terça-feira, 30 de julho de 2013

O meu libertarianismo

Como sempre, lá vou eu escrever um post para organizar aqui minhas ideias. Desta vez, peço que você note que vou esclarecer o que eu, particularmente, entendo pela doutrina que eu, pessoalmente, sigo como filosofia de vida. Não me importa que você, por sua vez, use a mesma palavra com outro significado. Por meio deste post, eu não reivindico o monopólio do conceito de "libertarianismo". Eu peço apenas que, para ser entendido, você seja igualmente cuidadoso e me explique também o que você quer dizer com o conceito, quando usá-lo em uma conversa comigo. Por exemplo, basta que você me explique: "Andrea, para mim, ser libertário é não comer carne de porco". Ok. A partir disso, a conversa será possível e não perderemos tempo com mal-entendidos.

Muito bem, em primeiro lugar, eu acho que há um mal-entendido de base nas discussões sobre libertarianismo quando pensamos que todos estamos de acordo, só porque todos dizemos que somos favoráveis às liberdades individuais. Honestamente, você já encontrou alguém que assumisse publicamente ser contra as liberdades individuais? Por acaso, algum comunista discursa contra a liberdade individual? Pelo contrário, o comunismo não seria justamente a situação social na qual, finalmente, o indivíduo realiza sua liberdade? E os conservadores de direita mais reacionários? Eles não dizem temer exatamente a destruição das instituições que a sociedade ocidental construiu para preservar a liberdade? Não são eles defensores intransigentes das liberdades econômicas?

Mas então é isto: somos todos a favor das mesmas coisas e discordamos quanto aos meios para nosso fim comum, eventualmente, sendo mais ou menos coerentes com nossos princípios? Não, não é isso! Nós não estamos falando das mesmas coisas. Nós estamos apenas usando as mesmas palavras! E nós estamos pecando filosoficamente ao não definirmos os conceitos com os quais operamos. Para começar então a correção dessa falha, eu explico o que as palavras "liberdade individual" querem dizer quando saem juntas assim da minha boca.

Penso nisso a partir do seguinte cenário: Bill Gates, o mendigo que te pediu uns trocados ontem e eu queremos uma Ferrari. O Bill Gates, porém, é o único dentre nós que pode efetivamente comprar a Ferrari. Eu não posso. O mendigo, muito menos. Assim, como só o Bill Gates pode comprar a Ferrari, seria o caso de dizermos que só o Bill Gates é livre para comprar a Ferrari? Você pode dizer. Será o seu conceito de liberdade individual. Não é o meu! Para o meu libertarianismo, liberdade individual significa o mesmo que Kant disse que ela significava enquanto único direito inato do homem: a independência de constrangimentos representados pelo arbítrio do outro. 

Em outras palavras, liberdade não é poder físico ou material. Não tem a ver com sua capacidade de mobilizar meios para a realização de seus fins. Tem a ver apenas com uma constatação relativamente simples: existe ou não existe um arbítrio de outro me impedindo de realizar meu fim? Em suma, ninguém proibi a mim e ao meu companheiro mendigo de comprarmos a Ferrari, ao passo que autoriza o Bill Gates para tanto. Portanto, todos nós estamos no mesmo barco no tocante à liberdade. Todos nós podemos, ainda que só o Gates possa. Ou, deixando de brincar com palavras, todos temos permissão, ainda que só o Gates tenha a capacidade.

Pronto, agora, você sabe por que eu digo que o pobre é livre para aceitar trabalhar em troca de um salário mínimo, ao passo que o esquerdista dirá que ele não é. É verdade que pode haver "algo" obrigando o pobre a aceitar o trabalho em troca de um salário baixo (a fome?). Mas o que é politicamente relevante, para mim, é que não há "alguém" (outro arbítrio) obrigando-o ao que quer que seja. Assim, quando eu defendo a liberdade individual, eu não defendo que as pessoas sejam providas com recursos materiais para a realização de seus fins, eu defendo apenas que elas não sejam impedidas por outras pessoas de realizarem seus fins. É diferente! Veja então que não estamos partindo de um princípio comum, não temos um fim político comum. 

