segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Subjetivismo Kantiano x Objetivismo


Eu posso estar enganada, mas tenho a impressão que os objetivistas têm em Kant um adversário pelas razões erradas. Parece-me que eles se opõem a Kant em função do idealismo transcendental, doutrina segundo a qual não conhecemos o que a realidade seria independentemente de certas condições epistêmicas. Já os contemporâneos de Kant, para sua fúria, confundiam o seu idealismo formal com o idealismo material de Descartes e Berkeley, portanto, não é de se admirar que os objetivistas cometam o mesmo equívoco.

Eu não pretendo, porém, desfazer o equívoco, explicando as sutilezas do idealismo transcendental em um blog. Já tenho poucos leitores, ficaria sem nenhum. Como não é esse o ponto da divergência entre kantianos e objetivistas, já que, empiricamente, Kant é um realista, eu vou me deter no que vejo, sim, de subjetivismo em Kant. E, por sinal, vejo como a maior virtude de sua filosofia moral.

Para ser mais precisa, a filosofia kantiana compatibiliza subjetivismo e objetivismo: subjetivismo quanto à matéria do querer, objetivismo quanto à forma do querer. O que significa isso? Bom, para explicar, permitam que eu trace um paralelo entre Kant e Ayn Rand. 

Parece-me claro que Kant concordaria com Rand que o conceito de "valor" depende do conceito de "fim" [goal, em inglês]. Essa tese, além do mais, deve mesmo ser aceita por todos nós pelas seguintes razões. Se partirmos apenas de relações de causa e efeito objetivamente descobertas na realidade, algo de suma importância tanto para Kant quanto para Rand, não temos ainda o bastante para derivamos os conceitos de "bom" e "mau". Ao dizermos que "x" causa "y", digamos, que uma aspirina causa o alívio da dor de cabeça, só podemos dizer que a aspirina é boa se o fim for o alívio da dor de cabeça, e não pela simples constatação da relação causal.

Muito bem, o próximo passo comum aos dois filósofos também me parece digno de nossa aceitação. Se nossos fins determinam nossos valores, a cadeia de meios e fins precisa parar em algum fim em si mesmo, para evitar uma progressão ao infinito, que tornaria impossível para o agente racional justificar suas escolhas a contento. É aqui que os dois filósofos tomam caminhos diferentes, o de Rand levando, ao que me parece à primeira vista, a um precipício filosófico. 

Fazendo pouco caso da acusação de falácia naturalista - a derivação de uma conclusão normativa a partir de premissas meramente descritivas - Rand equipara o fim em si mesmo à sobrevivência do organismo do indivíduo:

O fato que entidades viventes existem e funcionam necessita a existência de valores e de um valor último que, para qualquer entidade vivente dada, é a sua própria vida. Assim, a validação de juízos de valor deve ser obtida por referência aos fatos da realidade. O fato que uma entidade vivente é determina o que ela deve fazer. Basta para a questão [so much for the issue] da relação entre o "ser" e o "dever ser".

Ora, mas é claro que não basta! Rand tem a pretensão de nos ensinar o que é ética - para ela, a ciência desses valores derivados do valor último de nossa vida - como se estivéssemos errando há milênios em nossos juízos de valor, o que significa que não é nem um pouco óbvio que a preservação da vida oriente nosso sistema de valores. O simples fato de, segundo Rand, termos a possibilidade de nos auto-destruir já significa que não é óbvio que nosso fim deva ser a auto-preservação. Ela não pode simplesmente derivar um fim último para minha vontade de uma tendência fisiológica de meu organismo. É nisso que consiste a falácia que ela não tem o direito de desprezar ao mesmo tempo em que se pretende uma grande advogada da razão nos conflitos filosóficos. 

Só para ilustrar o meu caso, pense em quem oferece a vida em sacrifício para não ter que presenciar o sofrimento de um ente querido, ou em quem opta por uma vida breve de prazeres intensos a uma vida longa de prazeres mornos. Dizer que um e outro não vivem a vida apropriadamente não justifica o princípio do objetivismo, mas apenas o pressupõe.

