem tenta me persuadir da verdade de uma proposição p, em que eu não quero acreditar de bom grado. Mas Nozick tem um ponto, ao menos, em dizer que o objetivo do filósofo não é a persuasão. Gosto da metáfora que ele usa ao dizer que a persuasão é uma matéria do departamento de relações externas da minha mente. O que importa, do ponto de vista do meu próprio sistema de crenças, é o que o outro diz, e não se ele acredita nisso ou não. Concordando com isso, antes de ler esse texto, naquela conversa com meu amigo, eu me lembrei de Trasímaco dizendo a Sócrates para responder o argumento, sem se preocupar em saber se ele, o próprio Trasímaco, acreditava na tese defendida ou não. De fato, como diz Nozick, se o cético me disser que estava brincando, isso não muda em nada o problema que ele me traz.

Mas, se filósofos não são advogados, se seu fim não é persuadir o público quanto à verdade de uma tese, qual é, então, seu propósito? Bom, eu tenho me identificado tanto com Nozick, justamente porque, como digo desde o início, eu escrevo este blog para mim, compartilhando-o com outros que podem ter as mesmas angústias. Certamente, se meu objetivo fosse o convencimento de alguém, eu defenderia minhas posições quando compartilham meus posts em debates de internet (na verdade, eu mesma os compartilharia), ou, ao menos, eu aceitaria convites para publicar meus posts em portais de muito maior repercussão que este humilde blog. Não o faço, porque meu objetivo é a inteligibilidade, e não a persuasão. Aliás, acho que, uma vez, li em Lebrun: "encontrar a inteligibilidade, eis o triunfo do filósofo".

Por sinal, por ver a filosofia como a derrota da ininteligibilidade, e não de uma tese adversária, estou encantada com a obra Philosophical Explanations, ainda mais do que estive com Anarchy, State, and Utopia. Na verdade, Philosophical Explanations explica o que muitos não entenderam em Anarchy, State, and Utopia. A respeito desta última obra, Nozick foi acusado de não provar suas teses, pois ele não provou nela que existiriam direitos individuais. Ora, não entenderam que Anarchy, State, and Utopia já era uma philosophical explanation! Ou seja, Nozick queria explicar como seria possível um Estado se acreditamos que os seres humanos possuem certas características empiricamente determinadas e, ainda, são dotados de direitos individuais invioláveis. Quer dizer, ele visa construir uma teoria que compatibilize conjuntos de proposições que, aparentemente, se opõem. Isso não é pouca coisa! Inclusive, se for uma tentativa bem sucedida, refuta o anarquista, que argumenta ser impossível tal compatibilização.

Interessantemente, Philosophical Explanations também joga luz na minha leitura do resultado da primeira parte de Anarchy, State, and Utopia. Como eu já disse neste blog, o que Nozick compatibiliza com direitos individuais não é o que os próprios anarquistas entendem por Estado. É uma "state-like entity". Em Philosophical Explanations, justamente, ele diz que, por vezes, não podemos explicar como é possível exatamente o que a outra parte argumenta ser impossível, mas apenas algo quase tão bom quanto. Muito bem, eu digo que aquela "state-like entity" de Anarchy, State, and Utopia era, para Nozick, algo quase "tão bom" quanto o Estado, e algo que ele teria conseguido compatibilizar com direitos individuais. Em Philosophical Explanations, Nozick vai um pouco além em suas explicações morais, procurando explicar, por exemplo, que podemos ter valor, e, portanto, direitos individuais, mesmo em um mundo causalmente determinado, um problema clássico da história da filosofia. Bom, de minha parte, o que eu quero é entender coisas assim. Naturalmente, toda ajuda é bem-vinda.

 

sexta-feira, 21 de março de 2014

Desafio Ancap

Já repararam como anarco-capitalistas são odiados por boa parte dos libertários que se declaram mini-arquistas? Claro que sim, a pergunta foi apenas retórica. Eu não dou a mínima para nossa impopularidade e, por isso mesmo, gostaria de brincar com ela lançando aqui uma provocação aos libertários adeptos do Estado mínimo. Como sabem, ancaps temos a imagem que temos por, supostamente, acreditarmos que somos os únicos libertários coerentes. Bom, eu gostaria de mostrar que temos bons motivos para nos considerarmos assim, portanto, que não somos pretensiosos.

Primeiramente, considere o seguinte: não classificarei alguém como libertário em sentido mínimo, caso ele não aceite o princípio segundo o qual todos os direitos, em última instância, devem ser redutíveis a direitos individuais. Esse princípio já foi textualmente afirmado até por um certo senador republicano que postula a presidência dos Estados Unidos. É a ele que você, libertário, tem em mente quando diz que o Estado não pode lhe forçar a fazer caridade. Muito bem. Tenhamos esse princípio em mente como o nosso mínimo denominador comum.

Agora, façamos o seguinte experimento de pensamento. Em uma certa sociedade, duas agências de proteção ofertam seus serviços: as agências A e B. A e B publicam os mesmos códigos legais, exceto por uma lei L que pertence aos códigos de B, mas não aos códigos de A. Adicionalmente, ambas publicam o mesmo código processual. Em um julgamento conduzido publicamente de acordo com esses códigos, A impõe a um sujeito S, que não é cliente de B, a mesma sanção que B teria imposto em um caso similar sob todos os aspectos relevantes. Sem afirmar o contrário, B anuncia que punirá A de acordo com L, e age de acordo com esse anúncio. Acusação segundo L: A usou a força no mesmo território em que B atua sem ter sua autorização.

Desafio: reduza o direito de B de punir A a um direito individual.

