sábado, 25 de agosto de 2012
Conhecimento e interesse ou a diferença entre um cientista e uma testemunha
Já faz tempo que eu li um artigo em que o autor defendia basicamente que, se repórteres de jornais são proibidos terminantemente de aceitar dinheiro de qualquer setor econômico ou organização sobre o qual escrevam matérias (isso nos EUA, imagino, não sei se se aplica ao Brasil), o mesmo deveria se aplicar ao meio acadêmico. Em suma, segundo a tese, o cientista cuja pesquisa seja financiada por uma organização interessada nos resultados da mesma teria um conflito de interesses. No mesmo espírito, outro dia, me lembrei da minha vontade de abordar o tema aqui no blog quando um jornalista disse que deveríamos tomar os resultados de uma pesquisa sobre os benefícios do cacau com um "grain of salt", porque a pesquisa fora financiada por fábricas de chocolate.
Ora, este tipo de comparação entre a atividade do cientista e aquela do jornalista me parece distorcer profundamente o que é próprio do ofício do primeiro. Vejamos. Um jornalista é enviado para fazer uma matéria acerca das condições de trabalho em uma fábrica na China. Para tanto, ele será o primeiro a receber acesso irrestrito às instalações da fábrica. Então, a mesma fábrica paga pela matéria. Você acreditará na matéria? Não parece razoável defendermos a credibilidade dessa matéria nessas circunstâncias, porque se espera do jornalista que ele faça um relato do que teve a oportunidade de observar com exclusividade. Por mais que ele possa documentar a experiência em fotos e vídeos, não haverá outra equipe que não a dele próprio presente, de forma que ele escolherá o que registrar, o que mostrar e como editar. Em outras palavras, a matéria se torna um testemunho do jornalista no qual podemos escolher se vamos nos fiar ou não. Agora, esse modelo de prática é completamente avesso à natureza da atividade científica.
Se me permitem usar de outro exemplo antes de ir ao ponto, em um julgamento, quando o júri é selecionado, defesa e acusação efetuam essa seleção justamente buscando por conflitos de interesse através da aplicação de questionários, por exemplo. Por que isso acontece? Porque o jurado não precisa justificar o seu voto pela condenação ou absolvição do réu. O jurado simplesmente se posiciona frente às evidências. Embora possa haver apelo a uma corte superior, caso o júri tenha seguido todos os procedimentos indicados pelo juiz, não se pode propriamente questionar sua decisão. Como o nome diz, a decisão do júri é o "veredito". É verdade, porque foi dito pelo júri em circunstâncias apropriadas.
No mesmo contexto jurídico, note que o advogado, ao interrogar uma testemunha, pode invalidar seu testemunho perante o júri se deixar claro que ela tem um conflito de interesse, ou seja, que interessa a ela que o réu seja condenado ou simplesmente que seja um fato aquilo que ela alega ter presenciado. Por outro lado, o júri sabe que o advogado, por sua vez, é pago para sustentar o que sustenta, mas, nem por isso, desconsidera seus argumentos. E seria sensato um jurado acusar um advogado de ter um conflito de interesses por receber altos honorários para argumentar em prol das teses que sustenta perante ele? Parece-me óbvio que não. Pois eu digo que o cientista está muito mais para um advogado de tribunal do que para uma testemunha, como era aquele jornalista na fábrica, ou para um jurado.
Em poucas palavras, o cientista precisa argumentar, montar o seu caso perante o júri popular do mundo esclarecido. Por isso mesmo (desculpe, ANDES), não pode existir ciência sem PUBLICAÇAO. O cientista é como o advogado que sustenta uma tese para que outro a acate ou não. Ele não é e, acima de tudo, não deve ser visto como um jurado com o poder de simplesmente declarar a verdade que temos que acatar como réus. Da mesma forma, ele também não é uma testemunha em quem simplesmente acreditamos e cuja palavra acatamos assim que se mostra que ele não teria razões para mentir. Por que é assim? Porque, em matéria de ciência, não se trata, em absoluto, da sinceridade do cientista. Assim como a crença do advogado na inocência do seu cliente deve ser irrelevante para o júri.