Mas eu quero aprofundar ainda mais nossas diferenças. Muitas pessoas, em alguma medida, defendem a liberdade individual exatamente no sentido que eu abracei acima. Ainda assim, elas não compartilham da mesma doutrina política que eu. Elas não são libertárias no mesmo sentido que eu. 

Eu disse acima, basicamente, que defendo que a ação de uma pessoa não possa ser obstaculizada por outra pessoa. Mas é claro que essa alegação requer qualificação. Se eu quiser passar uma navalha no seu pescoço, certamente, você reivindicará, e com razão, o direito de limitar minha liberdade. Aqui, entramos então naquela conversa de que a liberdade precisa de limites. Todos concordamos sobre isso! Hmmm... será mesmo? De novo, eu vou defender que não estamos de acordo, quer dizer, que não falamos da mesma coisa quando usamos as mesmas palavras e dizemos: a liberdade individual deve ser limitada.

Para o meu libertarianismo kantiano, não existe nenhum princípio superior à liberdade e, por conseguinte, capaz de limitá-la ou restringi-la. Ponto! Não me importa se todos viveremos na miséria se formos livres, não me importa se a espécie humana será extinta... Moralmente, só me importa que sejamos livres. Parafraseando Kant, digo eu: se não houver liberdade, não importa que vivam homens sobre a terra. Deixem-na às baratas! O que pode limitar a liberdade então? Eu digo: apenas, ela mesma! 

Na doutrina que professo, o único limite moralmente legítimo à liberdade brota do seu interior, não é imposto a partir do seu exterior! A liberdade se auto-limita para não se auto-destruir. É aí que, no momento que eu considero como o mais relevante da história da filosofia jurídica, Kant defende que a única coerção analiticamente compatível com a liberdade é a coerção da coerção. Em outras palavras, se a minha liberdade pode coexistir com a sua ou com a liberdade de qualquer outro segundo leis universais e, ainda assim, você impede minha ação, você me violenta, me causa dano. 

Eu interpreto esse manifesto libertário contido nas primeiras páginas da Doutrina do Direito da seguinte maneira. Suponha que a minha ação seja permitida pela legislação estatutária, por qualquer tipo de ordem social vigente. Nesse caso, os outros terão suas próprias ações impedidas? Colocando mais concretamente, suponha que, na minha sociedade, seja permitido ouvir música em um volume digno de uma festa na selva em uma rua residencial. Alguma ação seria impedida? Claro que seria! Eventualmente, eu não poderei dormir dentro de minha própria casa, não poderia conversar, estudar, ver TV, etc... Agora, suponha que a legislação vigente permita, por sua vez, que eu durma em minha casa, converse com meus amigos, estude, veja pornografia na internet, promova uma orgia, etc... Nesse caso, os meus vizinhos ficam impedidos de praticar alguma ação, mesmo a de ouvir música? É claro que não! Por isso, neste cenário hipotético, sou eu quem pode limitar a liberdade do vizinho de ouvir música feito um selvagem, mesmo que ele o faça em sua propriedade. No final das contas, a liberdade irrestrita da parte dele restringe a minha liberdade e é só por isso que ela própria pode ser restrita, dado que a negação de uma negação é uma afirmação. 