 

domingo, 2 de março de 2014

Anarquia e lei


Muitos anarquistas gostam de dizer que anarco-capitalistas não compartilhariam seu gênero. No que me diz respeito, a suspeita faz todo sentido. A concessão que faço aos anarquistas têm um sentido bem preciso: eu não acredito que uma associação tenha direitos irredutíveis aos direitos individuais de seus membros. A consequência prática dessa rejeição de direitos especiais à coletividade é a rejeição de um direito ao monopólio da execução do direito. Assim, se eu sou anarquista, então Nozick, por exemplo, também é, já que ele não defende qualquer monopólio de direito. Enfim, isso, eu até já venho explicando neste blog.

Ultimamente, eu tenho pensado nos direitos individuais diante do executor do direito. Meu último post, em que tratei de direitos processuais, já é um exemplo dessa minha preocupação recente. Se pensarmos a execução do direito na forma de um silogismo jurídico em que a premissa maior é a lei, enquanto a menor expressa a averiguação do que fez o indivíduo, juntamente com a demonstração de seu grau de responsabilidade pelo ato, então, no último post deste blog, eu tratei da menor. Eu defendi que ninguém tem o direito de executar o direito sem, antes, provar a culpa do réu para além de toda dúvida razoável. Para tanto, eu me baseei no princípio epistêmico de Nozick, segundo o qual não basta que o indivíduo seja culpado para que você tenha o direito de puni-lo, é preciso também que você seja capaz de provar sua culpa. Naturalmente, da rejeição desse princípio decorreria que não teríamos o direito de impedir alguém de praticar violência contra qualquer outro com base em simples alegações desprovidas de qualquer fundamento.

Neste post, eu quero me ocupar da premissa maior daquele silogismo jurídico: a lei. Ora, eu acredito em direitos naturais, portanto, em leis naturais, no sentido kantiano de princípios a priori ou racionais do direito. Em outras palavras, eu acredito que há leis que são dedutíveis de nossa condição moral - da própria dimensão normativa da existência humana como tal - sendo, por conseguinte, independentes de nossa situação social ou de contratos que tenhamos firmado. Aliás, consiste nisso, e apenas nesse aspecto negativo, a sua "naturalidade". Mas, infelizmente, a precisão do conteúdo desse direito natural, mesmo entre jusnaturalistas, está longe de ser incontroversa. 

Certamente, o problema mencionado acima - a ausência de um consenso sobre o conteúdo do direito natural - não é nenhuma peculiaridade do anarquismo. Se postularmos um direito ao monopólio da execução do direito, nada se resolve. Pelo contrário, o problema fica agravado, porque estaremos submetidos a um poder que, de forma alguma, se pautaria por uma lei incontestável. Dito isso, o que podemos fazer para aplicarmos o direito diante da multiplicidade de interpretações do direito?

Parece-me que, em primeiro lugar, é preciso que seja garantida a segurança jurídica, isto é, é preciso que a lei seja publicada antes de ser aplicada. Você não pode aplicar uma punição sem que o punido saiba que está sujeito a ser punido, como se sua interpretação do direito natural fosse auto-evidente. Além de garantir a segurança jurídica, a publicação das leis garante também a possibilidade de que elas sejam contestadas e, eventualmente, aprimoradas. É claro que alguém não poderia ter o direito de evitar uma punição simplesmente alegando não concordar com a lei. A admissão desse tipo de defesa tornaria todo direito inaplicável. O que quero dizer é que não se pode, acima de tudo, criminalizar o próprio debate a respeito da legitimidade das leis públicas. Essa necessária abertura ao debate decorre do próprio fato de ninguém ser o monopolista por direito da interpretação e da aplicação do direito.

Outro aspecto importante da publicidade das leis é a necessidade de que as sanções sejam explicitadas com antecedência. O simples fato de um indivíduo ter violado uma lei, por mais que a consideremos uma expressão correta do direito natural, não dá aos demais o direito de fazerem o que bem entender dele para todo o sempre. Não posso alegar: "João violou uma lei, portanto, João passa a ser um sujeito destituído de direitos perante a sociedade, que pode tratá-lo, doravante, como simples coisa". É preciso que a lei defina a maior e a menor pena a que João se submete ao violar a lei pública para que não valha toda e qualquer ação com respeito a João. Afinal, um simples furto, por exemplo, não poderia aniquilar a personalidade moral de João. O culpado, em suma, continua a ser um portador de direitos, de modo que ele não pode receber nada além da pena cabível. Mas qual a pena cabível? No mínimo, não poderia ser uma pena arbitrariamente definida após a constatação de violação da lei, concordam?

Enfim, são algumas considerações que eu teria, no momento, a fazer dentro desse meu esforço de pensar o direito independentemente do monopólio do direito. Estou convencida, por enquanto, de que a institucionalização do direito não precisa implicar na estatização do direito. Até por isso, note bem que estive usando "lei pública" com um sentido independente de "lei estatal"...


sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Estado ou justiceiros?

O noticiário recente colocou em pauta a questão mais central do Estado, sua própria essência: o alegado direito ao monopólio da aplicação da justiça. Passando pela sala, peguei rapidamente alguns trechos de uma conversa a respeito do assunto na Globo News: "justiça pelas próprias mãos é uma contradição nos próprios termos", concordavam os participantes. Como estavam condenando quaisquer agentes que apliquem a justiça em concorrência com o Estado, e não apenas os que o façam em causa própria, suponho que fique implícita aqui uma definição de ação justa que coloca como sua condição necessária que um certo tipo de agente pratique a ação. Em outras palavras, se outro agente fizer exatamente o que o Estado faria em uma situação similar sob todos os aspectos relevantes, essa ação não será justa pelo simples fato de não ter sido praticada pelo Estado.