Verdade e sinceridade são pretensões distintas do uso da linguagem. 2 e 2 são 4 ainda que o matemático não acredite nisso. Não nos importa de modo algum saber se o matemático acredita honestamente nos cálculos que faz. Sua crença simplesmente não é parte da demonstração. Já no banco das testemunhas, é preciso jurar sinceridade e é esse o sentido daquele "a verdade e nada mais do que a verdade". Para um testemunho, sim, a sinceridade é o fator chave. A testemunha não tem que argumentar e convencer o júri de nada. Ela só precisa relatar o que viu, ouviu, etc... (ou, melhor dizendo, o que ela acredita ter visto, ouvido...) para que os advogados façam o uso que bem entenderem desse relato contra ou a favor de teses.
Um outro ponto essencial à ciência se revela aqui quando comparamos as testemunhas aos cientistas notando as diferenças entre ambos. A sinceridade da testemunha importa, porque a pessoa está sentada naquele banco da corte por ter informações privilegiadas. Ela, por exemplo, presenciou um assassinato. Trata-se de um fato singular perante o qual a sua posição de observador foi única e não pode vir a ser ocupada por um de nós a posteriori. Já o cientista depende de uma coisinha chamada "reprodutibilidade". É parte integrante da atividade científica que um possa reconstruir os passos do outro e obter os mesmos resultados. É por isso que não há ciência sem método. O método nada mais é do que uma receita para que o outro chegue ao mesmo resultado. É por essa razão que o velho Kant dizia que não há gênios na ciência. Você pode ter feito uma importante descoberta científica, mas ela não será científica se o mais medíocre dos seus colegas não for capaz de confirmá-la seguindo os mesmos procedimentos. Seu colega não vai simplesmente se fiar na veracidade do seu relato quanto ao que se passou no laboratório.
Dito tudo isto, meus amigos, fiquei bem feliz em saber dos benefícios do cacau... Até que se prove o contrário ;)
quinta-feira, 16 de agosto de 2012
Brasil: um país de analfabetos
De repente, alguns parecem ter acordado para dois fatos: 1) O Brasil pode ter a sexta economia do mundo, mas está longe do desenvolvimento, porque os resultados de seu sistema educacional não está nem entre os 50 melhores do mundo, sendo que não se industrializa um país de analfabetos funcionais; 2) O Brasil pode encher a boca para dizer que empresta o "B" para os BRICS, porém, não é páreo para China, Rússia e Índia em termos de crescimento econômico, sendo que ao menos China e Índia parecem ter tomado a dianteira no que se refere à educação, o que sugere que essas, sim, são as potências de amanhã.
Feito o diagnóstico, todo mundo tem sua solução: cortar disciplinas do ensino médio (etapa onde a desgraça é completa), fundir disciplinas, encher as escolas de pedagogos, destinar 10% do PIB para educação, etc... Pois, a mim, o problema da educação no Brasil parece ser muito mais cultural. Até por isso, eu me torno cada vez mais pessimista. Enquanto discutem como a escola poderia concorrer com o shopping center e o vídeo-game pelo interesse dos jovens, eu me pergunto por que deveria.
É verdade que as escolas são péssimas, mas falta ao brasileiro médio, da classe média, a noção de que estudar implica em se auto-impor sacrifícios pessoais no que diz respeito a suas inclinações mais imediatas em nome de benefícios futuros. Em outras palavras, quantos jovens vocês conhecem que passam madrugadas e finais de semana estudando? Eu só os conheço justamente nos cursos de ponta das boas universidades ou nos cursos preparatórios para o ingresso neles. De resto, pensamos o momento do estudo como aquele momento em sala de aula em que o professor deve entreter o aluno para que ele aprenda se divertindo. Distribuem iPads para jovens que jamais topariam meter a cara nos livros na hora da balada. Eis, por sinal, a síntese do problema e também do fracasso das soluções.