Note ainda, para não dizer bobagem como disseram estes dias em um tal de "instituto liberal", que o mesmo critério pode ser estendido para a partilha de um espaço público. Suponha uma rua, de propriedade do governo, pela qual todos possam passar. Se alguém quiser passar pela via sem roupa, praticando atos obscenos (desde que esses atos envolvam apenas a manipulação de seu próprio corpo e seus próprios objetos pessoais, ou os de outros por consentimento), essa ação impedirá qual ação por parte de outra pessoa? Essa ação vai chocá-lo, vai enojá-lo, vai, enfim, afetar seu sentido interno. Mas, objetivamente, admita, essa ação ultrajante não vai impedi-lo de fazer nada! Você fica completamente livre para olhar na direção oposta e seguir seu caminho. Logo, não é uma ação que possa ser impedida em conformidade com a liberdade segundo leis universais.

Em suma, o meu libertarianismo aceita que se negue a liberdade apenas e exclusivamente para afirmá-la. Não para vivermos em um mundo melhor, não para evitarmos tensões sociais, não para não sentirmos isso ou aquilo, não para sermos mais felizes... É isso o meu libertarianismo. E o objetivo deste post não era o de te converter para ele, mas apenas o de te ajudar a entender nossas diferenças, ou porque não estamos todos de acordo, mesmo quando usamos as mesmas palavras.


sábado, 27 de julho de 2013

Libertarianismo e pobreza: somos cruéis?


Tivemos hoje a primeira reunião do grupo que montei para o estudo da filosofia política de Robert Nozick. Como eu já esperava, dada a qualidade de meus alunos e colegas, e o caráter instigante do texto de Nozick, a discussão foi ótima. Eu, ao menos, tirei enorme proveito.

Claro, como também era esperado, um dos pontos que gerou o debate mais acalorado foi a situação dos pobres em uma sociedade libertária, ou seja, uma sociedade onde não haverá programas estatais de combate à pobreza ou uma rede social de amparo à população carente. Talvez sob a influência dos discursos libertários de cunho mais político do que filosófico que tenho lido ultimamente, mandei logo a resposta padrão, falando da suposta eficiência do livre mercado para fazer com que, a longo prazo, mesmo os mais pobres vivam confortavelmente, e dos supostos problemas econômicos gerados pelos gastos públicos. Foi aí que meu querido amigo Aguinaldo protestou contra meu rompante consequencialista, expressando sua preferência pelo argumento normativo pautado pelo princípio da não-agressão: não se pode roubar de um para dar a outro.

Desde então, fiquei pensando nisso e estava convicta de que tinha uma boa resposta para o Aguinaldo. Assim que sobrou um tempinho, tratei de escrever a ele, não por ter alguma ânsia de fazê-lo pensar como eu, mas porque, sempre que converso com Aguinaldo, eu organizo melhor minhas ideias e, de uma forma ou de outra, evoluo em relação ao meu ponto de partida. A coisa foi mais ou menos assim:

"Sobre o encontro de hoje, eu fiquei pensando sobre sua recusa completa do consequencialismo. Eu costumo observar que é preciso separar e compreender bem a independência das duas linhas argumentativas. Mas eu não estou tão convencida de que podemos ter argumentos minimamente convincentes se nos mantivermos estritamente no plano deontológico dos argumentos a priori. Note, porém, que eu estou falando da nossa capacidade de convencimento, não de uma carência lógica. Eu não acho que o argumento normativo precise de alguma espécie de complementação empírica. O que eu acho é que podemos chegar a uma situação em que a pessoa concede que nosso argumento normativo é perfeitamente válido, porém, opta por recusar sua premissa, e, talvez, essa recusa seja razoável mesmo.

Vou tentar explicar o que tenho em mente. O Charles [outro amigo e colega que participa do grupo] disse que todo mundo aceita o princípio da não-agressão, ou seja, que ninguém defende a agressão. Mas isso não é verdade. Pensemos no seguinte cenário.

Recusamo-nos a fazer uso dos argumentos da escola austríaca de economia [por misturarem axiomas com constatações empíricas], nos atemos aos filósofos morais propriamente e, assim, concedemos ao nosso adversário que o Estado poderia gastar sem gerar pobreza em larga escala a longo prazo, assim como concedemos que o livre mercado não tende necessariamente a gerar sociedades onde os mais pobres, em geral, vivem confortavelmente. Nós provamos, pura e simplesmente, que a situação de livre mercado é uma situação moralmente irretocável.