Não é curioso que a mídia mainstream não esteja disposta a incluir no debate vozes dissonantes no que diz respeito à aceitação dessa definição de justiça. O Estado - já disse antes e muitos outros ainda disseram antes de mim - se sustenta pela vitória nessa batalha ideológica, não por suas forças armadas. De minha parte, neste post, não me importa tanto questionar a legitimidade da dependência necessária que se estabelece entre justiça e Estado, mas sim refletir um pouco sobre o que deve nos horrorizar nas ações praticadas pelos justiceiros. É mesmo o fato de quem as pratica?

Note, em primeiro lugar, que o Estado faz muito pior do que amarrar pessoas em postes. Todo cárcere oficial do Brasil é um retrato da mais pura degradação humana. Porém, como o leitor atento percebeu, estou sendo caridosa com os estatistas, formulando sua definição de justiça como uma que inclua a sua execução pelo Estado como condição necessária, e não como condição suficiente. Quer dizer, parece-me que os apologistas do Estado podem conceder que o Estado cometa injustiças, embora não possam conceder que outros agentes pratiquem a justiça. Isso facilita a defesa do ponto deles. Seja lá como for, não me furto a observar que a barbárie não é privilégio desta ou daquela situação.

Mas vamos ao que interessa: sem o Estado, a única alternativa para a aplicação da justiça são as práticas grotescas relatadas nos noticiários? Não me parece que seja o caso! Do mesmo jeito que, à parte do Estado, indivíduos podem reconhecer direitos de propriedade a ponto de aplicarem penas a quem os viola, eles também podem reconhecer direitos processuais. Isso mesmo, como Nozick, eu acredito que o direito natural (racional ou a priori) contenha direitos processuais. Isso significa que, do mesmo jeito que qualquer pessoa teria o direito de punir quem comete um furto, qualquer pessoa também teria o direito de punir, por exemplo, quem pune alguém sem se certificar de todas as formas possíveis de seu envolvimento e seu grau de responsabilidade pelo ato. Em suma, aplicar uma punição a alguém, sem a devida certeza de que a punição é devida e proporcional ao ato, é cometer uma agressão como outra qualquer.

Agora, note que o reconhecimento de direitos processuais pode muito bem valer contra o Estado. Quantos Estados não condenam indivíduos sem reconhecer-lhes o amplo direito à defesa? Quando excluímos da definição da justiça que ela deva ser praticada por um agente em específico, o próprio estadista pode ser condenado por seus atos tirânicos de condenação e execução sumária. O problema, afinal, não é que um João qualquer espanque um suspeito. O problema é que o suspeito seja espancado, por mais que ela possa muito bem ser culpado!

E quando a culpa é provada, o condenado deve ser espancado? O que é pior: ser espancado ou viver uma semana em um presídio brasileiro? Honestamente, eu escolheria a primeira pena sem pensar duas vezes! Mas não se trata de preferência pessoal, claro. Trata-se de sabermos qual pena é justa, uma vez que definamos 1) que a ação foi praticada pelo réu; 2) que não foi uma ação justa. Parece-me, por sinal, bem mais fácil chegarmos a um princípio que nos permita separar objetivamente as ações conforme ao direito daquelas que não o são do que chegamos a um princípio igualmente objetivo que nos permita ajustar penas a violações do direito. O que restabelece minha tranquilidade diante dessa dificuldade é o fato de que ela se coloca absolutamente da mesma forma para os estatistas. A mera existência do Estado em nada resolve o problema da pena. Pelo contrário, torna muito mais difícil que alguém possa resistir a uma injustiça cometida neste aspecto.

Outro problema interessante - agora sim apenas para os opositores do monopólio do direito à aplicação da justiça - é como evitar que o mesmo sujeito seja punido diversas vezes por uma mesma violação do direito e, portanto, que ele seja punido em excesso, dado que qualquer um tem o direito de puni-lo, desde que respeite seus direitos processuais. Parece-me que, do ponto de vista do direito natural, é um dever que todo aquele que queira aplicar uma punição coordene sua ação com a de qualquer outro que poderia vir a alegar o mesmo direito. Assim, o reconhecimento da ilegitimidade do monopólio da aplicação da justiça não implica em um reconhecimento da legitimidade de ações isoladas para a aplicação da justiça.

Para entender meu ponto, imagine que 1) João tenha todas as provas necessárias para responsabilizar Pedro por uma autêntica violação do direito natural e 2) que a pena X seja proporcional à violação do direito cometida por Pedro. Nem por isso João tem o direito de aplicar a pena a Pedro sem procurar saber se 1) uma pena já não lhe teria sido aplicada e 2) se outros não estariam planejando aplicar-lhe também uma pena. Admitiríamos que, se João punir Pedro por um crime pelo qual Pedro já foi devidamente punido, João estará sendo injusto com Pedro, certo?

Bom, essas questões são bem complicadas... Este post era só para dizer que existe muita diferença entre negar o monopólio de direito do Estado e aceitar que qualquer um aplique a pena que bem entender a quem desejar pelo ato que quiser. Direitos processuais são direitos como outros quaisquer, que podem tanto ser violados pelo Estado como por João. Infelizmente, serão sempre violados por ambos.