domingo, 12 de agosto de 2012
O erro é tratarmos de modo igual os desiguais
Volto ao tema da greve dos professores universitários federais. Desta vez, o que chama minha atenção é um certo consenso no discurso que a condena. Em poucas palavras, podemos dizer que os professores são acusados de "chorarem de barriga cheia", como se fala popularmente. A todo momento, somos bombardeados com observações sarcásticas que inflacionam o salário médio dos professores universitários federais e debocham de sua insatisfação. Com isso, todos nos perguntamos: o professor universitário federal ganha bem ou ganha mal?
Naturalmente, para respondermos a essa pergunta, o mais natural seria investigarmos quanto ganha um professor universitário no setor privado. Contudo, como já comentei em outra postagem deste blog, o Estado exerce tão forte influência e controle sobre o "mercado" de trabalho do professor, com tantas universidades públicas de grande porte espalhadas pelo país, por exemplo, que fica difícil saber o quanto um professor universitário receberia no Brasil tivéssemos uma economia de livre mercado.
Podemos pensar então em compararmos o salário de um professor universitário com o salário médio de um servidor público federal em geral. O problema, neste caso, é que, ao contrário do que ocorre com o servidor médio, exige-se do professor universitário uma formação de excelência, que implica em cerca de 10 anos de formação só em nível universitário. Ora, se o professor universitário não receber remuneração proporcional à formação que se lhe exige, naturalmente, os outros cargos tornar-se-ão mais atraentes por implicarem em um investimento menor em formação.
Assim, chegamos a um impasse: sabemos que o professor universitário deve ganhar o bastante para que alguém se motive a investir tanto na própria formação a fim de ocupar a função, mas como podemos fixar o valor de um salário quando não há valor de mercado no qual nos basearmos?
O conjunto de circunstâncias me faz pensar que a definição do salário do professor, bem como de qualquer outro profissional cuja profissão seja monopolizada pelo Estado, recai sobre uma mera disputa de força entre governo e sindicatos. Nesta disputa, o governo tem a vantagem retórica de poder comparar o salário dos professores ao salário médio nacional do setor privado, comparando alhos com bugalhos e jogando a população contra os professores, como se eles fossem os únicos ou mesmo os maiores responsáveis pela estatização de sua profissão, ou como se eles pudessem simplesmente mudar de emprego sem mudar de profissão e abandonar a carreira.
Como resolver o impasse? Claro que, de acordo com minhas convicções, o ideal seria a privatização das universidades e a total desregulamentação do setor. Aí, sim, todos os salários seriam justos, porque seriam o pagamento resultante de contratos livremente negociados em uma economia de mercado, do que nunca se pode reclamar com razão. Todavia, como eu sempre gosto de lembrar, essa solução não está no horizonte nem de governo nem de sindicalistas. Logo, precisamos ao menos de um paliativo.
No caso, quer me parecer que o melhor tapa buracos para a situação seria permitirmos ao menos um arremedo da livre negociação de contratos individuais: critérios produtivistas (e, portanto, discriminadores) de remuneração.
Quando uma universidade contrata um professor, ela tem em vista uma função para ele. Na verdade, são basicamente três funções: pesquisa, ensino e extenção. Pois bem, que cada professor seja remunerado de acordo com o grau de excelência de sua produtividade nesse tripé que sustenta uma universidade.
Suponha que duas pessoas sejam contratadas para plantarem batatas. Se uma delas produz mais e melhores batatas, é razoável que ela o faça em virtude da expectativa de alguma distinção com relação ao que produz menos batatas ou piores batatas. A bem da verdade, se o contratante confere o mesmo tratamento e reconhecimento a todos os contratados, desconsiderando o desempenho de cada um, é natural que a produção de todos seja nivelada por baixo. Quem produziria mais se a perspectiva é de recompensa igual?