Muito bem, nós temos então que admitir a possibilidade da existência de extrema miséria em larga escala convivendo com a formação de uma elite econômica muito rica. Agora, nós não podemos provar a priori que as pessoas farão caridade nessa sociedade. Você concede então um cenário em que há miséria e as pessoas vão morrer sem amparo, afinal, mesmo que você se importe com isso, sem poder contar com outros para ajudar, você não resolverá o problema sozinho. Então, surge a seguinte consideração: será que não é razoável aceitar uma agressão aos mais ricos, desde que essa agressão não mude bruscamente sua situação econômica, se o objetivo dessa agressão é salvar a vida de alguém muito pobre? Não é razoável permitir que milionários sejam minimamente agredidos para que os pobres sejam maximamente beneficiados, ao deixarem de perder a própria vida? Suponha que eu tire R$200,00 ao mês dos muitos ricos para comprar remédios para os muitos pobres. Eu estou cometendo uma agressão mínima para provocar um benefício essencial.

Claro, você vai dizer, meu argumento é utilitarista. Mas eu acho que você nem precisa ser propriamente utilitarista para aceitá-lo. Veja que não estou dizendo que, no computo total, ao final do processo, haverá mais felicidade na sociedade do que havia antes. Eu acho perfeito o argumento do Nozick de que a infelicidade de um não é compensada pela felicidade do outro, porque os indivíduos vivem vidas separadas, não são recortes de um todo contínuo. A questão é que quer me parecer que qualquer pessoa razoável permitiria uma pequena agressão a um indivíduo para salvar a vida de outro ou poupar-lhe um grande dano. Por exemplo, eu dou um esbarrão em você para evitar que o outro quebre a perna. É razoável, não é? Eu acho que 90% das pessoas vão abandonar a premissa da não-agressão em sentido absoluto ao se darem conta disso. Imagine o seguinte [aqui, eu achei que ia mandar muito bem]: você não tem R$200,00 para comprar um remédio para uma criança que vai morrer se não tiver acesso a esse remédio; você pede esses R$200,00 ao Bill Gates e a outros; todos se recusam a ajudar; surge a oportunidade de você roubar esses R$200,00 da carteira do Bill Gates; você rouba, compra o remédio e salva a vida da criança; o Bill Gates te denuncia a autoridades (sejam públicas ou privadas); você é punido por roubo. Isso é justo?

...Caramba [aqui, eu me dei conta de que estava falando besteira], espera, acho que é justo, sim. Estou pensando enquanto escrevo. Desculpe por isso! Ocorre que, para que o Estado possa roubar uns trocados do Bill Gates para salvar a vida da criança, você também tem que poder fazer isso no estado de natureza. O Estado não pode ter a licença de fazer algo que você não teria licença para fazer no estado de natureza. Mas imagine uma sociedade onde uns poderiam decidir pelos outros como usar suas propriedades: "olha, você tem muito, portanto, vou tirar um pouquinho só de você e entregar para esse aqui que tem pouco demais". É, acho que uma pessoa razoável não aceitaria isso, não. Eu poderia, por exemplo, tomar o dinheiro que você vai gastar em cerveja hoje à noite [isso é só uma conjectura muito provável, eu não sei se o Aguinaldo vai tomar cerveja hoje à noite] para comprar um casaco para alguém que vi passando frio. Eu justificaria esse ato dizendo que sua dor ao perder a cerveja só hoje não seria nada em comparação com a dor de quem passa uma noite inteira de frio, e pode até morrer desse frio. Mas ninguém razoável aceitaria que cabe a mim (ou a qualquer outro) decidir que a cerveja não é nada para você e o frio é muito para o outro, ou seja, que cabe a mim (ou a qualquer outro) decidir por você se, como e quando usar seus recursos para ajudar o outro. Então... é isso, podemos ficar sem a escola austríaca mesmo. Eu tive uma pequena febre consequencialista que já passou hehehe"