 

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Inimigo íntimo, ou anarquismo kantiano contra Kant


Eu fiz o programa do evento, mas juro que foi uma mera coincidência que me fez estar sentada ao lado do Aguinaldo quando ele, pela primeira vez, apresentou sua exótica tese sobre o fracasso do argumento kantiano pela justificativa do Estado. Aquele momento foi histórico, porque, até onde se sabe, ao menos em solo brasileiro, Aguinaldo foi o primeiro a defender o anarquismo a partir de premissas kantianas. Internacionalmente, eu acho que Robert Paul Wolff (e apenas ele) já havia feito isso antes, mas creio que ele tenha feito de um modo diferente (faz tempo que estou para ler o texto dele e vou adiando em nome de outras prioridades). Com Aguinaldo, ao menos, não se tratava meramente de dizer que uma forma de anarquismo poderia ser construída a partir de Kant. Aguinaldo teve a coragem de dizer que, dadas as premissas expressamente aceitas, Kant precisaria ter chegado a uma determinada conclusão, ao passo que ele errou e derivou exatamente a conclusão oposta. Imaginem a explosão!

Eu me diverti muito estando presente. Tenho a maior admiração pelos meus queridos colegas da comunidade kantiana, porque se trata de uma comunidade extremamente argumentativa. As oposições não ficam veladas. Nós colocamos nossas cartas sobre a mesa sem receio de fazermos inimigos por defendermos teses opostas. E, modéstia à parte, fazemos isso com muita competência. A comunidade kantiana, até por razões históricas que não vêm ao caso, é um paradigma de rigor na filosofia acadêmica do Brasil. Então, imaginem como aquela sala de conferências em Campinas pegou fogo, no bom sentido, naquela tarde!

De minha parte, eu só fiquei assistindo de camarote, pois meus conhecimentos sobre o direito público kantiano não me permitiam tomar parte em um debate daquele nível. Bem mais recentemente, finalmente, decidi enfrentar o direito público de Kant como fizera Aguinaldo. Afinal, não basta dizer que a ética e o direito privado de Kant oferecem fundamentos sólidos para um anarquismo de cunho individualista. É preciso provar que o argumento de Kant em prol do Estado fracassa. Falar que Kant errou, afinal, é sempre fácil. Abrir o livro, explicar o argumento e mostrar onde está o erro é para poucos, pouquíssimos! Nesse sentido, vou confessar uma coisa. Houve momentos em que minhas convicções fraquejaram diante dos argumentos de Kant. Definitivamente, eu prefiro ter Kant no meu time. Jogar contra ele é um pesadelo! Mas deixem-me lhes apresentar o balanço geral das minhas impressões depois desse embate que me custou tanto esforço.

Se eu fosse explicar, do modo mais didático possível, o argumento de Kant, eu pediria para terem em conta, primeiramente, a impossibilidade física, para a maioria de nós, de que vivamos em isolamento. Essa é uma premissa de Kant que não pode nos passar despercebida. Como ele gosta de dizer, o fato da Terra ser esférica, em vez de se estender por um plano infinito, é significativo para o direito. A razão disso é que o argumento aceita como condição de sua validade que não possamos evitar que nossas ações tenham influência sobre outras pessoas. Se nós pudermos simplesmente evitar a repercussão de nossos atos na vida de outros, para tudo! Basta que nos apartemos e não há mais problema jurídico algum. Mas são poucos os que podem escolher viver como eremitas. A imensa maioria terá que viver em sociedade. Assim, partamos do fato da sociedade.

Muito bem, agora, outro aspecto. Você pode não saber, mas Kant tem uma concepção de natureza humana mais pessimista do que a de Hobbes. Em escritos não publicados, chega a ser chocante o que ele diz sobre o modo como nos comportaríamos na ausência do Estado. Você pode pensar em Kant - e em nós kantianos - como um idealista quanto à bondade humana, mas não é nada disso. Para Kant, o dever moral sempre nos revela apenas e tão somente nossa capacidade moral. Isso não significa, em absoluto, que Kant acredite que as pessoas de fato escolham viver moralmente. Pelo contrário, ele nos diz expressamente que, diante da ausência de coerção externa, a tendência é escolhermos o mal, como podemos constatar pelo conhecimento que temos de nós mesmos.

Contudo, dito isso no § 42 da Doutrina do Direito, um pouco adiante, no 44, Kant indica não precisar de uma premissa antropológica tão forte. Ele sugere que suas conclusões se seguiriam mesmo que os seres humanos fossem bem dispostos em relação uns aos outros. Daí, a importância da inevitabilidade do contato humano. Onde houver sociedade, haverá conflito jurídico. Isso ocorre, porque mesmo pessoas de boa fé podem falhar cognitivamente, embora não do ponto de vista volitivo. Explico. Você quer respeitar o direito dos outros. Todavia, você entende que está fazendo isso, enquanto a outra parte, também de boa fé, acredita que você está violando seu direito. Pense, por exemplo, em dois vizinhos que discordam sobre o limite onde deve ser colocada a cerca que separa suas propriedades. Para imaginar um conflito aqui, não precisamos pressupor que um queira roubar parte das terras do outro. Eles podem, honestamente, acreditar que suas propriedades se estendem até pontos diferentes e conflitantes.

Ora, se você concede a possibilidade acima, você deve conceder que, sem o Estado, ninguém pode garantir que meus direitos não serão violados até por pessoas que pretendem agir em conformidade com o direito. Assim, o estado de natureza é um estado de insegurança jurídica, um estado onde nenhum direito é, como gosta de dizer Kant, peremptório, isto é, nenhum direito é indisputável e nenhuma disputa pode ser definitivamente selada. 