Respondendo à pergunta do parágrafo acima: o professor que ama o que faz produz mais do que aquele que faz somente pela recompensa. Contudo, como poucos trabalham por amor, o resultado é que muitos trabalham menos do que deveriam e poderiam se fossem devidamente motivados por ganhos financeiros proporcionais à sua produtividade.
Em suma, não me parece que a discussão mais relevante seja: quanto deve ganhar um professor universitário? Mas, sim: quais devem ser as diferenças salariais entre os professores universitários de modo que eles sejam motivados a uma produtividade cada vez maior? Por sinal, eu iria além e defenderia a vinculação entre produtividade e estabilidade, de tal forma que professores não poderiam escolher a completa estagnação, como alguns escolhem mesmo que isso implique a abdicação de maiores ganhos financeiros.
Com um plano de carreira fortemente pautado por cobranças de produtividade, ainda que os professores se julgassem mal remunerados, dificilmente seria tão fácil para o governo retratá-los como uma classe privilegiada perante o restante da população. O que estaria em jogo, no fundo, não seria nem mais uma classe, mas os indivíduos que a compõe. Há que se tratar de modo desigual os desiguais. O mercado saberia muito bem disso.
quinta-feira, 2 de agosto de 2012
Platão, Kant, Bruce Wayne e nosso exibicionismo moral
O final do penúltimo filme do Batman já havia me feito lembrar de Platão de duas maneiras. Primeiro, porque contam uma mentira para o povo em nome da manutenção da ordem justa na cidade de Gotham, o que, naturalmente, nos remete à estratégia platônica da criação de toda uma mitologia para ser ensinada ao povo para que cada grupo respeite o lugar social que lhe caberia em uma cidade justa. Mas isso me importa menos. O que achei mais interessante foi o fato do Batman ter terminado o filme, não apenas sendo justo, mas parecendo injusto.
Sabemos que, para Platão, o "supra-sumo da injustiça é parecer justo sem o ser", o que seria o caso do promotor criminoso cujos crimes foram assumidos pelo Batman. Já o Batman seria então aquele personagem platônico que, "sem cometer falta alguma", teve "a reputação da máxima injustiça". Sempre nas palavras da República de Platão, a pedra de toque da justiça seria o fato desse alguém se recusar a "vergar-se ao peso da má fama e suas consequências", continuando a ser justo, mesmo parecendo injusto.
Ora, claro que, quando Platão nos pergunta qual deles - o justo com aparência de injusto ou o seu oposto - foi o mais feliz, ele formula seu problema dentro de um quadro conceitual bem diferente do kantiano. Porém, quer me parecer que, também para Kant, o mesmo modelo funcionaria como pedra de toque da justiça: continua em jogo saber se o homem justo continuaria a ser justo mesmo que não pudesse colher benefícios de sua justiça, isto é, mesmo que ele não tivesse a aparência de homem justo, que, sem dúvida, mesmo em uma sociedade corrupta e corrompida como a nossa, ainda tem lá suas vantagens.
É neste contexto filosófico em que poderíamos falar da discussão em torno da pureza do móbil moral que a trilogia do Batman cumpre um papel relevante nos nossos tempos. Eu fico imaginando se o imbecil que atualiza o status do Facebook dizendo que foi doar sangue, por exemplo, não fica envergonhado ao sair do cinema após ver o Batman. É impressionante como as redes sociais, sobretudo, o Facebook, fizeram aflorar um exibicionismo moral como poucas vezes deve ter existido. Todo mundo quer ser herói! Um vai salvar os gansos do foie gras, outro vai acabar com o aquecimento global andando de bicicleta... e por aí vai. Cada um faz propaganda da própria vida como um exemplo a ser seguido para a salvação da humanidade.
Enquanto isso, o Batman, que é o Batman, nem sequer salva o planeta, ao contrário do meu amigo do Facebook, que avisa que faz xixi no banho pelo bem das gerações futuras. Batman apenas salva Gotham, e olha lá. Acima de tudo, o herói é o próprio Bruce Wayne, na medida em que, quando o Batman finalmente ganha a fama de justo, então ele se recusa a se aproveitar dela. Diz que o Batman deve ser um símbolo, e não um homem.