Foi isso! Agradeço ao Alan pela pergunta, a todos pelo debate e ao Aguinaldo por ter puxado minha orelha sobre minha resposta. Posto aqui o texto, porque pode ser uma reflexão útil a quem também se angustia com essas questões. No fim, libertários não somos cruéis. Somos apenas dolorosamente coerentes ;)



quarta-feira, 10 de julho de 2013

A favor da contrapartida social nas universidades públicas


Há pouco tempo, quando a polêmica na ordem do dia dizia respeito ao movimento passe livre, pude observar uma certa unanimidade no cenário liberal/libertário nacional: a solução ideal para o transporte coletivo, para todos, seria o livre mercado, mas, como essa solução não parecia fazer parte de um horizonte próximo, a posição foi pró-tarifa no transporte público, e não pró-subsídio. Ora, qual o problema moral com o passe livre (subsidiado), dentro de uma perspectiva liberal? Ao que parece, seria o fato de alguém que não usa o serviço também estar sendo forçado a pagar por ele.

Na verdade, dentro de uma perspectiva liberal, não é incomum que programas assim sejam aceitos. Diria até que programas sociais não-universais são alternativas que costumam surgir em contextos políticos liberais (mas não libertários, é claro). Enquanto socialistas tendem a ver benefícios sociais como direitos universais, liberais tendem a ver os mesmos benefícios como uma estratégia focada nos mais pobres, até com o fim de manter a ordem jurídica, evitando revoltas populares. Desse modo, o passe livre no transporte público nem seria algo necessariamente escandaloso para a tradição do liberalismo clássico, especialmente se houvesse um recorte para a população de baixíssima renda.

Agora, o fato é que eu não me lembro de ter visto um único liberal defendendo que os mais pobres tivessem suas passagens de ônibus financiadas por toda a sociedade. Eis então que, para meu completo espanto, agora, vejo, sim, muitos liberais completamente estarrecidos diante da proposta do governo de que estudantes de medicina façam dois anos extras de residência médica no SUS, proposta esta que surge diante do fato dos médicos formados não optarem por trabalhar no SUS, em especial, quando se trata de cidades do interior. A título de exemplo, mais da metade dos médicos paranaenses atuam em Curitiba.

Muito bem, concedo de bom grado que a medida seja injustificável no caso de estudantes de universidades particulares. Vou me ater às universidades públicas. Nesse contexto, eu me pergunto: quem pagou a caríssima faculdade de medicina desses doutores que preferem atender em clínicas particulares nas capitais? Ora, todos nós pagamos! Portanto, também pagou por ela aquele doente que está morrendo na fila do SUS. Sim, aquele mesmo que nunca pensou em estudar medicina, aquele que nem sequer concluiu o ensino médio para poder pensar em uma vaga universitária via cotas. Agora, o que o "doutor" que atende na clínica privada tem a dizer como justificativa moral para ter usado em sua formação o dinheiro desse paciente morrendo na fila do SUS? Já que formação superior é um benefício ofertado exclusivamente aos mais fortes (aqueles que conseguem terminar o ensino básico e se manter em uma faculdade), mas também subsidiado pelos mais fracos, não deveria haver ao menos um benefício colateral para estes últimos? Pois não há nenhum!

Diante dessas considerações, eu só posso dizer que me causa desprezo e revolta que as mesmas pessoas que, hoje, se horrorizam com a medida em tela jamais tenham manifestado a menor indignação com essa situação de fato: cursos caríssimos sendo parcialmente pagos por uma população que não usufruirá minimamente deles!