Dada essa situação, Kant defende que seja um dever moral que adentremos a condição civil. E, se é um dever moral jurídico, posso, inclusive, usar a força para obrigar o indivíduo a cumprir com ele. É assim que Kant acredita que o contrato social dispensa a necessidade de consentimento voluntário. Você pode obrigar o outro a entrar com você em uma condição em que nós dois abandonamos o direito de obrigarmos qualquer um a fazer qualquer outra coisa. Nós dois, no caso, na condição civil, transferimos esse direito de exercer a coerção em nome do direito para um terceiro. Desse momento em diante, só por meio dessa figura, alguém pode ser obrigado ao que quer que seja. Isso significa que os direitos passarão a ser garantidos de forma peremptória, pois, uma vez que essa figura jurídica recém instituída se manifeste em definitivo, ninguém terá o direito de contestar sua decisão, exceto em meras palavras.

Agora - e isso é essencial - notem o seguinte: se apenas por meio dessa figura jurídica é que a força pode ser exercida em conformidade com o direito, então a força jamais poderá ser exercida contra essa figura. Kant admite que temos direitos com respeito a essa instituição. Ele ressalta, porém, que são direitos não coercivos. Em outras palavras, nós não podemos obrigar essa instituição a respeitar nossos direitos. Isso faz todo sentido dado que nós delegamos a essa instituição a coerção conforme ao direito. É assim que nasceria aquele monopólio do uso da força de que Weber nos falará mais tarde: todo o direito de executar o direito pertence ao Estado.

Bem, voltemos ao que Kant nos dizia sobre a natureza humana, tão propensa a violar direitos quando acha uma oportunidade para tanto. Pensemos ainda no que ele nos diz sobre a possibilidade de que mesmo pessoas bem dispostas, por erro de juízo, violem direitos. Não seria então absolutamente natural pensarmos que os representantes do Estado cometerão erros, sejam esses volitivos ou cognitivos? Na verdade, no que convém ainda mais ao ponto anarquista, Kant está bem ciente de que a maioria pode marchar contra o direito da mesma forma que qualquer indivíduo tomado isoladamente. Na verdade, ele parece acreditar que a tendência da maioria sempre será optar pelo bem-estar, em detrimento da justiça.

Neste ponto, então, eu pergunto: faz sentido acreditar em um dever moral (categórico) de assinar o contrato social, aquela passagem só de ida para a condição civil? Veja bem, você pode muito bem nem sequer estar envolvido em uma disputa. Kant deixa claro que seu argumento não pressupõe um fato empírico: uma pendenga a ser resolvida. Partamos então do princípio de que você não é um agressor, não violou direito algum. Mesmo assim, você pode ser coagido a adentrar em um tipo de associação onde você ficará absolutamente indefeso caso seus direitos sejam de fato violados? 

É verdade que, mesmo que eu nunca tenha agredido ninguém, o estado de natureza é uma condição em que eu sempre represento para o outro um risco de agressão. Mas, em nome desse mero risco, ele tem o direito de me obrigar a aceitar uma condição em que eu só poderei reclamar verbalmente quando (eu não digo "se" propositadamente, mas bastaria o "se" para meu argumento) meus direitos forem de fato violados pelo Estado?

Para mim, isso não faz sentido algum! Dadas justamente as premissas de Kant, faz mais sentido moral ficarmos no estado de natureza, onde há maior equilíbrio de forças, e ninguém será um Deus entre meros mortais. Vocês se lembram do que Gláucon, partindo de semelhante concepção da natureza humana, diz na República? O maior dos bens é praticarmos injustiças sem sermos punidos. O maior dos males é sermos vítima de injustiça sem podermos nos vingar. Assim, escolhemos o caminho da justiça, que é o caminho do meio, porque o maior dos bens não está disponível para nenhum mortal. Ora, eu digo que o que o argumento de Kant faz é apenas entregar o anel de Giges para um mortal (ou muitos deles). O que fizeram com o anel? A história mostra...

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

A resposta de Nozick a Rothbard


Não sei se o próprio Nozick respondeu às críticas de Rothbard à sua defesa do Estado e fico grata desde já ao leitor que me esclarecer a respeito. Por sinal, foi através de um gentil leitor que travei conhecimento com a própria crítica de Rothbard, que vocês podem acessar aqui. Neste post, eu vou brincar de vestir as armas de Nozick para responder a Rothbard.

Como serei um tanto dura com Rothbard, antes de mais nada, gostaria de expressar minha admiração por ele. Na verdade, mais do que de admiração, trata-se de identificação. Há auto-declarados “libertários” que, a julgar por seus argumentos, se tornariam socialistas no ato se provassem a eles que todos ficariam com a barriga mais cheia com menos liberdade. Inclusive, gosto de dizer que esses "libertários" não acreditam no princípio da não agressão, mas sim no "princípio da barriga cheia". Esse não é o caso de Rothbard. O fato dele ser libertário por princípio moral aflora a cada linha passional de seu texto. Eu gosto disso! Aprecio gente de caráter, o que, para mim, é sinônimo de gente comprometida com princípios (que não o da "barriga cheia").

Dito isso, no entanto, devo observar que, com exceção de alguns pontos fracos bem captados,  a leitura que Rothbard faz de Nozick me parece tão equivocada que tendo a creditar seus equívocos a esse mesmo entusiasmo moral. É como se, ao ter diante de si um dos objetivos anunciados de Anarquia, Estado e Utopia - a justificativa de um Estado mínimo - Rothbard não tivesse nenhum interesse em verdadeiramente entender o ponto de seu oponente, mas apenas o firme propósito de refutá-lo para pôr a salvo seu anarco-capitalismo. Porém, se tivesse realmente se empenhado em compreender as teses de Nozick, duvido que Rothbard, ao fim do processo, teria ainda alguma preocupação em refutá-lo. Vejamos por que sustento tal tese.