Bom, basta, por enquanto, sobre a solução de Rand. Conforme minhas leituras progridam, talvez, eu retome o ponto. Falemos agora da solução de Kant para o problema do fim último de nossa cadeia de objetivos. 

Em primeiro lugar, materialmente falando, nosso fim, para Kant, é a felicidade, não a vida. Nisso, consiste o subjetivismo de Kant, já que a felicidade não permite determinação objetiva. Ela seria apenas um sistema das inclinações de cada indivíduo. Por isso mesmo, da felicidade, Kant deriva apenas regras de prudência, variáveis conforme o indivíduo e o contexto, e não um código de ética. Ademais, da busca da felicidade universalmente constatada não decorre um código de ética, exatamente para evitar a falácia naturalista. 

Agora, a felicidade, como todo kantiano sabe, não forma o todo do fim último para Kant. A felicidade, segundo Kant, deve ser buscada sob a condição da conquista do mérito para ser feliz, isto é, da virtude moral. Mas no que consiste a virtude? Aqui, estamos diante do objetivismo formal de Kant. 

Uso aqui o termo "formal" para expressar uma condição limitadora, um princípio do qual não se pode derivar metas concretas, mas apenas discriminar entre as metas aceitáveis e as inaceitáveis. Somos virtuosos, em suma, quando abrimos mão de determinados cursos de ação que nos trariam a felicidade pessoal, só porque eles não se mostram adequados à exigência formal de que sejam universalizáveis, ou seja, válidos para todos os agentes racionais. A virtude consiste então na disposição de subordinar a felicidade pessoal às exigências formais de universalização da racionalidade. E, note bem, estamos evitando a falácia naturalista, justamente porque estamos falando de exigências normativas intrínsecas à racionalidade, e não derivadas da natureza. A exigência de universalização, no caso, é intrínseca à razão, porque, ao justificarmos qualquer uma de nossas condutas, queremos dizer que qualquer outro, em nosso lugar, poderia ter feito o mesmo. Em outras palavras, é próprio da racionalidade pretender ir além das idiossincrasias de cada um.

É assim que Kant evita o objetivismo de Rand, que nos diz o que devemos querer como fim último e deriva todos os meios desse fim, mas evita também o irracionalismo, já que não podemos praticar toda e qualquer ação que nos prometa uma vida mais feliz. Podemos adotar toda norma de conduta que nos traga a felicidade, mas com a condição de que essa norma também possa ser válida para os outros agentes racionais. Uma vida desonesta, por exemplo, seria eliminada pelo princípio, porque a desonestidade, para ser eficiente enquanto meio de obtenção da felicidade, depende de que os outros pensem que eu sou honesta, ou seja, a eficiência da desonestidade depende de que a regra geral seja a honestidade, e não a própria desonestidade. Assim, eu seria irracional ao ser desonesta, na medida em que eu agiria sob um princípio que só pode ser subjetivamente válido. 

Agora, o fato de eu ter que abandonar regras de conduta que só podem ser praticadas como exceção, não significa que eu tenha que adotar todas as regras de conduta que passem pelo crivo da universalização. O oposto das regras que só valem como exceção é obrigatório (ser honesto, por exemplo). Mas existe uma ampla gama de regras que são tão universalizáveis quanto seus opostos. Como escolher entre elas? Simplesmente, opte pela regra que o torna mais feliz! É aqui que Kant garante o espaço para a subjetividade, na medida em que abre mão de um conceito objetivo de felicidade. É aqui, em suma, que, ao contrário de Rand, Kant harmoniza subjetividade e racionalidade.


terça-feira, 5 de novembro de 2013

O sal e o paternalismo


Matérias como a do Jornal Hoje sobre o governo estabelecendo limites para a quantidade de sódio em alimentos industrializados me causam um profundo desgosto com relação à cultura em que vivemos. Eu, particularmente, nunca compro um produto no supermercado sem conferir antes a quantidade de sódio que ele contém. Se julgo excessiva e não há concorrente oferecendo uma quantidade menor, eu simplesmente desisto do produto. Nem lembro quando foi a última vez em que consumi uma "sopa de pacotinho", por exemplo. Por que vocês não podem fazer o mesmo? 