Uma vez que a privatização das universidades não está no horizonte por motivos ideológicos, eu defendo sim, como um atenuante, que aqueles que queiram usufruir de cursos superiores públicos gratuitos precisem oferecer alguma contrapartida à sociedade. Penso, é verdade, que o ideal seria que o governo oferecesse a opção de curso pago para aqueles que não desejassem prestar serviços em contrapartida. Porém, não vejo nada de moralmente errado com a pura e simples exigência de contrapartida. Ninguém, afinal, é obrigado a estudar medicina, muito menos, em uma universidade pública. Portanto, trata-se de um contrato a ser livremente firmado entre governo e candidato. Sendo assim, longe de ser contra a medida do governo, eu defendo sua extensão a todos os universitários de instituições públicas que ainda não tenham se inscrito em vestibulares.

Pois é, sou contra o passe livre... especialmente, para os mais ricos!

terça-feira, 2 de julho de 2013

"Acalma o teu coração!"


Hemlock Grove é um conto de fadas macabro sobre um garoto que carrega as trevas dentro de si, ou seja, sobre um garoto que somos nós. Durante todo o desenrolar da história, Roman Godfrey não sabe de sua origem, da verdade sobre sua mãe, portanto, desconhece sua própria natureza. De modo confuso para si próprio, ele apenas sente a necessidade de derramar sangue. Todavia, ele escolhe saciar essa necessidade cortando a própria carne, o que, a princípio, parece apenas um fetiche sexual mórbido.

Eis então que a tragédia se abate sobre a vida de Roman e ele perde todos a quem amava. Por uns, ele é abandonado; outros são tomados dele pela morte. Era esse o momento que sua mãe, de quem ele herdou sua natureza sombria, esperava. Ela se deleita com a chegada da hora em que Roman, finalmente, seria dominado pela crueldade, assim como ela própria fora tanto tempo atrás.

No momento da fúria de Roman, a mãe, que simboliza todos os acontecimentos prévios genéticos e ambientais que o... determinam?..., estende a ele a navalha para que ele cometa o crime contra um inocente indefeso. Então, no ápice de Hemlock Grove, Roman ilustra singelamente a dualidade em nós que Kant tentou explicar por meio de uma complicada distinção entre o "eu inteligível" e o "eu empírico". Roman corre em desespero para diante de um espelho, olha para seus próprios olhos no reflexo e ordena a si mesmo: "Acalma o teu coração!"

O eu refletido no espelho é o eu empírico, aquele que nasceu de uma mãe monstruosa, que foi preparado para o mal desde o primeiro instante de vida e que sente o desejo dele; o eu que, diante do espelho, ordena ativamente que essas inclinações sejam contidas é o eu inteligível. Por que este último é chamado "inteligível"? Porque qualquer tentativa de naturalização de seu comando calaria sua voz, tiraria dela toda sua autoridade. 

Como já sabia Kant, Roman só descobre que pode acalmar seu coração e tornar-se senhor de seu próprio destino, porque ele sabe que deve, dever este que é destruído quando convertido em mera estrutura da psique pelo conceito de "superego" ou quando explicado como introjeção da cultura cristã. Em suma, o dever precisa ser puro para que sua voz se faça ouvir verdadeiramente pelo coração. E só o dever em sua pureza nos revela o poder que revelou a Roman, o poder de até mesmo se auto-destruir se preciso for para se auto-obedecer. 

Roman, mais uma vez, usa a navalha na própria carne. Desta vez, ele não apenas se fere para não ferir. Ele se mata para não matar. Calmo! Mas é neste ponto da narrativa que a natureza se impõe definitivamente sobre Roman. Ele renasce como aquilo que a mãe sempre desejou que ele se tornasse: um monstro como ela. A transformação física de Roman parece o triunfo da mãe natureza sobre a liberdade do arbítrio: "Eu sempre venço", a mãe lhe diz.

De novo diante da criatura inocente e indefesa que Roman deve sacrificar, finalmente, ele mata... a própria mãe. Calmo!