Para completar meu regozijo com a trilogia, a grande vilã do último filme, desculpem o spoiler, é... ha ha ha... uma ambientalista, super preocupada com um mundo sustentável, energia limpa e blá blá blá. Adorei! Melhor que isso, só mesmo o capanga da vilã usando um discurso revolucionário esquerdista, típico dos vilões reais da América do Sul: "o poder para o povo, para os oprimidos". O que, como era de se esperar, significa o poder para ele mesmo e a tirania sobre todos os que se voltarem contra ele.
Enfim, deixa eu contar também o fim do filme, o Bruce Wayne vai lá, acaba com a revolução em Gotham, diz que o verdadeiro herói é aquele que tem o gesto mais simples, como o de colocar um casaco nos ombros de uma criança, depois, explode uma bomba atômica longe da cidade e... pasmem, não atualiza o perfil dele no Facebook para contar nada disso ;)
sábado, 28 de julho de 2012
Direito de ofender
Será que, em alguma medida, seria razoável defendermos um direito de ofendermos alguém? Em sentido amplo, quando tomamos o verbo "ofender" como sinônimo de "lesar" ou, em geral, "ferir", eu diria que não, afinal, nesse sentido, defendermos um direito à ofensa seria defendermos um direito ao início de violência, o que não me parece possível sob nenhum ponto de vista normativo. Mas e quando restringimos o sentido de "ofender" ao ato de causar uma mágoa interna, um sentimento de dor moral, e não uma lesão corporal a alguém? O dicionário Oxford, por exemplo, diz que "ofensa" é uma perturbação ou um ressentimento provocado pela percepção de um insulto ou desconsideração com relação a uma pessoa ou a seus valores ou princípios. Ora, neste caso, quer me parecer que, embora ainda soe contra-intuitivo defendermos um direito à ofensa, a questão já não seria mais tão simples assim.
Em primeiro lugar, convém ressaltarmos um ponto que a definição do bom dicionário citado acima (que também é o único que veio instalado no meu computador) não deixou escapar: a ofensa, nesse sentido mais estrito, depende da percepção do ofendido. Eu diria que depende do modo como o ofendido interpreta o fato em si, bem como de sua personalidade de um modo geral. Em outras palavras, você não tem o poder de magoar ninguém por conta própria. Ou ainda, nunca se pode dizer que a causa de uma mágoa interna (insisto na qualificação "interna", porque os portugueses, diferentemente dos brasileiros, usam a palavra "mágoa" para falarem também em danos corporais) esteja completa no fato externo. Isso complica tudo na hora de falarmos em um dever de não ofendermos! Como eu posso ter o dever de não ofender alguém se cabe ao ofendido tomar ou não um fato como ofensa, isto é, se cabe à interpretação e, mais amplamente, à personalidade do ofendido se ele vai magoar-se ou não?
Neste ponto do debate, para que se possa tipificar uma ofensa como tal, apela-se a conceitos metafísicos tais como o de "dignidade da pessoa humana". Mas o conceito de "pessoa humana", justamente, varia de acordo com o sistema de valores de cada um. Hoje em dia, inclusive, o conceito de "pessoa" tem sido ampliado para inclusão de "pessoas caninas e felinas". Enquanto isso, para alguém com um sistema de valores mais tradicional, a pessoa humana é dotada de uma alma criada por Deus à sua imagem e semelhança, de tal forma que ela pode então ser profundamente ofendida se dissermos que ela não possui alma ou que não existe seu Deus. É assim que a definição do dicionário citada acima também é certeira ao envolver os valores e princípios do ofendido.