O governo diz que precisa olhar tudo por nós, fazer escolhas por nós, porque somos muito estúpidos para julgarmos e decidirmos por nós mesmos. Por sinal, o "P" em cada sigla de partido no Brasil poderia significar "paternalismo". O problema é que o paternalismo é um círculo vicioso. Muitos nem pensam em checar a embalagem dos alimentos para verificar o que estão prestes a comer, pura e simplesmente porque pressupõem que o governo já checou tudo por eles. 

É da natureza de poucos, afinal, quererem caminhar com as próprias pernas, tomando a iniciativa ousada de largar da mão dos pais. Via de regra, o pai é que tem que largar a mão do filho, deixar que ele caia algumas vezes, não dar muita bola para o choro, etc. O problema do nosso pai Estado é que ele nunca vai largar a nossa mão por iniciativa própria, pois ele não quer que descubramos que, de repente, ele é que não pode andar sem nós...

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Ayn Rand e o Rei do Camarote


Antes que você me pergunte, não, eu não vi o vídeo e nem li matéria alguma sobre o tal "Rei do Camarote". Mas acompanhei a repercussão no Twitter até enjoar e acho que acabei entendendo sem querer o que se passa. Aparentemente, trata-se de um sujeito que gasta muito dinheiro com produtos e serviços considerados supérfluos. Para usar o verbo favorito daquele blogueiro que é o "Rei do Coletivismo", o sujeito ostenta! Na verdade, por um Tweet que apareceu na minha timeline, parece que o Rei do Coletivismo, inclusive, já veio a público se pronunciar sobre o caso e, nisso, acusou o Rei do Camarote de cometer uma agressão com tamanha ostentação. 

Bom, nessa associação entre agressão e ostentação, eu já comecei a achar a coisa filosoficamente interessante. Depois, eu me interessei mais ainda em dar também meu palpite, quando vi amigos de tendências claramente liberais ou mesmo libertárias defendendo a conduta em questão com base em um suposto efeito econômico da gastança do indivíduo: o giro da economia, a alimentação de toda uma cadeia produtiva para atender à sede de consumo do cidadão ostentador. 

Ora, eu acho que o argumento dos meus amigos versados em economia deve ser válido. Se os economistas de esquerda adoram defender uma gastança governamental - e, para isso, até guerras costumam ser bem-vindas - exatamente por alegarem que ela tem efeitos positivos na economia, por que eu desconfiaria da capacidade dos gastos privados fazerem o mesmo e com muito mais êxito, por não implicarem em aumento de impostos ou inflação? Sendo assim, eu concedo o argumento até me mostrarem seus problemas. Aceitemos então que o tal Rei do Camarote gera benefícios sociais dos quais ele mesmo nem sequer desconfia.

O fato é que essa linha argumentativa, essa vontade de defender os benefícios sociais da conduta sub judice para isentá-la de reprovação moral muito me preocupa. O que me desperta angústias filosófico-morais é que esse raciocínio compra a verdade da premissa de que um comportamento não pode ser moralmente permissível se seu beneficiário for apenas o próprio autor da ação. É aqui que entra uma importante denúncia feita por Ayn Rand, alguém que eu nem sequer considero como uma filósofa respeitável, mas que me parece ter colocado o dedo em uma ferida e tanto. 

Penso que seja um câncer da nossa época essa moral coletivista que alça o beneficiário da ação a critério exclusivo de valor moral. Como Rand diz na Introdução da Virtude do Egoísmo, considera-se como boa qualquer ação praticada em benefício dos outros e má, por outro lado, qualquer ação praticada em benefício próprio: "Um industrial que produz uma fortuna e um gangster que rouba um banco são considerados como moralmente iguais, desde que ambos procuram a riqueza para seu próprio benefício 'egoísta'" [...]. Um ditador é considerado moral, desde que as atrocidades inenarráveis que ele cometeu tenham tido a intenção de beneficiar o 'povo', não a ele mesmo".

Ora, observem se ela não tem razão. Importantes políticos petistas envolvidos no escândalo do mensalão não foram imediatamente absolvidos nos tribunais éticos da blogosfera progressista unicamente por terem agido em nome do interesse do partido que, em última instância, seria o benefício do próprio povo? "Ah, mas ele não ficou com o dinheiro público para si, não enriqueceu", eu me cansei de ouvir. E a mesma rede progressista, como o caso em tela ilustra, não condena o cidadão que gasta o próprio dinheiro, única e exclusivamente porque ele visa o benefício de si próprio, e não dos outros? Pois parece-me estar aqui a exata confirmação do que Rand denunciava.

