segunda-feira, 17 de junho de 2013

A voz confusa das ruas

Histórica a imagem recente de manifestantes sobre o Congresso Nacional. Confesso que me emocionei com o cartaz que dizia que "o gigante acordou". Confesso ainda que meus sentimentos são conflitantes neste momento. Por um lado, sempre esperei por mais indignação política por parte de meus conterrâneos. Por outro lado, quando essa indignação se traduz em reivindicações palpáveis, vejo que a minha pauta seria muito diferente, até mesmo oposta a de muitos deles. A bem da verdade, é claro, mesmo entre eles, não se vê uma pauta unificada. O que parece é que, quanto mais distante o fim, maior o acordo. Por exemplo, todos eles querem mais qualidade nos serviços públicos. É nesse ponto que quero me deter nestas breves notas.

Eu, como libertária, não quero melhores serviços públicos. Quero, sim, seu fim! Por isso, minha agenda jamais será a deles. Todavia, eu penso que uma carga tributária de quase 40% do PIB - que já considero como um mal por si só, independentemente de qual for a destinação dos recursos - torna-se especialmente inaceitável quando esse dinheiro se perde nas engrenagens da própria máquina pública, seja por incompetência administrativa ou pura e simples corrupção. E é aqui que eu poderia me unir aos manifestantes e quem sabe até esperar uma verdadeira mudança neste país se o movimento persistir.

Pense comigo. O governo federal já ordenou que a Casa da Moeda ligasse suas impressoras a todo vapor para arcar com os gastos com a Copa do Mundo. O manifestante, em geral, não sabe, mas o governo, sim, sabe que essa "receita" artificial gera inflação (é sua própria definição!), e sabe melhor ainda que mais inflação gerará ainda mais insatisfação popular. Portanto, nem mesmo Dilma e Mantega me pareceriam estúpidos a ponto de simplesmente mandarem que se imprima ainda mais dinheiro, desta vez, para a educação, por exemplo, para que os ânimos dos manifestantes sejam apaziguados. Por outro lado, o crescimento da nossa economia, certamente, é outro fator que preocupa muito o governo, portanto, também sabem que não é viável que simplesmente se eleve ainda mais os impostos. Bem pelo contrário, impostos estão sendo cortados para o mascararemos dos índices de inflação. Ora, meu amigo leitor, o que você faria então se estivesse no Palácio do Planalto, não como manifestante, mas como gestor?

Eu não vejo outro caminho se não o corte de gastos supérfluos para que essa verba possa ser direcionada para a melhoria de serviços públicos, bem como combate à corrupção e choques de gestão. Muito bem, no meu surto de otimismo, o governo será inteligente e competente a ponto de conduzir urgentemente as reformas necessárias à promoção da maior eficiência da máquina pública. Já nos meus piores pesadelos, o governo mantém as impressoras ligadas e segue gastando desordenadamente, sobretudo, na tentativa de manter e ampliar a cooptação das camadas mais populares frente ao que parece ser um levante de classe média, mais localizado no Distrito Federal e nos grandes centros urbanos do Sul e do Sudeste. Aguardemos as cenas dos próximos capítulos, se é que haverá algum...

 

domingo, 2 de junho de 2013

Por um libertarianismo sem meritocracia

Muitos libertários defendem a meritocracia como um dos pilares da doutrina. Alguns, mais ingênuos e arrogantes, chegam a acreditar que, na sociedade atual, a riqueza já seria dividida conforme o mérito: "eu passei em medicina na USP por mérito", diz o rapaz que sempre estudou nas melhores escolas para outro que nasceu de pais analfabetos. Os mais sensatos, porém, defendem apenas que, em uma sociedade verdadeiramente libertária, ou seja, em uma sociedade livre de intervenções políticas na economia, o resultado da competição de mercado seria justo, pois os vencedores sempre teriam mérito para tanto. Neste post, eu quero atacar a segunda parte dessa tese: o vínculo entre justiça e mérito. Argumento que "mérito" é um conceito que deve ser relegado ao discurso ético, sendo banido da esfera do direito. Em suma, defendo que a justiça libertária não é e, acima de tudo, não precisa ser um sistema meritocrático.