Para começar, gostaria de mencionar um ponto em que Rothbard e eu estamos de acordo contra Nozick. Eventualmente, mencionarei outros no decorrer do texto. De fato, Nozick parece se fiar demais em um argumento que é meramente conjectural. É impossível provar a priori (ou por meros conceitos, sem recurso à experiência) que, em uma sociedade anarco-capitalista, surgiria uma agência protetora dominante ou um sistema unificado de agências do tipo. Nozick pode apenas conjecturar sobre como clientes e executivos calculariam seus interesses em um mercado do tipo. Ele não pode demonstrar logicamente que o livre mercado tomaria um ou outro rumo.

Todavia, eu não estou certa do impacto dessa observação sobre a tese geral de Nozick. Se fizermos o que Rothbard não fez, ou seja, se lermos o texto de Nozick com a lupa, notaremos que, já na p. 05 da edição original de Anarquia, Estado e Utopia, Nozick afirma que basta a ele mostrar que o Estado "would be an improvement if it arose [seria um avanço se surgisse]", acrescentando que "this would provide a rationale for the state’s existence; it would justify the state [isso traria uma razão para a existência do estado; justificaria o estado]". Em suma, ainda que Nozick pareça ter a convicção indevida de que uma agência dominante ou um sistema unificado emergiria da livre concorrência entre as agências, uma leitura cuidadosa mostra que o argumento dele apenas requer que seja provado que, longe de cometer uma violação contra qualquer direito individual, a emergência de uma agência dominante ou a formação de um sistema unificado de agências seria benéfica aos direitos individuais. 

Nozick quer refutar a tese anarquista de acordo com a qual: "any state necessarily violates people’s moral rights and hence is intrinsically immoral [qualquer estado necessariamente viola direitos morais das pessoas e, portanto, é intrinsecamente imoral]". Trata-se, como se vê, de um objetivo meramente conceitual, e não histórico: defender a compatibilidade lógica entre a existência de um Estado e o respeito a direitos morais dos indivíduos. Daí que Nozick não recorra à história para mostrar que Estados reais, de fato, teriam emergido sem violência. Basta que Estados possam emergir e se manter sem violência para que anarquistas não possam condenar o Estado enquanto tal como agressor por definição.

Seja lá como for, aqui, Rothbard pode ainda discordar, alegando que, ao contrário do que pensa Nozick, a concentração de poder seria uma ameaça à liberdade individual. Contudo, ambos os filósofos estão de acordo quanto à probabilidade (e à necessidade) de que os conflitos entre as agências de proteção não sejam resolvidos pela força. É, grosso modo, do interesse egoísta de todos por soluções pacíficas que Nozick deriva a ideia de um sistema unificado ou de uma agência dominante. 

E será que o Código de Leis Básico de Rothbard, ao qual todos os juízes obedeceriam, não contaria como o sistema unificado de Nozick? Se todas as agências seguissem um mesmo código, como se fosse sua constituição, elas não formariam uma federação de agências? Note-se que Nozick não menciona um Supremo Tribunal Federal. Tudo que ele diz (p. 16) é que: "Thus emerges a system of appeals courts and agreed upon rules about jurisdiction and the conflict of laws. Though different agencies operate, there is one unified federal judicial system of which they all are components. [Assim, emerge um sistema de cortes de apelação e acordos sobre regras sobre jurisdição e o conflito de leis. Embora diferentes agências operem, há um sistema judicial federal unificado do qual elas são todas componentes]". Por isso, deixo registrada aqui minha suspeita de que a divergência entre Rothbard e Nozick quanto ao ponto seja muito mais terminológica do que conceitual.

Então, a esta altura, já começamos a perceber que Rothbard e Nozick não estão tão distantes como pensa o primeiro. Agora, precisamos entender que, quando Nozick se refere a um monopólio por parte da federação das agências ativas em um dado território, ele não está, de modo algum, criminalizando a concorrência como Rothbard o acusa de fazer. Prova desta minha leitura, pode, por exemplo, ser encontrada na p. 113, quando Nozick discute o interesse dos clientes em manterem seu contrato com a agência dominante/agência membro da federação. Eles são livres para deixarem qualquer agência da federação ou a única agência dominante, conforme for, e escolherem se querem contratar uma agência independente ou se defenderem por conta própria. Aliás, como uma curiosidade a esse respeito, observem o quão raras são as aparições do termo "cidadão" na primeira parte de Anarquia, Estado e Utopia, e comparem com o número de aparições do termo "cliente". Para Nozick, ao fim e ao cabo, somos clientes do Estado, exatamente porque decidimos ficar sob suas leis pelas razões a respeito das quais ele especula. Não somos coagidos a tanto. 

Outra prova do que estou dizendo quanto à falsidade da acusação de que Nozick criminalizaria a concorrência encontra-se às pp. 109-110 da obra em questão, quando Nozick afirma expressamente que o Estado não poderia interferir se os independentes estiverem satisfeitos com os procedimentos de justiça aplicados entre eles, tese exatamente oposta à que Rothbard atribui a Nozick: "the protective association would have no proper business interfering if both independents were satisfied with their procedure of justice. [a associação protetora não teria nada que interferir se ambos os independentes estivessem satisfeitos com seus procedimentos de justiça]." Na verdade, Nozick parece admitir que mesmo os clientes, em comum acordo, podem solicitar à agência dominante (vulgo Estado) que não interfira no conflito deles.