Nesse sentido, não penso que a resposta libertária ao coletivismo esteja em lições de economia que visem mostrar que o sujeito, de fato, nem sequer consegue beneficiar apenas a si mesmo ao ostentar sua riqueza. Se libertários somos de fato o polo oposto do coletivismo, cabe-nos rechaçar a premissa coletivista de acordo com a qual o indivíduo comete uma falta moral pelo simples fato de ter como fim a satisfação de seus próprios desejos, ainda que ele não pratique violência ou fraude para tanto. Se, pelo contrário, para defendermos a moralidade de uma conduta, tivermos que provar seus benefícios sociais, amigos, vocês podem até ganhar esta batalha do Camarote, mas será só porque os coletivistas já ganharam a guerra...

domingo, 3 de novembro de 2013

O estatismo e o medo da revolta dos escravos


Durante a semana, uma blogueira que não cito, porque, na minha opinião, ela já recebe muito mais atenção do que merece, cuidou de insultar libertários jogando-nos na vala comum dos conservadores reacionários. Ora, por menos que você, leitor, saiba sobre libertarianismo, você há de convir que soa no mínimo estranho classificar como conservadora e/ou reacionária aquela posição política favorável à liberação das drogas, ao casamento gay, etc...  Mas não foi a primeira vez que um pseudo-intelectual com dificuldades para assimilar mais de dois conceitos se deu ao trabalho de nos desqualificar assimilando-nos a tudo que combatemos na velha direita. Infelizmente, a verdade é que os estudos sobre o libertarianismo não têm crescido proporcionalmente a essa gritaria que sobe de tom a cada dia. 

O que me chama a atenção é que os gritos que temos ouvido, aparentemente, são gritos de medo. Percebendo isso, eu tenho me perguntado: medo de quê? Não, não acho que seja o medo de que os pobres fiquem sem assistência, caso essa tenha que ser oferecida voluntariamente, como prega o libertarianismo. O que me parece é que, por menos que eles saibam sobre a doutrina libertária, eles já descobriram que o resultado de sua assimilação é um escravo indócil, infeliz com sua condição. Agora, por mais fortes que sejam as forças armadas de um Estado, não se engane, em alguma medida, todo Estado depende da cooperação voluntária de seus cidadãos, ou seja, depende de que eles não se considerem suas vítimas, como Nozick, por exemplo, aponta em Anarquia, Estado e Utopia

É aqui que o libertarianismo se mostra como a maior ameaça política de nossa época. Antes de ser uma filosofia política proponente de uma forma de governo, o libertarianismo é uma teoria moral que ensina que a resistência é legítima sempre que a força é exercida contra um não-agressor, não importa quem a exerça. Pode ser um rei em outro continente, pode ser a maioria dos seus vizinhos... segundo o libertarianismo, ninguém pode exercer poder sobre você sem seu consentimento expresso, a menos que sua ação ou sua conduta em geral já se constitua como um exercício de poder ilegítimo sobre outra pessoa. Em suma, a força, sem o consentimento explícito prévio com aquela autoridade, só pode ser exercida para barrar o uso da força.

O que sobra do Estado se muita gente assimilar esse direito de resistência? Bom, parece que muita gente anda percebendo... e temendo. 

domingo, 27 de outubro de 2013

Libertarianismo e... Ele


Como se sabe como uma constatação de fato, muitos auto-declarados libertários são conservadores religiosos. Tenho cá para mim que essas pessoas usam a etiqueta "libertarianismo" para classificar qualquer teoria política relativa à mínima intervenção estatal. Parece que os conservadores americanos não gostaram da apropriação do termo "liberalismo" por parte da esquerda de seu país, que pouco tem a ver com o liberalismo clássico, e então passaram a se auto-denominar libertários para marcarem que, à sua maneira, também carregam a bandeira da liberdade. Afinal, não pega bem ser visto como o opositor político dos defensores da liberdade, ou seja, dos liberais. 