Na verdade, não vejo grandes dificuldades em defender meu ponto, afinal, mérito, por definição, deve ser algo que se conquista. Ninguém tem o mérito de pertencer a uma determinada raça, nascer em uma determinada nação, etc. Agora, também deve ser notado então que, embora alguém possa ter o mérito por ter cultivado um determinado talento, ninguém tem o mérito de nascer com um determinado dom a ser cultivado. Indo ainda além, sequer podemos saber ao final do processo o quanto do resultado do exercício de um talento se deve ao dom puro e simples, e o quanto se deve ao aperfeiçoamento desse dom por meio do trabalho. Por exemplo, o quanto do sucesso de um Romário se deve ao seu dom para o futebol e o quanto se deve ao seu treinamento árduo jogando futevolêi nas praias do Rio de Janeiro? Nunca poderemos precisar! Seja lá como for, o fato é que: 1) Romário deu a sorte de ter nascido com um talento valorizado pela sociedade de sua época; 2) alguém nascido sem vestígios de seu talento poderia treinar 100 vezes mais do que ele sem obter 10% de seus resultados.

Agora, talvez, alguém queira me dizer que o sujeito sem o talento do Romário, em vez de desperdiçar seu tempo treinando futebol, deveria ter cultivado seu próprio talento. Então, eu responderia, primeiro, que saber reconhecer o próprio talento e investir nele já é algo que pode muito bem exigir sua dose de talento. Afinal, tantos jovens estão aí, fazendo testes vocacionais, começando e parando cursos universitários, e isso de uma tal forma que nem me parece cabível que digamos que eles não se esforçam o bastante para descobrirem o seu dom. Em segundo lugar, posso ainda perguntar por que seria impossível acreditarmos que alguns seres humanos simplesmente nascem sem qualquer dom especialmente valorizado por sua época. Na verdade, parece-me fácil reconhecer que muitos seres humanos (a maioria?) nada têm de especial sob aspecto algum.

Mas mesmo que acreditemos na teoria edificante segundo a qual todo ser humano é um geniozinho em potencial (reprimido pelo sistema?), ainda sabemos dos casos de exceção e eles bastam para o meu ponto. Não há nada de extravagante em minha suposição de que ao menos alguns seres humanos possam nascer dotados de uma inteligência muito abaixo da média, desprovidos das características reconhecidas pelo padrão de beleza de sua sociedade, portando deficiências físicas severas, e assim por diante. Se compararmos esse individuozinho castigado pela natureza a outro que tenha nascido provido de beleza, talento, inteligência, charme, etc., supondo que cada um se empenhe da mesma maneira, parece razoável supor que, ao final da vida de cada um em um mundo libertário, o segundo terá obtido muito mais sucesso.

Eu até poderia parar por aqui, mas ainda quero acrescentar que, em um mundo libertário, naturalmente, haveria heranças, de modo que, somadas às diferenças naturais, ainda haveria diferenças sociais cumulativas que tornariam impossível averiguar o quanto da diferença de sucesso entre as pessoas se deveria verdadeiramente ao mérito. Por todas essas razões elencadas, eu proponho que reservemos o discurso sobre o mérito para nossas considerações éticas, cientes de que a precisão no tocante a elas só pode ser alcançada por um juiz tal qual o Deus cristão, não por nós. Só Deus sabe, por exemplo, a medida de esforço que cada um precisa fazer para se levantar da cama pela manhã.

Agora, eu quero concluir esse texto mostrando que nada do que eu disse acima afeta a minha concepção de libertarianismo. Para a justiça libertária, não importa se não tenho mérito por meus dons naturais ou por minha herança, portanto, não preciso propor nenhum sistema para promoção da igualdade de oportunidades. O ponto é muito simples: se não adquiri meus bens por meio de fraude e violência, é justo que eu os possua, mesmo que eu não tenha feito por merecê-los. Agora, vejamos, no que diz respeito a meus dons naturais, eles são meus de forma inata, ou seja, nem sequer houve o ato de aquisição que sempre poderia ser questionado. É por isso, por exemplo, que, em sua doutrina do direito privado, Kant se dá ao trabalho de defender apenas o meu e o teu exterior. Aquilo que é interiormente meu nem sequer é objeto de problematização filosófica*.