Muito bem, na minha opinião, um Estado laico não pode se envolver em questões metafísicas e legislar no sentido de determinar o que seria, objetivamente, a tão edificante noção de "pessoa humana". Penso que o Estado deva ter em vista uma noção muito minimalista de agentes capazes de calcular o custo e o benefício de seus atos, agindo de acordo com esse cálculo, o que não é o caso dos animais brutos. Ademais, o Estado deveria ter em vista apenas as relações externas entre esses arbítrios calculantes. Simplesmente, é empiricamente constatável se você impede ou não a realização de um fim não-violento proposto por minha capacidade de calcular meu custo/benefício. E é só disso que deve tratar o Estado, que, afinal, deve legislar sobre ateus, judeus, católicos, muçulmanos, seguidores do Peter Singer... sem ter a pretensão de transformar um grupo em outro pela imposição dos valores de um grupo a outro.
Basicamente, estou defendendo aqui uma separação entre ética e direito, cujo conceito minimalista de direito exclui do âmbito jurídico qualquer conceito de ofensa moral que não possa ser plenamente reduzido a danos materiais. Com isso, permanece, por exemplo, a desaprovação jurídica a atos como calúnia e difamação, que podem ser comprovados como fraudes com consequências prejudiciais às relações econômicas da vítima com o restante da sociedade. Ilustrando a tese, digo que uma coisa é espalharmos, sem fundamentos, por exemplo, que nosso vizinho é mau pagador e acabarmos, por isso, atrapalhando sua intenção de alugar uma casa. Mas outra coisa, bem diferente, seria rirmos de um traseiro gordo no Facebook ou reprovarmos a orientação sexual de alguém. Com os últimos casos, de acordo com o que defendo aqui, não se pode lidar juridicamente, porque se trata de danos meramente subjetivos. A professora indenizada em milhares de reais, porque debocharam do traseiro dela, salvo engano, foi apenas magoada em seus sentimentos. Em tese ao menos, ela não perderia o emprego, por exemplo, se o diretor da escola viesse a concordar que o traseiro dela teria mesmo este ou aquele atributo. Portanto, o suposto dano sofrido foi meramente subjetivo e poderia mesmo não ter ocorrido em outra pessoa na mesma situação.
Quando lidamos juridicamente com casos subjetivos do tipo, na verdade, nós subvertermos o que, a meu ver, caracteriza o fim do direito: a preservação da liberdade meramente externa daqueles arbítrios calculantes mencionados acima. Uma vez que qualquer ato meu pode ser tipificado como ofensivo, dependendo da interpretação que se escolha dar a ele, eu poderia vir a ser arbitrariamente impedida de praticar qualquer ação. É exatamente essa redução da liberdade individual que vem sendo observada com o sucesso do politicamente correto. Um agente faz um comentário inocente. Então, um grupo social escolhe interpretar esse comentário de acordo com uma história e um sistema de valores que podem ser não apenas alheios, mas até mesmo completamente desconhecidos para o agente. Pronto, cobra-se uma punição estatal contra o agente.
Agora, antes de terminar o texto, vale dizer que, ao afirmar que o Estado não deve lidar com questões subjetivas ou com a tal "dignidade da pessoa humana" (seja lá o que você entenda por "pessoa"), não digo que não haja outros meios para lidarmos com danos subjetivos. Certamente, uma comunidade pode convencionar que é razoável, por exemplo, que alguém sofra internamente quando exposto a determinadas situações, como é o caso do deboche público de partes do corpo alheio. Assim, essa comunidade pode punir socialmente os indivíduos que praticam tal comportamento. A bem da verdade, o verdadeiro desprezo social, o completo isolamento do indivíduo, pareceria bem mais eficiente nesses casos do que o pagamento de indenizações materiais. Porém, uma sociedade que começa a lidar juridicamente com questões éticas do tipo já perdeu qualquer capacidade de lidar comunitariamente com valores. Esse, sim, em minha opinião, é o verdadeiro problema.