Até aí tudo bem. Você pode mesmo ser um conservador - até mesmo um conservador social - e um defensor do Estado mínimo, no sentido em que você, socialmente, reprova, por exemplo, a união entre pessoas do mesmo sexo, mas não pensa que o Estado deveria interferir nesse tipo de matéria. Porém, o modo como eu, particularmente, penso a filosofia política libertária não é moralmente neutro. Assim como Nozick, eu penso a filosofia política como uma doutrina delimitada e fundamentada por uma filosofia moral. Isso significa que, antes de mais nada - antes de uma teoria do Estado - eu acredito em uma moral libertária. Bom, nesse sentido, eu não penso que o libertarianismo seja compatível com a crença na existência do Deus cristão. Explico.

Eu já vinha pensando há algum tempo que uma moral libertária teria que ser uma moral ateia, ou, melhor dizendo, uma moral que um amigo meu definiu outro dia em uma conversa particular como "radicalmente agnóstica". O que significa esse tal "agnosticismo radical"? Nas palavras desse meu amigo, significa agir como se Deus não existisse. Ora, é exatamente assim que eu penso que um libertário, da forma como eu entendo o libertarianismo, deve agir. Por quê?

Para que eu justifique a minha alegação, preciso remeter meu paciente leitor ao pesado texto de Nozick, Anarquia, Estado e Utopia. De um modo que eu venho tentando reconstruir a partir de premissas kantianas, Nozick apresenta sua filosofia moral com base na ideia do indivíduo como alguém cercado por uma barreira que ele, e somente ele, teria o direito de abrir. Assim, qualquer transgressão a essa barreira do direito natural que cercaria o indivíduo seria pura e simplesmente imoral. Por outro lado, não haveria nenhuma violação se o indivíduo, voluntariamente, abrisse essa barreira. Em suma, cada indivíduo seria como uma ilha privada, que você não pode invadir, mas onde pode entrar com autorização do proprietário. Mas quem é esse proprietário? É aí que está, meu caro leitor, o proprietário é o próprio indivíduo, não é Deus!

Por que isso é relevante? Bem, eu digo que faz toda a diferença e, para lhe explicar por que, permita que eu lhe apresente uma diferença de implicações bastante práticas e concretas entre Nozick e o clássico dos clássicos liberais: Locke. No capítulo 4 de Anarquia, Estado e Utopia (p. 58 do original), Nozick diz:

Uma pessoa pode escolher fazer consigo mesma, eu devo supor, as coisas que violariam seus limites quando feitas por outro sem seu consentimento. (Algumas dessas coisas podem ser impossíveis para ela fazer a si mesma). Além disso, ela pode dar ao outro permissão para fazer essas coisas a ela (incluindo as coisas que são impossíveis para ela fazer a si mesma). O consentimento voluntário abre as barreiras para que sejam cruzadas. Locke, certamente, defenderia que há coisas que os outros não podem fazer a você com sua permissão; a saber, aquelas coisas que você não tem o direito de fazer consigo mesmo. Locke defenderia que o fato de você dar sua permissão não torna moralmente permissível que outro lhe mate, porque você não tem o direito de cometer suicídio. A minha posição não paternalista mantém que alguém pode escolher (ou permitir a outro) fazer a si mesmo qualquer coisa, a menos que ele tenha adquirido uma obrigação com uma terceira parte de não fazer ou não permitir que seja feito.
Ora, Nozick tem toda razão em sua leitura de Locke. Logo no §6 do Segundo Tratado, Locke diz:
homens, sendo todos o produto de um Produtor onipotente e infinitamente sábio; todos servos de um Mestre soberano, enviados ao mundo por sua ordem, e em nome de seus propósitos; são sua propriedade, pois são seu produto, feitos para durarem o quanto ele quiser, e não o quanto outro quiser.
As diferenças morais entre o libertarianismo e o liberalismo clássico, mais afinado com a religiosidade dos conservadores americanos, saltam aos olhos a partir dessas duas passagens! Em Nozick, não há paternalismo, porque não há um Pai, não temos um Mestre, não somos propriedade de ninguém mais. Em resumo, não há ser acima do homem, de modo que apenas sua vontade (a do homem, de cada indivíduo) decide o que pode ser feito de si. Já em Locke, somos livres apenas no sentido em que, na terra, não temos um superior natural, destinado a nos governar. Mas, na ordem geral do universo, temos, sim, um Senhor natural, um Mestre, de modo que nosso consentimento não basta para tornar moralmente permissível o que for feito de nós. 