Já no que diz respeito à herança, ela decorre naturalmente do conceito de propriedade. Se eu tenho a legítima propriedade de um bem, eu devo ter o direito de destiná-lo a quem eu bem entender. Se acabarmos com o conceito de herança, por conseguinte, acabamos com o próprio conceito de propriedade, visto que impedimos o proprietário de fazer uso de seus bens como ele queira, de modo que esses bens não podem mais ser considerados propriamente dele. Em outras palavras, o direito não é à herança, porque ninguém deve ter o direito àquilo que é de outro, a menos que esse outro tenha concedido esse direito por contrato. O direito é, sim, do proprietário e trata-se de um direito de decidir o destino de seus bens.

Concluo então o seguinte: se eu estou certa em minhas considerações sobre o caráter absoluto dos bens internos e sobre o direito de transferência de bens externos por parte do proprietário, o libertarianismo não precisa de compromisso algum com a meritocracia para explicar a legitimidade das desigualdades.

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*Nota para os kantianos: Na linguagem kantiana, a violação do que é interiormente meu é analiticamente reprovada pelo princípio do direito, ao passo que a violação do que é externamente meu é sinteticamente reprovada pelo direito, ainda que a priori. Enfim, se você não é kantiano, esqueça este detalhe técnico que não posso explicar aqui.

domingo, 19 de maio de 2013

Miséria e Violência: quando o crime compensa


A discussão motivada pelo clamor de certos setores da sociedade brasileira pela redução da maioridade penal reascendeu um antigo debate, já que tantos jovens condenados são pobres ou menos do que isso: qual a relação entre a miséria e a violência? Claro, trata-se, em grande parte, de uma questão empírica, sendo que as estatísticas bastam para nos provar que não estamos diante de uma relação causal simples e direta, afinal, o índice de violência em cada sociedade não se expande ou retrai proporcionalmente ao seu quinhão de miséria. Ademais, é uma constatação trivial a de que nem todo miserável é um criminoso violento, assim como a de que nem todo criminoso violento é miserável. Porém, é fato que, por outro lado, pessoas de baixa renda correspondem à maior parte dos ocupantes dos presídios. Não seria então o caso de desconfiarmos de não estarmos diante de uma mera coincidência?

Na verdade, além de não acreditar em coincidências, eu desconfio também da explicação segundo a qual a maioria dos presidiários seria composta por pessoas de baixa renda simplesmente porque essa camada da população seria mais perseguida pela polícia, bem como mais suscetível a uma condenação em tribunal. Agora, supondo que a miséria seja realmente um fator no complexo causal que explica o fenômeno dos crimes violentos, como devemos pensar essa relação?

Em primeiro lugar, temos que tomar uma decisão sobre o modo como iremos considerar os agentes no contexto do discurso jurídico. Não me parece que nosso sistema penal atual faça sentido se tomarmos esses agentes como meros produtos de sua genética aliada ao meio ambiente onde nasceram e se criaram. Fosse esse o caso, nem sequer poderíamos estipular a duração das penas. O criminoso teria que ser mantido afastado da sociedade por tempo indeterminado, até que se pudesse avaliar a completa reversão do efeito sobre ele dos condicionamentos iniciais, se é que isso seria possível algum dia. Nesta teoria determinista do direito penal, o agente não é um sujeito responsável por suas ações. Ele é apenas o resultado de um processo que deu errado. Assim, ele corresponde a uma ameaça para seus semelhantes enquanto o processo não puder ser revertido.

O curioso dessa teoria determinista é que ela parece solapar a própria ideia de um direito penal. Não se teria mais pena propriamente! Na verdade, em vez de um veredicto de um juiz ou de um júri, o mais correto seria existir um diagnóstico de que o sujeito poderia reincidir no crime. Tenhamos em mente, afinal, que ele não pode ser castigado, já que ele não tem culpa pelo que faz, tampouco a pena poderia dissuadi-lo de cometer crimes, já que suas ações são meras respostas ao meio somado à genética. Assim, diagnóstico traçado, o criminoso seria recolhido para tratamento. Na impossibilidade de sucesso desse tratamento, ele seria sumariamente eliminado, pois que dignidade poderia ter um animal que apenas responde a estímulos de acordo com o modo como foi condicionado desde jovem? Em suma, o sistema penal seria um mecanismo de proteção da sociedade de indivíduos que socio-biologicamente deram errado.