Por fim, esta passagem da p. 109 é taxativa contra a interpretação de Rothbard de acordo com a qual o Estado de Nozick criminalizaria agências concorrentes: "Other protective agencies, to be sure, can enter the market and attempt to wean customers away from the dominant protective agency. They can attempt to replace it as the dominant one. [Outras agências protetoras, com certeza, podem entrar no mercado e tentar tomar clientes da agência protetora dominante. Elas podem tentar substitui-la como a agência dominante]."

Aqui, é fundamental observar que a agência dominante (ou a federação de agências) é denominada Estado por ser a única forte o bastante para garantir a seus clientes que eles não serão penalizados injustamente, ou ao menos que quem os punir injustamente não ficará impune. É só isso. O mesmo direito, na verdade, assiste aos independentes da mesma maneira, mas só a agência dominante (ou a federação) é forte o bastante para aplicá-lo. Por isso, Nozick insiste tanto que se trata de um monopólio de fato, não de direito (por exemplo, p. 109): "the right includes the right to stop others from wrongfully exercising the right, and only the dominant power will be able to exercise this right against all others. [o direito inclui o direito de impedir outros de exercerem erroneamente o direito, e somente o poder dominante terá condições de exercer esse direito contra todos os outros]."

Vejam, aqui, temos um outro ponto essencial a tratarmos. Rothbard nega a existência desse direito universal, que, no entanto, apenas o mais forte conseguiria fazer valer. Para lidarmos com isso, deve ser notado que temos aqui, a princípio, um outro ponto de minha convergência com Rothbard: eu concordo com ele quanto ao fato de Nozick cometer um grave equívoco ao defender que ações de risco podem ser proibidas, desde que aqueles que tenham suas ações proibidas sejam devidamente recompensados, nos casos em que a proibição os deixa em desvantagem social. Eu estou com Rothbard quando ele defende que ações de risco não podem ser proibidas, sob pena de abrirmos as porteiras para todo tipo de violação de direitos. Afinal, qual ação não representa qualquer risco de violação de direitos dos outros? Ainda que Nozick enfrente esse tipo de objeção, confesso que, mesmo com a lupa, não encontrei um bom argumento a ser usado em sua defesa, assim como não fui capaz de pensar em um por conta própria.

Porém, se Rothbard tivesse usado o mínimo de caridade hermenêutica - aquele princípio salutar de acordo com o qual lemos nosso adversário procurando os pontos fortes de seu argumento, em vez de apenas explorarmos seus pontos fracos - ele teria notado que, totalmente à parte da proibição das ações de risco, Nozick tem um bom argumento para defender a tese segundo a qual é parte do direito que tenhamos também o direito de impedir execuções equivocadas do direito, sendo esse, como já dito, um direito que assiste igualmente a todos, mas que uma agência dominante estaria em condição privilegiada para levar a efeito. Trata-se de um argumento baseado no princípio epistêmico, que passo a expor e defender.

Muito bem, eis a formulação do referido princípio, encontrada na p. 106: "If someone knows that doing act A would violate Q’s rights unless condition C obtained, he may not do A if he has not ascertained that C obtains through being in the best feasible position for ascertaining this. [Se alguém sabe que fazer A violaria os direitos de Q a menos que a condição C estivesse realizada, ele não pode fazer A se ele não se certificou que C se realiza, estando na melhor posição viável para se certificar disso]."

Para entendermos o que está em jogo aqui, consideremos o seguinte cenário. O carro de meu vizinho foi furtado de sua garagem durante a madrugada. Eu sou cliente da agência dominante, o que não é o caso de meu vizinho. Meu vizinho, por sua vez, alega ter consultado os serviços de uma vidente, que, lendo suas cartas, teria revelado a ele que eu fui a autora do furto de seu carro, um episódio inédito na carreira dessa vidente Assim, sob essa alegação, ele leva o meu próprio carro como reparação do furto sofrido por ele, admitindo que, se eu não tivesse primeiramente furtado seu carro, ele não teria o direito de levar meu próprio carro, já que esse ato, sim, então se constituiria em um furto. Para completar o cenário, suponha ainda que eu sou realmente culpada pelo furto de que sou acusada. Porém, minha agência não sabe disso, sendo que meu vizinho não dispõe de qualquer evidência ou razão para desconfiar de mim, exceto pelo testemunho da vidente baseado no jogo de cartas, jogo este que, jamais, outrora desvelou qualquer crime. Nessas circunstâncias, a minha agência tem o direito de punir meu vizinho por ter levado meu carro? 

Note que, se sua resposta for "não", como parece ser a resposta de Rothbard, a minha agência se torna completamente inócua para mim, já que eu posso vir a sofrer qualquer agressão, sem que ela puna o agressor, desde que o agressor, por um motivo qualquer, alegue estar ele próprio me punindo. De repente, o meu agressor teve uma revelação em sonho sobre minha identidade secreta de serial killer, por exemplo. Ora, mesmo para além de qualquer questão operacional da minha agência, que ficaria sempre de mãos atadas se quisesse me proteger sem violar direitos alheios, de fato, o direito natural parece requerer que eu possa comprovar a culpa de alguém, para além de toda dúvida razoável, antes de lhe aplicar uma punição qualquer. Afinal, que eu seja uma ladra não pode autorizar moralmente alguém a tirar de mim os bens que furtei, a menos que se possa provar que sou uma ladra, como reza o princípio epistêmico.

Parece então que a sensatez requer que, uma vez que acreditemos em direitos, incluamos dentre eles o direito de impedirmos a aplicação do direito a todo aquele que não comprovou a culpa do réu para além de toda dúvida razoável. Do contrário, todo e qualquer direito poderia ser violado mediante simples alegações falsas de direito por parte do agressor.