domingo, 22 de julho de 2012
Professor pesquisador grevista
Artigos como este da Folha de S. Paulo de hoje ilustram bem o que a maior parte da sociedade brasileira pensa dos professores universitários: somos privilegiados que trabalham pouco e ganham muito; ademais, somos professores por pura falta de competência para trabalharmos no setor produtivo. Na verdade, o professor universitário tem que ouvir aquilo que o brasileiro pensa do professor em geral, mas não tem coragem de dizer sobre os professores do ensino básico. Da boca para fora, todo brasileiro rasga elogios ao professor do ensino básico, mas o contra-cheque deles evidencia muito bem o quanto eles são, de fato, valorizados no Brasil. Nesse sentido, a bronca de gente como o Sr. Alberto Carlos Almeida com os professores universitários se dá por termos um contra-cheque um pouco melhor. Afinal, como pode uma pessoa que, só de formação universitária, tem, no mínimo, 10 anos querer ganhar um bom salário do governo? Bons salários devem ser pagos aos Tiriricas dos cargos eletivos. O privilegiado por ter estudado tanto por toda uma vida e ainda por ter passado em um concurso público deveria se virar por conta própria!
A demagogia do Sr. Alberto Carlos Almeida, naturalmente, é bastante simplista: dinheiro público é para os fracos e oprimidos, não para os mais capacitados. O professor que quer ganhar um bom salário que busque recursos junto à iniciativa privada. Ora, em princípio, como boa libertária, eu iria até além e diria que dinheiro público não é para ninguém. No meu Estado Ultra-Mínimo, ninguém recebe salário público e, muito menos, benefícios ou investimentos públicos. Acontece que a realidade é outra. Eu não vivo no mundo que eu construo nos meus "experimentos de pensamento".
No mundo real, as universidades estão completamente sob a alçada do governo, mesmo quando, poucas (não confundir universidade com qualquer instituição de ensino superior), são privadas. Duvido que exista setor mais regulamentado e impossibilitado de aderir ao livre mercado do que a educação. Portanto, é culpa do profissional da educação que ele não possa obter uma boa remuneração no setor privado? Veja bem, eu estou falando de profissionais da educação, não de funcionários da iniciativa privada que mantém um vínculo com universidades sem dedicação exclusiva e integral. Estes últimos, sim, podem aumentar em muito seus ganhos, mas, obviamente, não enquanto professores pesquisadores. A principal fonte de renda do professor pesquisador como tal é, sim, seu salário público. Tanto que existe regulamentação rígida para a possibilidade de ganhos extras. Por essa razão, causa-me espanto que o Sr. Alberto Carlos Almeida critique os professores que queiram obter maiores ganhos sem uma palavra de crítica ao modo como o governo regulamenta as universidades, como se fosse uma simples questão de alguns professores terem mérito para angariarem recursos para aumentarem seus próprios ganhos junto à iniciativa privada e outros, não.
Independentemente do que possamos pensar sobre a qualidade do trabalho e o nível de empenho de muitos professores universitários, independentemente do que possamos pensar sobre o direito à greve remunerada, o fato permanece: o governo federal ampliou a universidade pública sem investimentos compatíveis e, por outro lado, sem a disposição de privatizá-la. Portanto, o atual governo acelerou bruscamente o processo de sucateamento da universidade pública que já vinha em curso há anos.
O cenário federal faz com que eu me recorde de uma situação paralela na minha própria universidade estadual. A instituição multi-campi onde leciono tem um perfil parecido com o de uma instituição federal, sendo crucial para o desenvolvimento da economia do interior do Paraná. Cabe à universidade capacitar a população do interior para que cada pólo econômico possa se desenvolver na sua especialidade. Daí o surgimento da proposta de criação de várias engenharias, propostas estas encaminhadas ou, no mínimo, fortemente apoiadas por políticos dessas regiões.