Voltando à miséria, ela bem poderia ser um fator preponderante para o indivíduo dar errado no sentido de se tornar uma ameaça a seus semelhantes. Mas e daí? Se estamos falando de indivíduos que nada têm do que nos acostumas a respeitar como tipicamente humano, em vez de combater a miséria, não seria mais simples e barato apenas abatermos como gado aqueles afetados por ela do modo errado? Mesmo nas comunidades mais miseráveis, qual a parcela de miseráveis que efetivamente se tornam criminosos? Na perspectiva dessa teoria, defendida por gente que se vende como tão piedosa, parece-me obviamente mais efetivo eliminar o miserável criminoso, e não a miséria, que é só um fator para a criminalidade, e um fator que pode mesmo estar ausente, até onde a experiência mostra.

A consequência dessa teoria nos repugna exatamente porque ela contraria o valor que serve de alicerce a qualquer ordenamento jurídico ocidental: a imputabilidade e a consequente dignidade do ser humano. Mas o que está em jogo na imputabilidade jurídica? Se o ser humano não é uma mera resposta a seu meio, resposta esta moldada por certa herança genética, então ele deve ser pensado como o portador de um livre-arbítrio? Depende do que entendemos por "livre-arbítrio". Não vejo necessidade alguma de nos comprometermos com uma teoria tal que descreva o livre-arbítrio como uma capacidade do sujeito se auto-determinar até mesmo contrariamente a todas as influências de seu meio e sua bagagem genética. Essa teoria metafísica só precisaria ser pressuposta se o sistema penal fosse visto como um mecanismo de distribuição de castigos proporcionais à culpa, para sua expiação, tarefa que, felizmente, podemos deixar a cargo de Deus!

Para nossa sorte, podemos pensar em um ordenamento jurídico que não nos trate nem como animais e nem como seres sobrenaturais. Tudo que o direito precisa é de um conceito de livre-arbítrio que nos permita acreditar que o agente, diferentemente de qualquer animal, possa ser dissuadido de perseguir seu fim por meio de um mero cálculo egoísta. A pena, nesse contexto, não é castigo e nem recondicionamento. Ela serve apenas como motivo de dissuasão para um agente que sabe avaliar seus interesses. Bom, agora, temos um problema conceitual que pode bem nos ajudar a entendermos nosso problema real relativo à violência.

Se o sistema penal é um mecanismo de dissuasão, ele terá impactos diferentes em agentes com fins diferentes, inseridos em circunstâncias diferentes. Em suma, o crime pode muito bem compensar para alguns. Esse parece-me ser exatamente o problema da miséria como um fator de criminalidade. Se você vive na classe média (veja bem, não me refiro bem ao que o governo classifica como tal), você pode ambicionar mais, mas, se você calcula, o risco de passar uma temporada na miséria cruel dos presídios brasileiros não parece compensar a aposta de ascender de classe social cometendo roubos, por exemplo. Tanto é assim que não é comum que adultos de classe média pratiquem assaltos à mão armada. Geralmente, nessa classe social, são uns poucos adolescentes que praticam esse tipo de crime, pois é típico da idade que o agente não se importe em maximizar os riscos de suas apostas.

Agora, e se você vive em uma miséria que já lembra bem aquela que seria sua realidade uma vez dentro de um presídio? Considerando ainda que a comunicação entre o mundo intramuros e o mundo externo parece não ser problemática nos presídios brasileiros, o crime não compensaria? Eu ousaria dizer que, para um miserável no Brasil, o crime seria uma aposta bastante racional. Na verdade, eu me espanto por não termos ainda mais crimes! Talvez, por sorte nossa, o ser humano tenha uma tendência a minimizar ao máximo os riscos de suas apostas, ou, talvez, a maioria simplesmente seja boa. O fato é que esse modo como os convido a olharem para o sistema penal (como uma banca de apostas) explica como a miséria pode ser um fator preponderante para a criminalidade, sem recorrer a qualquer condicionamento social, portanto, sem solapar a própria noção de direito, que implica em imputabilidade. Era o meu objetivo...