É nesse sentido, enfim, que eu defendo que o libertarianismo seja uma doutrina do agnosticismo radical, isto é, uma doutrina baseada, não na negação teórico-científica da existência de Deus, posto que tal coisa seria impossível, mas no mandamento: "aja como se Deus não existisse!" É só agindo como se não houvesse um Ser superior, que nos criou para cumprir seus próprios desígnios e a quem pertencemos, que podemos agir verdadeiramente como auto-proprietários e senhores de nós mesmos. E é só assim que podemos adotar, coerentemente, uma filosofia moral que diz que tudo é permitido... desde que o indivíduo consinta.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Fazer concessões ou não, eis a questão!


Ontem, assisti ao vídeo acima, postado por um amigo nas redes sociais. Eu concordo com tudo que é dito nele e nem sequer pretendo colocar em pauta o seu conteúdo. O que ele me fez pensar é o seguinte: como Ron Paul pôde imaginar que venceria uma eleição presidencial com um discurso destes? Ele é tão burro assim? É claro, afinal, que, dizendo tais coisas, ele nem sequer conseguiria a indicação do seu próprio partido, pois, para muitos membros desse, os EUA são atacados, única e exclusivamente porque o mundo islâmico teria um compromisso de fé com a destruição da civilização ocidental. Muito bem, até independentemente de quem tem razão no debate sobre política externa, é claro para todos que qualquer discurso que coloque os EUA no papel de iniciador da violência não contará com muita simpatia e adesão entre os eleitores do país, muito menos quando se trata, primeiramente, de eleitores republicanos. Daí minha questão inicial: Ron Paul é burro a ponto de não ver isso e usar essa propaganda crítica em plena campanha presidencial?

Ora, naturalmente, minha pergunta é apenas retórica. Todos sabemos que Ron Paul apenas usou a campanha nas primárias do partido republicano para divulgar seus ideais libertários para um público maior. Com isso, ele levou a mensagem libertária a muitos jovens que nunca haviam sequer ouvido falar dessa doutrina, dado que não se pode dizer que ela tenha algum lugar seja na mídia mainstream seja nos currículos escolares. 

Bom, aqui vem a questão que eu de fato queria levantar com este post. Considerando a impopularidade da doutrina libertária e de suas implicações políticas, vale mais a pena que libertários façam concessões e caminhem para o centro, visando a construção de uma candidatura política minimamente viável em eleições majoritárias, ou que continuem meramente aproveitando os holofotes do palanque para divulgarem a doutrina em sua pureza filosófica? 

Eu sou pela última alternativa, porque a batalha política é, acima de uma batalha por cargos, uma batalha por corações e mentes que o libertarianismo já sai perdendo. Veja, como um singelo exemplo, o caso do canal de desenhos animados que anunciou estar retirando Tom & Jerry do ar por considerar o desenho politicamente incorreto. Ora, não se trata de uma medida imposta por um governo, mas sim do atendimento a uma demanda de mercado: o público quer o discurso politicamente correto. E esse é apenas um terreno onde os auto-denominados "progressistas" - que eu particularmente considero como "obscurantistas" - triunfam hoje em dia. A liberdade perde (ou deixa de ganhar) terreno em todos os domínios! Como recuperar esse terreno perdido, ou mesmo conquistá-lo onde ele nunca lhe pertenceu?

Eu digo que o ocupante de um cargo tem muito pouco a fazer aqui. Ele é apenas um joguete nas mãos de demandas populares manipuláveis e interesses escusos operando nos bastidores. A batalha a ser ganha, insisto, é a batalha por corações e mentes dos mais jovens! Por isso, eu vejo com preocupação a ausência de um político americano com um discurso radical como era o de Ron Paul no congresso. Aliás, tenho também que explicar por que isso me importa como brasileira.