Agora, se você aceita 1) o princípio epistêmico e suas implicações, e 2) a possibilidade de uma federação de agências protetoras (ou uma agência dominante), então, você deve aceitar 3) que independentes podem ser impedidos de executar o direito dentro de um território sem que isso implique, necessariamente, na violação de seus direitos. 

Porém, nunca poderíamos insistir demais que a) o mesmo direito assiste aos independentes com relação à agência dominante e que b) a agência dominante/federação só tem esse direito com relação à proteção de seus próprios clientes, pois, como afirma Nozick, a agência/federação possui apenas os direitos que seus clientes escolheram transferir a ela. Fala-se em monopólio de fato, e não de direito, porque o independente que acreditar que a agência não provou, além de toda dúvida razoável, a culpa de um réu condenado será impotente para agir, embora tenha o direito de impedir a execução da pena.

Estamos diante então de uma grande ameaça à liberdade quando permitimos o surgimento de uma agência dominante? Ora, talvez, haja o risco de violação de direitos aqui, mas lembre-se que foi Rothbard quem se levantou contra a proibição de ações de risco! Assim, segundo Rothbard, não poderíamos impedir que a maioria das pessoas se tornassem clientes de uma mesma agência, alegando que isso colocaria em risco os direitos da minoria (Nozick lida muito bem com essa questão, mesmo tendo que aceitar a premissa da proibição das ações de risco, mas seu argumento é muito sutil para que eu o exponha aqui). 

Ademais, também é preciso que mantenhamos em mente que os clientes estariam moralmente autorizados para romperem com a agência dominante/federação, caso julgassem injustos os procedimentos da agência dominante ou federação. Suponha, por exemplo, que seja a agência dominante/federação a agir aleatoriamente em processos penais, sem que a prática seja permitida pelo contrato do cliente. O cliente estaria tão moralmente obrigado a continuar na condição de cliente de um Estado injusto quanto você está moralmente obrigado a renovar um contrato de telefonia que não o serviu. 

Ah, mas quem vai proteger o cliente que acusa a agência dominante/membro da federação de não cumprir o contrato, ou, simplesmente, o cliente que quer exercer o direito de não renovar o seu contrato? Talvez, ninguém tenha força para isso. Mas o ponto é que uma agência que se comportasse com tal violência perante seus próprios clientes seria, para a filosofia de Nozick, uma agência agressora ilegítima da qual seríamos vítimas, e não o Estado moralmente justificado.

Foi essa necessidade interna à teoria de Nozick de que a agência sempre satisfizesse seus clientes, por sinal, o grande ponto que escapou a Rothbard. Por isso, por exemplo, Rothbard acusa Nozick de não ter uma teoria para a cobrança de impostos ou para procedimentos democráticos. Quanto a essas críticas, eu apenas pergunto a Rothbard: Que impostos? Que democracia? Para a teoria, trata-se de clientes satisfeitos de uma empresa, e nada mais! Da mesma forma, não se trata de alienar os direitos de gerações futuras. Um filho nem sequer herdaria algum direito, possuído pelo pai, de ser protegido pela agência protetora da qual o último teria sido cliente, a menos que o pai tivesse deixado como herança exatamente o título de proteção pago. De outra forma, o filho teria que pagar por essa proteção, como qualquer outro, ou seria um independente.

A propósito, esse é outro ponto interessante. Nozick, com base no equivocado princípio de compensação por proibição de ações de risco que causam desvantagens, acredita que a agência dominante/federação deve ajudar o independente carente a pagar por seus serviços de proteção, quando ele é proibido de executar a justiça contra um membro da agência. Mas isso é algo muito diferente de se dizer que todos os habitantes de um dado território ficam cobertos pelos serviços de proteção da agência dominante/federação que atua naquele território. Aquele independente que fosse agredido por outro independente não teria direito a qualquer proteção por parte da agência dominante/federação. Tampouco teria esse direito aquele independente que entrasse em conflito com o cliente da agência dominante/agência membro da federação, negando-se a pagar pelo montante do valor da proteção que ele teria condições de pagar. Consultem a p. 113 de Anarquia, Estado e Utopia quanto a esse ponto.

É por todas as considerações feitas acima que digo que, na ânsia de refutar qualquer justificativa do Estado, Rothbard discutiu com um espantalho que ele mesmo criou, não com Nozick. Ainda que Nozick tenha cometido falhas pontuais - notadamente quanto ao princípio da compensação - que vício moral, afinal, Rothbard poderia denunciar em um Estado utópico que permite desfiliação e concorrência? Qual direito seria violado por esse Estado? O direito de consultar videntes ou folhas de chá (exemplo de Nozick) para descobrir culpados e poder executar penas?

Parece-me que o triunfo de Nozick foi ter obtido sucesso em mostrar que um determinado Estado pode emergir sem violar qualquer direito individual e, portanto, que o Estado não é intrinsecamente imoral. Agora, se um rothbardiano quisesse lançar uma última cartada, bastaria perguntar: isso que Nozick justificou tem alguma coisa a ver com o que mais alguém neste mundo já chamou de Estado?




terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Podcast: Esse tal de libertarianismo

Livre Intercâmbio Podcast - Episódio 02: Esse tal de libertarianismo

Prezados amigos leitores, compartilho com vocês o podcast gravado com meu amigo Alexandre Costa, também libertário. Espero que gostem! Achei muito bacana gravar essa conversa, apesar de preferir bem mais escrever, para não deixar tantas pontas soltas na argumentação.

Falando nisso, agradeço a todos por terem dedicado um pouco do tempo de vocês para a leitura de textos meus em 2013 e desejo um excelente 2014! Continuemos divulgando a ideia de um mundo mais livre, portanto, mais justo!