 

domingo, 21 de abril de 2013

Darwin, altruísmo e liberalismo

Nesta manhã de domingo, deparei-me com uma leitura interessante, como costuma ser o caso de material compartilhado por meu amigo Walter Valdevino. Trata-se do artigo "Antropologia de Darwin: os fundamentos materiais da moral", publicado na Folha.

Não sei o que vocês acham das tentativas de naturalização da moral, mas nem é esse meu maior interesse no artigo. O que me chama a atenção de modo especial é que o autor parece estar cometendo o erro comum de atribuir ao liberalismo uma oposição ao altruísmo e até mesmo à cooperação social. 

Outro lugar comum que me parece equivocado no mesmo sentido é a ideia de que o liberalismo seria ainda antagônico à tese segundo a qual, biologicamente (ou historicamente, que seja), a coletividade precederia a individualidade. Na verdade, eu nem sequer acredito que alguém precise de Darwin para perceber que, na natureza, o indivíduo se sacrifica o tempo todo na luta pela geração e manutenção da sua família/seu clã (eu não chegaria a dizer "espécie", já que o indivíduo pode se sacrificar justamente em combate com outro membro da mesma espécie, sendo os benefícios do combate para a manutenção da espécie como um todo apenas indiretos).

Agora, ainda que a formiguinha operária morra pela sua rainha etc e tal, o liberalismo clássico continua sendo apenas uma teoria da justiça que diz que, seja lá quais forem os mecanismos da gênese da individualidade, só o indivíduo porta direitos e deveres, pois são indivíduos que agem e sofrem ações. A coletividade simplesmente não é agente moral! Portanto, moralmente, o indivíduo precede a coletividade.

Ademais, nada há de anti-liberal na cooperação altruística. Por sinal, outro amigo, Aguinaldo Pavão, já mencionava a importância de atentarmos para a diferença entre individualismo e egoísmo, outro dia, em seu blog. Para um liberal em sentido clássico, basta que a cooperação não seja uma imposição totalitarista, o que ela sempre é quando advém da coação estatal.

Lembremo-nos, afinal, de que só há espaço moral para o surgimento de um Hitler, quando acreditamos com ele que o indivíduo pode (até mesmo deve) ser sacrificado em nome da coletividade a que pertence. Lembremo-nos também de que não condenamos cada alemão do passado e do futuro pelos crimes nazistas, mas apenas os indivíduos concretos que os cometeram.

domingo, 14 de abril de 2013

Meiwes, Gosnell e minhas angústias libertárias


Aristóteles recomendava que testássemos nossas teorias sobre ética e política comparando-as com os juízos costumeiramente feitos a respeito dos mesmos objetos. Esse procedimento que, já desde a antigüidade, revela os compromissos do empirismo com o senso comum pode ser questionado, dado o modo como variações de tempo e espaço afetam os juízos de valor cotidianos. Porém, nem por isso os conflitos entre meu libertarianismo e meus escrúpulos morais deixam de me causar profundo desconforto.

Da primeira vez que me deparei com esse tipo de situação angustiante, o responsável foi Armin Meiwes. Meiwes, o famoso canibal alemão, não se limitou, afinal, a devorar sua vítima. Ele se certificou de obter o seu consentimento. Ora, para um libertário, todo contrato realizado livremente, ou seja, todo contrato isento de fraude e coação firmado entre dois agentes intelectualmente capazes, deve ser respeitado. Sendo assim, sob uma legislação libertária, Meiwes, uma aberração que, honestamente, eu gostaria de ver executada, teria que ter saído livre da corte. 

Claro, também sob uma legislação libertária, cidadãos que compartilhassem da minha repugnância por Meiwes poderiam discriminá-lo, negando-se a estabelecer qualquer tipo de relação com ele, portanto, mesmo relações comerciais/profissionais. Em suma, Meiwes poderia ser expulso de cinemas privados, ser proibido de frequentar condomínios privados e assim por diante. Contudo, o que importa é que ele não poderia ser impedido de continuar praticando sua perversão monstruosa, desde que continuasse encontrando quem consentisse em participar dela. É isso que tanto me angustia. Porém, resignei-me à consequência de minha posição política e "esqueci" o assunto.