O próprio "progressismo" brasileiro, na verdade, é made in USA. Até o anti-americanismo desse discurso foi importado de lá. Tudo que existe de pior no "progressismo" - como o feminismo radical, o movimento politicamente correto, etc... - é só discurso americano adaptado (às vezes, muito mal e porcamente) à realidade brasileira. É principalmente por essa razão que me interessa que o libertarianismo vença a batalha ideológica nos EUA, ou ao menos se converta em um player de peso no debate. Já há um tímido movimento de jovens libertários brasileiros, movimento que já incomoda o bastante aos auto-denominados "progressistas" para que eles se ocupem em desqualificá-lo. Esse movimento seria potencializado pelo crescimento do movimento libertário nos EUA. Naturalmente, os EUA têm esse poder de irradiar sua ideologia para o resto do mundo. Note, só como um exemplo, quantos acadêmicos estrangeiros frequentam suas universidades.

Mas seja aqui ou lá, o fato é que eu não vejo nenhum interesse para o movimento libertário, em fase de expansão, em fazer alianças com conservadores ou concessões centristas. Agora, é a hora de tornar nossos princípios mais conhecidos, e não de confundir o público misturando esses princípios a outros que não são apenas estranhos ao discurso libertário, mas até mesmo incompatíveis com ele. 

Alianças podem e devem ser feitas quando se trata de votar em matérias pontuais, sobre as quais, acidentalmente, princípios diferentes podem muito bem convergir. No entanto, jamais deve haver alianças doutrinais, a menos que se tenha em vista o poder pelo poder, sem ideologia alguma. E aí eu me pergunto: para o libertário enquanto tal, de que vale esse poder?


sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Libertários e a Caverna


A passagem da República em que Platão expõe o mito da caverna deve ser a mais popular da história da filosofia. Milênios depois, tanta gente ainda vibra com a ideia de uma transição das trevas da ignorância para a luz da sabedoria. Afinal, sempre queremos nos sentir especiais, não é mesmo? Nesse sentido, lembro que alguns dos meus jovens colegas de graduação em filosofia eram facilmente seduzidos pela opinião segundo a qual a massa compartilharia um senso comum que seria pura e simplesmente um amalgama de crenças falsas, enquanto eles estavam sendo iniciados em tantas verdades reservadas a poucos, como acontecera com os discípulos do próprio Platão na Academia original.

Kant me salvou disso por um tempo! Kant pertence a uma tradição oposta a de Platão, porque, para o primeiro, os conhecimentos mais importantes fazem parte de um bom senso natural. Não são acessíveis apenas a poucos iniciados que tenham passado pelos devidos ritos do saber. Kant julga que o filósofo não traz uma boa nova ao mundo. Ele apenas esclarece e procura justificar os princípios mais essenciais implícitos no conhecimento vulgar. Assim, Kant, nesse aspecto, pertence àquela boa tradição do empirismo inglês, que nada tem a ensinar, mas apenas a esclarecer e, no máximo, corrigir.

Eu sempre me orgulhei de pertencer a essa tradição também. Inclusive, eu sempre desprezei os marxistas, que são adeptos da tradição platônica nesse aspecto, por considerarem todos, exceto eles próprios, como alienados que não conheceriam a realidade por trás da fantasia armada para que não vejam seus grilhões. Enfim, eu nunca me julguei alguém que teria saído da caverna, descobrindo ter sido enganada em toda minha vida pregressa. Porém, confesso com pesar que essa minha auto-imagem tem mudado.

Refletindo sobre meu libertarianismo, eu me dou conta de que ele é adequado ao mito da caverna. Explico. Em primeiro lugar, o mito da caverna deixa claro que a caverna é uma prisão. Em segundo lugar, segundo o mito, o prisioneiro não sabe que está em uma prisão. Aqui, entra o elemento epistêmico. A realidade é encoberta por uma fantasia que faz com que o prisioneiro não se dê conta de seus grilhões e sinta-se até mesmo confortável com eles. Em terceiro lugar, o mito explica a dificuldade da transição por parte de quem descobre a verdade e a resistência a essa verdade por parte de quem ainda não a descobriu. Eu não leio o mito há muito tempo. Mas nunca me esqueço do fato de que, segundo Platão, a luz dói nos olhos daquele que sai da caverna, bem como não me esqueço do fato do acorrentado não querer ser libertado por aquele que volta à caverna. Por sinal, é este o aspecto político do mito: a mentira aprisiona e quem se liberta deve voltar para libertar os demais.