Ora, estava eu ocupando a posição de membro de um conselho superior da universidade quando esses processos de criação de novos cursos tramitavam. Ingenuamente, fui favorável a todos, afinal, o desenvolvimento econômico do Paraná estava em jogo. Ingenuamente, olhei com desprezo para o colega bem mais experiente que alertou: "vamos criar todos esses cursos e, daqui a pouco, o nosso salário será o mesmo de um professor do nível básico". Hoje, eu vejo como esse comentário, que eu, à época, rotulei como egoísta e mesquinho, era certeiro. Os políticos, demagogos como o Sr. Alberto Carlos Almeida, querem apenas atender a demanda da população por vagas públicas gratuitas no ensino, ignorando a implicação natural da necessidade de contratação de mais professores funcionários públicos ao preço de salários compatíveis com os ganhos daqueles já contratados. Não se contrata o devido número de professores e nem se reajusta (notar que reajuste não é aumento) devidamente os salários. O resultado disso será aquele previsto pelo meu colega realista: em poucos anos, professores do ensino superior trabalharão nas mesmas condições de professores do ensino básico.
Qual o problema com isso? Muito bem, para cada bom aluno desejoso de uma carreira no ensino básico eu tenho 10 bons alunos ansiosos por uma carreira no ensino superior. É um fato já constatado em pesquisas que apenas uma pequena minoria de alunos do ensino básico queiram cursar uma licenciatura. Geralmente, esses poucos são aqueles que não se julgam aptos à aprovação em um vestibular para outra carreira qualquer. Quando um bom aluno, caso raro, faz essa escolha pela licenciatura, via de regra, ele a faz pensando na carreira superior. Pois bem, transforme a carreira superior no que temos hoje como carreira do professor do ensino básico e o resultado será o desastre total e completo da educação brasileira, que mal tem por onde piorar. Afinal, é o professor do ensino superior quem forma o professor do ensino básico.
Assim, eu concordo que os professores do ensino básico devam receber melhores salários. Não que eu concorde com isso por acreditar que todos os professores que lá estão mereçam ao menos o salário que ganham. Eu concordo, porque eu quero profissionais melhores atraídos para essa profissão. Se, com a desculpa de que outros precisam mais, virarmos as costas para os professores universitários, como quer o Sr. Alberto Carlos Almeida, o resultado é que mesmo o magistério superior será uma carreira que só atrairá analfabetos e meia dúzia de gatos pingados de heróis com vocação para voto de pobreza.
sexta-feira, 13 de julho de 2012
A torre e a quitanda
A torre é linda. Como acontece com todo monumento, a torre real é inferiorizada por cada uma de suas imagens de cartão postal. Mas, ainda assim, a torre é verdadeiramente linda. Só a minha presença diante da torre é que estraga todo seu encanto. É, afinal, a sempre vulgar presença do turista. Uma presença a mais em uma multidão que, em sua maioria, a bem da verdade, nem se encanta por uma torre, mas apenas se deslumbra com a perspectiva de, na volta, poder contar ter estado diante da imagem fabricada do cartão postal, que será comprado na lojinha de souveniers que enfeia as margens do rio Sena.
Eu me canso da torre, o senhor que apanha o lixo dos turistas me indica a rua que eu procuro e eu sigo por ela a pé. O centro de Paris é lindo por todos os ângulos, em todas as esquinas. As quitandas chamam a atenção de quem vive em um país exportador de alimentos e consumidor de restos. O francês humilde de uma quitanda pensa que sou americana, porque pergunto se ele fala inglês: "No Brasil, vocês falam espanhol ou português". Digo que é português e explico que português é que ele não falaria mesmo, por isso, minha pergunta inicial. Ele ri e concorda. Parisienses são antipáticos mesmo? Não sei, simpatia me importa muito pouco para que eu possa avaliar bem.
Como um hot dog em uma padaria qualquer. Calma! Trata-se de uma verdadeira baguete francesa, feita em casa segundo a receita mais tradicional, com lingüiça, repolho e cebola. O melhor pão que já comi na vida. Um francês senta-se no chão, na porta da padaria, e come o mesmo pão, mordendo uma lingüiça alternadamente e vorazmente. Nenhum turista por perto. Agora, sim.