Agora, por mais que a mídia liberal norte-americana não tenha dado o devido destaque ao assunto, chegou ao meu conhecimento o caso Kermit Gosnell. Gosnell, para quem não quiser abrir o link, é um "médico" que, ao que todas as evidências indicam, induzia partos para assassinar os bebês na sequência. Na verdade, há muito tempo, eu já me confrontava com reflexões que esse caso torna tão prementes.

De um ponto de vista libertário, a vida não é o direito mais fundamental. Se fosse, uma barata, por exemplo, teria direito à vida, o que, voltando ao teste de Aristóteles, parece contrariar os valores comumente aceitos em nossa sociedade, ou ao menos as minhas intuições morais mais básicas. O direito mais fundamental teria que ser então aquele que é fundante de todos os demais direitos. Diria Kant, em um de seus momentos mais libertários, que só há um direito inato: o direito à liberdade, entendida como independência do arbítrio de outro. Decorre que só tem direito à vida quem pode ser qualificado como um agente livre. 

Ora, da mesma forma que o feto abortado pelos meios mais comuns e legalizados em certos lugares, o bebê recém nascido não é um agente livre. A liberdade pode até ser um direito inato, no sentido em que não é adquirido por algum contrato positivamente firmado, mas certamente não é um direito inato, no sentido em que já nasceríamos como sujeitos ou agentes cujas decisões pudessem ser ou não impedidas por outros agentes.

É típico da raça humana, pelo contrário, que sua prole trilhe um longo caminho de desenvolvimento fora do útero da mãe. Em outras palavras, o agente livre nasce muito depois do parto. Por vezes, ele nem sequer nasce, já que nada garante que aquele indivíduo que compartilha de nossa herança genética evoluirá algum dia para um indivíduo capaz de calcular riscos e possíveis benefícios como resultados de suas ações, agindo ou deixando de agir em conformidade com o resultado desse cálculo, que é a competência mínima que esperamos de um agente para classificá-lo como livre. Com essa última consideração, por sinal, podemos estender a condição jurídica dos fetos não apenas para crianças muito pequenas como ainda para doentes mentais e afins.

Mas então como um libertário poderia justificar a condenação legal do infanticídio promovido por Gosnell? Ele também deveria sair livre da corte (se considerarmos apenas essa acusação) e se juntar a Meiwes como um pária a quem não podemos impedir de fazer o que faz? Tendo em vista que, segundo o libertarianismo, apenas indivíduos são portadores de direitos, não uma coletividade qualquer, como a espécie, eu não vejo como evitar a conclusão. Um pratica sua perversão com agentes livres que consentem com elas, outro as pratica com indivíduos que não podem ser considerados livres ou não-livres, porque não são agentes juridicamente capazes em sentido algum. O libertarianismo parece deixar os juízes de mãos atadas em ambos os casos...

sábado, 30 de março de 2013

Reflexões de Páscoa


Ontem, minha TL no Twitter ficou em polvorosa com o comentário de alguém a respeito do suposto comunismo de Jesus Cristo. Muito bem, não acho que Jesus Cristo tenha sido propriamente um comunista, mas, no final das contas, devo confessar que sei bem poucas coisas sobre Jesus Cristo. Porém, uma coisa vou confessar, sempre achei o cristianismo o principal inimigo do individualismo, o grande fator que impede que a última doutrina tenha verdadeira influência sobre nossa cultura ocidental.  Em poucas palavras, em nossa cultura, individualismo é sinônimo de maldade e coletivismo é sinônimo de bondade, o que eu credito na conta do cristianismo.

Estava refletindo sobre isso por estes dias. Qual o grande ideal do cristianismo segundo muitos de seus seguidores? A caridade, quer me parecer! Ora, mas a caridade cristã está justamente enraizada em um certo modo de compreensão da humanidade. A humanidade é vista pelo cristão como uma única família. Somos todos irmãos criados à imagem e semelhança de um único Pai. É dessa visão criacionista de mundo que surge a ideia de caridade como uma vida de obrigação mútua: você não deixa um irmão passar fome, ainda que a desgraça dele não tenha sido causada por você. É próprio do conceito cristão de família que se assumam as consequências dos pecados de outrem. No fim, qual é nosso grande exemplo? Jesus Cristo, um inocente que morreu para salvar os pecadores!