Ora, o libertarianismo diz justamente que somos levados a acreditar que seríamos livres, quando somos prisioneiros. Ele denuncia a oposição entre democracia e liberdade. Ele mostra a conexão entre tributos cobrados pelo Estado e roubo. Assim, o libertário é aquele que diz para o indivíduo que ele está usando grilhões, quando o próprio indivíduo (ainda) não vê esses grilhões.

Muito bem, como Platão explica no mito, não é de se admirar então que sejamos considerados loucos, perigosos, etc... No fim das contas, é muito natural que o indivíduo prefira acreditar que ele já é livre, pois isso é mais cômodo: ele nada teria a fazer! Além do mais, ninguém gosta de trocar de visão de mundo, só para começo de conversa. A revolução interna é muito dolorosa. Exige todo um esforço de reconstrução. Assim, todo um conjunto de mecanismos de defesa é construído pelo grupo social para proteger a ideologia predominante nele. Talvez, tenhamos mesmo algo a aprender com Marx sobre isso. Aliás, vocês já notaram como o discurso do Ron Paul contra a mídia mainstream americana, por exemplo, às vezes, se parece bastante com o discurso de um marxista tupiniquim contra a rede Globo e cia? Nos dois casos, diz o denunciante, a grande mídia seria usada para propaganda ideológica do status quo. A esse respeito, Ron Paul também fala sobre o modo como as escolas são usadas para a propagação e manutenção da ideologia estatista. Todavia, feito o discurso, um mecanismo de defesa da ideologia garante que seu desafiador seja visto como alguém a ser desacreditado: "x é um extremista (não ouça os extremistas), y é um moderado (ouça os moderados)". A sociologia do conhecimento descreve bem esse fenômeno segundo o qual uma ideologia se protege via ad hominem, interpretando seu crítico como alguém que não merece ser ouvido. Eu recomendo este livro a quem queira aprender mais sobre esses mecanismos.

Agora, eu sei, vocês, amigos libertários, devem estar bravos comigo por eu ter dado munição a quem nos compara com os marxistas. Mas, calma, a minha comparação para por aí mesmo: os dois grupos, libertários e marxistas, consideram que saíram da caverna, no sentido de terem alcançado um estágio no qual se tem consciência dos grilhões a respeito dos quais as massas nada sabem. Ressalto agora que existem diferenças fundamentais nas atitudes políticas dos libertários e dos marxistas. Ou, acaso, vocês já viram o Ron Paul incendiando algum carro da CNN? O que o Ron Paul fez em vez disso? Simples, ele lançou seu próprio canal na internet e convidou as pessoas a usarem o controle remoto para desligarem suas TVs. 

A atitude do Ron Paul é libertária, porque não envolve qualquer agressão. Para um libertário, a força só pode ser usada contra quem a inicia e, mais, em uma proporção adequada como reação. Nesse sentido, nós ouvimos libertários pregando, por exemplo, a sonegação de impostos. Da mesma forma, o sonegador teria direito de usar a força para resistir a prisão. Mas ele não pode atacar indivíduos que digam não compartilhar de sua crença quanto à realidade violenta da democracia em que vivemos. Acima de tudo, para libertários, não existe violência "simbólica". Independentemente da eficácia do ato, você não pode destruir propriedade privada alheia para chamar a atenção para sua causa. Em suma, uma revolução libertária, ao contrário de uma revolução marxista, seria um movimento de resistência pacífica frente às forças do Estado. Nós só usaríamos a força quando os agentes do Estado iniciassem a força para nos obrigar a obedecer.

Por isso, estatistas, vocês não precisam nos temer, viu? Nós não arrancaremos à força os seus confortáveis grilhões. Nós apenas estaremos aqui, argumentando, e esperando o dia em que vocês perderão o medo de nos ouvir. E, se querem saber, aqui fora não é mais tão ruim quando seus olhos se acostumam com a luz e param de doer...