Agora, note que esse conceito de humanidade como uma grande família em que um membro cuida do outro não é um conceito meramente dado, observável, por exemplo, um conceito meramente baseado em nossa comunidade genética. Na natureza, animais da mesma espécie estraçalham uns aos outros a todo momento. Para ser breve, uma espécie não é sinônimo de uma família ou mesmo de um único rebanho. Portanto, era preciso uma ideologia que, através de uma mitologia, convencesse a humanidade de que ela é uma família só. Seria temerário afirmar que isso tem impactos profundos sobre nossa visão a respeito da caridade?

Dizer-se ateu é fácil. Não pensar como um cristão é bem mais difícil. Como é então a caridade para alguém que se desnuda das crenças mitológicas que converteram espécie em família? Eu arriscaria dizer que, primeiramente, caridade não é dever. Em segundo lugar, perante um ideal individualista, que, talvez, resgate valores gregos pré-cristãos de auto-suficiência, também não é recomendável que ela seja praticada indistintamente. Se a auto-suficiência do indivíduo é o ideal, e não um palavrão, a caridade deve seguir o dito popular de não dar o peixe, mas ensinar a pescar. Desse ponto de vista, a caridade, em suma, pode bem ser um veneno social quando ela gera dependência.

Claro, há o caso dos hipo-suficientes. O que fazer quanto a quem não tem condições fisiológicas de pescar seu próprio peixe? Na natureza, observe que animais desse tipo são deixados para trás mesmo pelos rebanhos. Ah, mas isso não é humano! Não é humano, ou não é cristão? Não seria a humanidade justamente uma invenção cristã? Penso que sim. No entanto, talvez também seja por razões fisiológicas que sintamos compaixão e ajudemos aos hipo-suficientes. Isso não me importa tanto. O que me importa é frisar que esse tipo de ajuda àquele que, para você, é verdadeiramente o "outro" seria uma resposta a um sentimento (biologicamente fundado ou culturalmente inculcado), e não um dever racionalmente fundado.

Feliz Páscoa!

quarta-feira, 6 de março de 2013

Safatle e o direito de todos à nota 'F'


Em sua coluna de hoje na Folha de São Paulo, Vladimir Safatle volta a defender a implementação de ideais socialistas, desta vez, amparado pelo resultado de um plebiscito realizado na Suíça que limita a remuneração de executivos de empresas privadas. Imediatamente, ocorreu-me a lembrança de um e-mail que eu havia recebido há alguns dias. O texto é atribuído a Magno Nunes Dov e não sei se o relato realmente se ampara na realidade, como é o caso do triunfo suíço de Safatle. Não importa! Ainda que seja apenas um singelo experimento de pensamento, ele poderia ser verossímil o suficiente para ilustrar meu ponto contra Safatle e o princípio adotado pelos eleitores suíços. Segue o texto (e se algum leitor quiser me esclarecer quanto à sua origem, tanto melhor):

"Isto é Socialismo

Um professor de economia em uma universidade americana disse que nunca havia reprovado um só aluno, até que certa vez reprovou uma classe inteira. Esta classe em particular havia insistido que o socialismo... realmente funcionava: com um governo assistencialista intermediando a riqueza, ninguém seria pobre e ninguém seria rico, tudo seria igualitário e justo.

O professor então disse: 'Ok, vamos fazer um experimento socialista nesta classe. Em vez de dinheiro, usaremos suas notas nas provas.' Todas as notas seriam concedidas com base na média da classe, e portanto seriam 'justas'. Todos receberiam as mesmas notas, o que significa que, em teoria, ninguém seria reprovado, assim como também ninguém receberia um 'A'.

Após calculada a média da primeira prova, todos receberam 'B'. Quem estudou com dedicação ficou indignado, mas os alunos que não se esforçaram ficaram muito felizes com o resultado. Quando a segunda prova foi aplicada, os preguiçosos estudaram ainda menos - eles esperavam tirar notas boas de qualquer forma. Já aqueles que tinham estudado bastante no início resolveram que eles também se aproveitariam do trem da alegria das notas. Como um resultado, a segunda média das provas foi 'D'.
Ninguém gostou. Depois da terceira prova, a média geral foi um 'F'.

As notas não voltaram a patamares mais altos, mas as desavenças entre os alunos, buscas por culpados e palavrões passaram a fazer parte da atmosfera das aulas daquela classe..."